terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Estado, o Orçamento e a Educação Artística e Musical: uma questão ideológica

O recente inquérito do Eurobarómetro sobre a participação em atividades culturais na União Europeia, refere que "os portugueses são os cidadãos da União Europeia com menores taxas de participação em atividades culturais”. Se se pensar que a crise económica pode ajudar a explicar uma parte destes resultados, os problemas ultrapassam as dimensões estritamente financeiras. São problemas de natureza ideológica e política. Pela opção de determinadas vias em detrimento de outras. Vias baseadas num modelo de desenvolvimento que privilegia o que é mais rentável e imediatista.

O Orçamento do Estado é um instrumento estratégico e político fundamental à disposição dos governos, em que se revela as opções acerca do que se pensa e do que se perspetiva para a sociedade, corrigindo assimetrias, incrementando áreas estratégicas. Ora, a centralidade do Orçamento do Estado para 2014, na continuidade dos anteriores, situa-se nos cortes do que é essencial, com um agravamento considerável nas áreas da educação, nos seus diversos planos, na ciência e na cultura.

Tal como outras áreas formativas e áreas do saber, a situação da educação artística e musical é particularmente grave e dramática.

Apesar do que foi sendo construído ao longo dos anos, com muito esforço de diferentes tipos de atores, professores, estudantes, escolas, famílias, comunidades, artistas, programadores, etc., são visíveis os sucessivos desinvestimentos nestas áreas de formação que muito têm contribuído para uma constante marginalização da educação artística e musical no interior da escola pública. Marginalização essa, sustentada na retórica da inevitabilidade, na retórica da crise, na retórica dos conhecimentos “úteis” para a competitividade da sociedade portuguesa, para o mercado de trabalho, seja lá o que isso for, na retórica da “excelência e do rigor”, na retórica dos exames e dos rankings, na retórica da “livre escolha”, na retórica da comparabilidade com diferentes parceiros europeus e mundiais.

Ora, como escreve, e bem, António Pinho Vargas “uma das tarefas mais importantes é recusar os termos em que nos querem obrigar a falar e pensar”. E esta recusa é uma das tarefas importantes que a comunidade, os artistas, os programadores, as escolas e os professores não podem ignorar.

De facto, falar e pensar fora do lugar, fora desta linha ideológica que nos é imposta, é falar e pensar nas escolas e na educação, pública e/ou privada como espaços de construção de liberdade, de cultura e de formação complexas, em que o tempo lento necessário ao desenvolvimento e à apropriação de saberes não se compadece com a ligeireza com que se pretende reduzir a educação a exames.

Falar e pensar na qualidade das escolas e da formação ministrada é falar e pensar que esta qualidade varia na razão direta do investimento financeiro, simbólico, organizacional, autonómico, comunitário, intergeracional, profissional.

Sem isto não é possível o desenvolvimento da democracia nem de uma sociedade mais culta capaz de lidar com as complexidades e paradoxos das sociedades contemporâneas.
Sem isto não é possível potenciar as pessoas que existem nas pessoas, nem os saberes diferenciados de que são portadores. Sem isto somos nada como pessoas. Somos nada como comunidade. Apenas produtos que, como tal, podem ser descartáveis, consoante os interesses e os poderes, financeiros e outros, em presença.

Se se tem de tirar lições da crise, esta crise “diz-nos que se não apostarmos na Educação, na Cultura e na Ciência, teremos naturalmente grandes dificuldades” (Guilherme d’Oliveira Martins, Público, 24 de Novembro 2013, p. 35).

Daí a importância e a necessidade de estimular a educação artística, musical e cultural, a importância e a necessidade dos decisores políticos e da sociedade em geral olharem para a Educação, para a Ciência e para a Cultura como um bem público essencial nas sociedades contemporâneas.

Daí a importância e a necessidade de um maior investimento. Daí a importância e a necessidade de políticas consistentes, articuladas que estejam para além do imediatismo, que estejam para além de importação acrítica de modelos. Caso contrário, dificilmente se consegue fazer o que importa fazer: que as escolas e a educação sejam territórios do imaginário, da imaginação, da criatividade, do aprender a viver individualmente e em coletivo, do contrariar as tendências hegemónicas e seletivas, do aprender a ser-se, do aprender a lidar com o conhecimento. Em confronto e em complementaridade com os outros, com os saberes, com a sociedade, com o trabalho, com a cultura.

Fora disto, e o que tudo isto significa, tudo o resto é contribuir para o empobrecimento das escolas, da educação, dos indivíduos, da sociedade, da democracia.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

coisas praticamente sem interesse nenhum (II) ...

mesmo assim, e para quem estiver interessado, amanhã dia 5 vou apresentar uma comunicação, a 11ª e última este ano, no III Simpósio sobre os Paradigmas do Ensino do Instrumento Musical no Séc. XXI na Universidade de Évora.

A reflexão tem como título "O ensino do instrumento musical no século XXI - das problemáticas e dos desafios" em que partindo das características do exercício das profissões artísticas em geral e de músico (multiactividade, policentrismos, intermitência) defendo a ideia de que este tipo de formação se inscreve num território de fronteira situado entre diferentes tipos de culturas, modelos, estéticas e técnicas artísticas e musicais pelo que importa reolhar a formação superior e não superior deste tipo de profissionais atendendo aos tempos complexos, competitivos, incertos e paradoxais das sociedades contemporâneas ocidentais e à importância do desenvolvimento de competências multi-situadas onde a interligação entre a técnica, a criatividade, a pesquisa e a contemporaneidade se afiguram como alguns elementos pertinentes desta formação. Não esquecendo, como escreveu Madalena Perdigão em 1979, que se exige “ao artista de hoje, para além do domínio das técnicas do seu campo específico, uma compreensão profunda dos problemas inerentes à sua profissão e uma abertura de espirito relativamente aos outros campos de conhecimento e aos restantes campos de actividade” .

terça-feira, 5 de novembro de 2013

dos encontros, dos saberes e da partilha -

Num tempo em que tudo parece ruir à nossa volta, em que o presente e o futuro se afiguram incertos, o ouvir, o interpretar e o criar, nas suas múltiplas ramificações políticas, artísticas, formativas e pessoais, constituem-se como fatores relevantes nos nossos quotidianos. Assumindo a pedagogia da audição e da escuta como uma filosofia, arte, ciência e técnica, o ouvir, o interpretar e o criar relacionam-se e são entendidos como processos dinâmicos e complexos que envolvem componentes sociais e culturais, físicas e intelectuais, técnicas e estéticas, bem como temporalidades diferenciadas.

Esta relação não está fora de um contexto do humano e da cidadania, que está para além da burocratização do pensamento, da profissão e da hegemonia de determinados saberes e modos de fazer e em que a escola desempenha um papel fundamental. Como escreve António Carlos Cortez no Público, 24 de Outubro 2013, que “a burocratização da docência estabeleceu entre o aluno e o professor uma relação artificial. Não há o que Paulo Freire preconizava: a educação como consolidação da vida humana. A Arte, a Literatura, a História e a Filosofia, a Música e outras disciplinas que deveriam constar dos currículos (Cultura Geral, História das Mentalidades, ou das Religiões …), essas é que são as aprendizagens promotoras da cidadania”. Acrescenta este autor que “um país que se queira civilizado, justo e livre, não pode esquecer que a escola é o pilar. É na escola que a cultura desse país se vive, se deve estudar, alargando a compreensão do humano. O ensino exige leitura silenciosa e ponderada do mundo, algo que o mundo “proactivo” detesta” (pp. 54-55)

A pedagogia da audição que relaciona o ouvir, o interpretar e o criar exige também um tempo de escuta ou o ouvir com tempo e uma leitura silenciosa e ponderada da diversidade dos mundos artísticos, musicais, sociais e culturais, em que se interliga o passado, o presente e o futuro e onde as aprendizagens se processam de modos diversos, nem sempre programáveis e redutíveis a apenas uma ordem, aparentemente normal e natural, das coisas.
Por tudo isto, não há aprendizagem sem afetos. Sem pessoas. Sem relações diversificadas. Sem partilhas. E estas partilhas não estão isentas de tensões acerca do que se sabe e do que não se sabe. Do que se apropria e do que não se apropria. Do que se mantém e do que é preciso mudar. Da projeção do futuro.

No entanto, “o futuro não deve ser utilizado como manobra de diversão para nos fazer esquecer o aqui e o agora. A posição mais ética em relação aos tempos vindouros é a de deixar o maior número possível de opções abertas para as próximas gerações. Mas, para isso, é necessário investir num presente melhor. Só assim é que o futuro terá verdadeiramente futuro” (Patrícia Vieira e Michael Marder, Público, 27 de outubro 2013, p. 54)

Na contração do futuro e na expansão do presente, para utilizar as palavras de Boaventura de Sousa Santos, é certo que tudo é incerto menos a importância do conhecimento, das ideias e de projetos que "fora do lugar" trazem beleza, trazem lugares e relações nem sempre muito evidentes.

Todos e todas, de diferentes modos, somos poucos para ajudar a construir uma profissão, um trabalho artístico-musical e uma sociedade mais culta e democrática atenta à diversidade do mundo, como fala e escreve, António Pinho Vargas. Com saber, inteligência, afetos e criatividade, possíveis antídotos para estes tempos sombrios, cada um de nós é co-construtor das aprendizagens e não apenas meros consumidores e recetores de saberes impostos e hegemónicos. Para trazer mais tempo aos tempos.

in apemnwesletter, outubro 2013

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Começar de novo: contra a violência dos dias e das políticas, não desistir. Nunca.

São tempos de (re)começos.

Mas como começar de novo quando o final do ano letivo foi o que foi e o início deste ano é o que é e quando a “novilíngua política” fala em requalificação quando o que está em marcha são despedimentos, quando se fala em normalidade mas o que existe é, no mínimo, impreparação, irresponsabilidade, insensibilidade, cegueira?

Como começar de novo quando se fala em rigor, excelência e autonomia mas o que se tem são “mega ajuntamentos”, aumento do número de estudantes por sala, redução de saberes nos currículos, redução de professores, reduções e mais reduções bem como o incremento do controlo político, administrativo, científico e pedagógico?
Como começar de novo quando se torna “cada vez mais insuportável a notícia diária da paulatina destruição da escola em Portugal” e onde “ qualquer recuo na melhoria da escola pública é […] uma decisão consciente a caminho da exclusão, o que acarreta um ataque grave à democracia”? (Valter Hugo Mãe, Jornal de Letras, 18 de Setembro 2013, p. 34).
Como começar de novo quando a violência dos dias e das políticas conduzem a situações em que escolas, professores, estudantes, famílias, comunidades se sentem constrangidos pela insegurança e pelo medo do presente e do futuro?

Ora contra os diferentes tipos de violências simbólicas, políticas e profissionais “o tempo que está em falta é o tempo da política, o tempo da cidade, que usamos para falar dos nossos destinos comuns” (Pedro Bismark, Público, 23 de setembro 2013, p. 29). E este “tempo da política” e o “tempo da cidade” e da cidadania da educação artística e musical (e dos seus profissionais) consciente e assumidamente marginalizada em detrimento dos designados “saberes úteis”, implica um pensamento e ação concertada, policentrada, e partilhada que conjugue, pelo menos, dois aspetos essenciais: a criatividade e as interdependências colaborativas.

Criatividade. Uma das funções da educação artística e artístico-musical é a de ativar os recursos do imaginário e da criatividade e em particular estimular modos de resistência em relação ao fechamento e à reprodução acrítica de modelos e de modos organizacionais e pedagógico-artísticos, de forma a desenvolver a apetência pelo risco do desconhecido. Importa assumir a diferença e lidar com as dimensões criativas e imprevisíveis do ato artístico e do ato de aprender e de construir uma identidade pessoal, cultural, social, humana.

Interdependências colaborativas. A perspetiva de organizar o trabalho educativo-artístico de um modo mais denso e complexo implica uma maior cooperação entre as instituições de formação e as instituições culturais, entre os professores e os artistas, entre modos mais formalizados e menos racionalizados de formação bem como uma maior responsabilidade coletiva no desenvolvimento da educação artístico-musical em que interagem a complementaridade e a diferenciação de pressupostos, projetos e intervenções formativas, culturais e artísticas para a construção de pontes entre as atividades musicais, os recursos, os saberes e as comunidades.

Por outro lado, e atendendo à reconfiguração do papel do Estado nas sociedades contemporâneas, o associativismo afigura-se não só como uma modalidade de congregação de vontades e de projetos, mas sobretudo, e sem cair em qualquer espécie de corporativismo, como uma modalidade de coordenação da ação em que a voz e o olhar de cada um se faz ouvir no coletivo.

A APEM, e na medida das suas possibilidades, tudo fará para que estes tempos possam ser encarados de outros modos na defesa de uma educação artística e musical, e dos seus profissionais, que seja um instrumento que potencie a construção de uma democracia mais culta, onde, numa rede de interdependências várias, saberes e experiências, crianças, jovens, adultos, professores e comunidades participem e se revejam.

É um trabalho de todos e de todas. Por isso é preciso não desistir. Não desistir nunca.

Sem medos.

in ApemNewletter, Setembro 2013

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Uma coisa em forma de assim *


São tempos difíceis estes em que vivemos e em que também as artes e a cultura na escola parecem estar, cada vez mais, colocadas à margem e numa situação problemática de empobrecimento. Quer para os professores quer para o desenvolvimento de uma formação que se quer rica e plurifacetada. E este empobrecimento manifesta-se de múltiplas formas, desde a “promoção do entretenimento de êxito fácil” à não promoção da educação artística e musical, esquecendo-se muitas vezes que “a saída da crise é pela cultura e pelo conhecimento, única forma de termos cidadãos com capacidade de compreender o mundo” (Público, 2, 27 de Janeiro de 2013, p. 40).

Ora, apesar do “descanto do mundo”, de que fala Max Weber, “nem tudo o que se passou está perdido; nem tudo o que se perdeu é substituído; nem tudo o que não foi substituído é insubstituível” (Carl Gustav Jochmann, citado por António Guerreiro). Por isso, nestes tempos de burocratas, autocratas e burocracias indizíveis e bem presentes nos nossos quotidianos, em que longos anos têm cem dias; em que atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir; em que se mudam os tempos e as vontades, o ser e a confiança; em que “todo o mundo é composto de mudança; tomando sempre novas qualidades”; “troquemos-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança” (José Mário Branco).

Troquemos-lhes as voltas porque “uma espuma de sal bateu-me no alto da cabeça,/nunca mais fui o mesmo,/passei por todos os mistérios simples, e agora estou tão humano: morro,/às vezes ressuscito para fazer uma surpresa a mim mesmo […]”. E neste fim de ano letivo, em que o fim também se afigura como um início e reinício, um ressuscitar para fazermos uma surpresa a nós mesmos com “paixão: tirar,/pôr, mudar uma palavra, ou melhor: ficar certo/com a vírgula no meio da luz […]”(Herberto Helder).

Porque "esta coisa da música tem um poder que nem sequer controlamos... e aí reside o seu mistério máximo" (António Pinho Vargas); porque “a pulsão criadora, sendo livre, nascendo da liberdade, é modificadora no melhor e mais pleno sentido da condição humana” (Yvette Centeno, Público, 6 janeiro, 2013, p. 17); porque a educação artística e musical é uma dimensão fundamental em de todo este processo.

E se, como escrevi num outro texto, “educar é transformar”, isto significa a existência de uma relação dinâmica que é portadora de uma tensão fundamental situada entre aquilo que já se conhece e o caminho para algo que ainda não se sabe muito bem o que será. Que ainda não está devidamente apropriado. E se isto pode criar algum desconforto inicial, e provoca, as artes e a educação artística, “[…] podem ser um instrumento importante no desenvolvimento desta tensão criativa, entre o que é e o que ainda não. Particularmente na criação de novos imaginários individuais e coletivos. Isto, porque entendo as artes e a música não só como modalidade de entretenimento, que o é, mas, sobretudo, como forma de interpelação do mundo. Dos mundos. Reais e imaginários...."

Contra ventos e marés.

*Título de um livro de Alexandre O’Neil

in Apemnwesletter, Junho/Julho 2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Não há professores a mais. Há educação artística e musical a menos

As transformações políticas em relação ao papel do Estado na sociedade portuguesa contemporânea, colocam na ordem do dia a questão da existência de “excesso” de professores, com o argumento dominante assente na diminuição da taxa de natalidade.

Ora este argumento, tendo uma componente de verdade, não deixa, contudo de ser profundamente falacioso, entre muitas razões, por se ignorar as medidas que contribuíram decisivamente para a ideia de excesso de professores: criação de mega-agrupamentos e o encerramento de inúmeras escolas, incremento de crianças e jovens por turma, revisão e empobrecimento curricular com a redução de tempos lectivos de algumas disciplinas e abolição de outras.

O caso da educação artística e musical, nas suas várias componentes e tipologias, representa como que um fim da linha das políticas públicas, que se recentram no que, pretensamente seria mais útil para a tal sociedade e economia competitiva.

A introdução dos exames no final do 1º ciclo do ensino básico, de que não sou contra, condiciona logo, a partir do 2.º ano de escolaridade, a gestão curricular e a organização pedagógica quando as fichas, avaliações e testes, relegam para uma quase nulidade, outros tipos de aprendizagens e de saberes que não sejam aqueles que vão constar nos exames. Tudo isto representa um enorme erro científico, pedagógico e, sobretudo formativo, com consequências bastante previsíveis para os desenvolvimentos futuros, apesar de todo o esforço e dedicação de um conjunto alargado de professores e professoras em resistir e em programar uma ação educativa onde se integra a educação artística e musical.

Como escreveu o Conselho Económico e Social Francês, em 2004, “a valorização quase exclusiva de certas qualidades intelectuais em detrimento de outras […] pode revelar-se penalizante não só para certas crianças como para a sociedade”. Daí a urgência de se “reconsiderar o lugar e a natureza do ensino das disciplinas artísticas e da educação artística na escola […] como uma dimensão cuja qualidade contribui para a formação do carácter das crianças”, abrindo “novas perspectivas sobre os outros e sobre si próprias”, instalando “uma pedagogia do fazer e do viver em sociedade”, permitindo que as crianças e os jovens “acedam a valores colectivos” e podendo “ajudar a combater certas fontes de insucesso escolar: a inapetência e o abandono escolar, […] a impressão de que a escola é um lugar de despersonalização e de ausência de partilha de emoções, a falta de compreensão das relações entre o que se aprende na escola e as realidades sociais, profissionais e pessoais”.

Nestes tempos difíceis e de pensamento (quase) único, em que aparentemente não existem alternativas ao modelo que se quer impor, é preciso afirmar, alto e bom som, e até que a voz nos doa, que existem múltiplas alternativas. E uma delas assenta no facto de que, nas sociedades contemporâneas, o que torna a educação e a formação das crianças e dos jovens mais rica e plural é a existência de escolas pensadas e organizadas como “laboratórios de cultura e de cidadania”, como refere Anthony Everitt. Laboratórios de cultura e de cidadania que contribuam decisivamente para a preparação de cidadãos aptos para viverem em tempos complexos e incertos, com competências diversificadas, capazes de produzirem ideias criativas e inovadoras, aptos para enfrentarem e responderem a novos e diferentes tipos de desafios e de riscos.

Por isto, e tudo o resto, não há professores a mais. Há é educação, e educação artística e musical, a menos.
(in APEMNewsletter, maio 2013)

terça-feira, 7 de maio de 2013

Aos tempos sombrios contrapõe-se a inteligência, o saber, a resistência e a unidade


Tempos sombrios estes em que vivemos onde a educação em geral, e a educação artística e musical em particular, bem como os seus profissionais, são descartáveis em nome de uma ideologia que está assente numa retórica de contrariar o “desperdício do Estado”, apesar da agiotagem dos juros que são pagos e das fortunas que ganham alguns países, instituições e pessoas individuais e coletivas.

Tempos sombrios estes em que vivemos em que os orçamentos para a educação e a cultura são os mais baixos das últimas décadas, em que a criação dos mega-agrupamentos, das metas curriculares, em nome da “eficácia” e da “qualidade”, esconde uma política reducionista da intervenção do Estado na educação pública. Da redução dos professores, da redução das aprendizagens, da redução dos serviços, da redução da democracia, da redução da cultura, da redução do presente e do futuro.

Tempos sombrios estes em que vivemos em que a luta pela sobrevivência, a incerteza do hoje e do amanhã, coloca professores contra professores, disciplinas contra disciplinas, escolas contra escolas, territórios contra territórios, numa competição e numa espiral de violência simbólica sem precedentes.

Tempos sombrios estes em que vivemos onde a educação parece estar cada vez mais resumida ao trabalhar para os exames, trabalhar para os exames, trabalhar para os exames. E cada vez mais cedo. Exames de modo a que se apareça bem colocado nos rankings. Como se tudo se pudesse medir. Como se o processo complexo de educação e de formação pudesse ser traduzível, apenas, em folhas Excel.

Tempos sombrios estes em que vivemos onde as artes e a cultura parecem querer ser apagadas dos mapas das escolas públicas em nome de uma utilidade e eficácia da educação e da formação para o mundo do trabalho e da competitividade (o que quer que isto signifique).

Contudo, nestes tempos sombrios em que vivemos, cada um de nós, as crianças e os jovens, a educação e a cultura, as escolas e as comunidades, o presente e o futuro merecem mais do que este tipo de políticas, nacionais e europeias, “do quanto pior melhor”, como refere António Nóvoa e, neste contexto, “é sobretudo nas épocas mais escuras que o nosso impulso para a claridade deve ser maior” (Carlos Fiolhais, Público de 18 de Abril, p.43).

Para que haja e continue a haver música na escola, e todas as outras artes, é preciso assumir de uma vez por todas e sem concessões que, como se escreveu numa canção, “é mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa”. Com inteligência, saber e, sobretudo, não embarcando em disputas de uns contra os outros é que ganharemos forças em conjunto para resistir. Repito, as crianças e os jovens merecem-no. Nós também. Pelo trabalho que realizamos, pela valorização do nosso trabalho. Pelo nosso presente. Por uma democracia mais culta.
in ApemNewsletter, abril 2013

quarta-feira, 27 de março de 2013

A formação contínua de professores numa era de incertezas e de absurdos

Escrever, de um modo sintético, sobre a formação contínua de professores de educação musical e de música, num tempo caracterizado por incertezas e absurdos, no que se refere às políticas públicas no âmbito da educação e do desenvolvimento profissional dos professores, parece ser uma tarefa condenada ao fracasso e à inutilidade.

Fracasso e inutilidade uma vez que não só existe o congelamento das carreiras profissionais como também o desemprego e a instabilidade dos que têm trabalho se afiguram dimensões que entraram em definitivo nos quotidianos profissionais e particulares de cada um de nós. Nunca ao longo da História da Educação Pública em Portugal e da História da Profissionalidade docente, e em democracia, se viveram tempos que atingissem tão profundamente, e quase exclusivamente, uma das classes profissionais mais qualificadas do país.

Ora, convém relembrar que no relatório Mundial de Educação de 1998, editado pela Asa, a Comissão Internacional da Educação para o século XXI da UNESCO, refere não só que “o tempo de aprender á agora a vida inteira”, como também “os professores têm um papel crucial a desempenhar na preparação dos jovens não só para que estes enfrentem o futuro com confiança mas para que o construam com determinação e responsabilidade”. Por sua vez, Frederico Mayor, enquanto Diretor-geral da Unesco escreve no prefácio que “os professores merecem todo o nosso encorajamento e apoio”.

Lidas hoje estas frases parecem pertencer a um domínio de ficção científica.

Assim, e num momento em que tudo parece ruir à nossa volta, e de, muitas vezes, a falta de perspetivas presentes e futuras nestes tempos absurdos, o investimento em nós, de que fala Claude Dubar, é algo que se apresenta como uma das dimensões estruturantes de construção não só da nossa profissionalidade como também um instrumento de reconfiguração das nossas práticas e de preparação e segurança no futuro por mais incerto e imprevisível que ele se afigure.

A APEM, dando continuidade ao percurso iniciado pelos seus fundadores no início da década de setenta do século passado, procura, à sua maneira, contribuir para que a incerteza e imprevisibilidade dos futuros sejam contrabalançadas com saber e conhecimento.

E se há um grande desrespeito político e de políticas por esta classe profissional nós pelo menos temos de nos respeitar enquanto pessoas, enquanto educadores, enquanto profissionais competentes e sabedores e, contra ventos e marés, continuar a desempenhar o nosso crucial papel na preparação das crianças e dos jovens. Para que possamos pensar e contribuir para que tenham outros futuros.

Se não cuidarmos de nós quem cuidará?
(in ApemNewsletter, março 2013)

quinta-feira, 21 de março de 2013

educação artística e musical (V): há muitos sons, há muita música, há muito tudo nos objetos mais improváveis

educação artística e musical (IV): o caminho faz-se caminhando...

e como, graças ao trabalho das escolas, professores, estudantes, famílias, já há tantos e diferentes projectos que dão gosto de ouvir e ver. pelo que significam em termos de trabalho. em termos de presente e em termos de futuro. sinais muito positivos nestes tempos duros. a bem das crianças e dos jovens, da educação, da cultura e da democracia. a bem de uma sociedade mais culta e plural.

educação artística e musical (III): porque sem memória não há identidade, nem presente nem futuro

porque a escola não é uma empresa, ou uma máquina de fazer exames mas um lugar de saber e de conhecimento, onde se aprende, se vive, se partilha e se ajuda a construir outros olhares sobre si próprio e sobre o mundo. e como muito bem escreve Antonio Cesar Almeida Santos "é importante que as escolas, as de música e todas as outras, tenham o presente; é nele que se ancoram as memórias e é dele que se projeta o futuro. A luta é pelo agora, para a memória não ser apenas a lembrança do que se perdeu. Como lugar de produção de saber e conhecimento, a escola nos ensina que "quem sabe faz a hora, não espera acontecer"!

quarta-feira, 13 de março de 2013

educação artística na escola: há outros mundos e saberes para além da hegemonia das disciplinas ditas importantes


“Não seremos capazes de promover uma melhoria acentuada nas taxas de sucesso enquanto circunscrevermos os curricula a uma hegemonia de disciplinas de base científica e tecnológica. A diversidade das matérias e das disciplinas lecionadas deve ser maior, deve atrair a escola outros saberes, outras formas de abordar os problemas da vida e da sociedade. O teatro, a dança, as artes devem entrar nos muros da escola pela porta grande. Têm o mesmo mérito e importância que a física, a matemática, a química, as línguas, a geografia ou a biologia. Informam do mundo e da vida. Onde está escrito ou demonstrado que é o conhecimento de natureza científica e tecnológica que mais realiza os homens? Que estudos fundamentam ou sustentam tal premissa?” (Daniel Rijo, Público, 13 de março de 2013, p. 46)

Carlos Araújo Alves escreve como comentário a este texto que: "defendo exactamente assim, mas conheço o risco de interpretar esse não circunscrever a hegemonia a disciplinas de base científica e tecnológica a desvalorizá-las. Há que quer muito cuidado para nada se subestimar e conseguir-se constituir um currículo que seja abrangente, mas sem prejuízo da qualidade e a exigência."
Concordando com a afirmação, no entanto algumas das questões que se colocam dizem respeito por exemplo às singularidades e complementaridades entre diferentes saberes e à importância de se lidar com esta diversidade e particularismos e não uma dimensão acrítica e uma narrativa dominante centrada exclusivamente em determinados saberes . Por outro lado no plano da educação artística o fato de que "querer ser igual às outras disciplinas" tem, do meu ponto de vista, impossibilitando a assunção das características do trabalho e do ato artístico nos planos criativos, interpretativos, científicos, filosóficos, técnicos (etc) e no seu confronto com as outras áreas e os diferentes públicos, quer no que diz respeito às artes do palco quer às outras formas de arte. O que me perturba são as exclusões, as hegemonias, os pensamentos únicos e as dificuldades de se lidar com o diferente e com as dimensões criativas e imprevisíveis do ato de aprender e de construir uma identidade pessoal, cultural, social, humana. No fundo de não se saber (querer?) lidar com a complexidade e reduzi-la a algumas dimensões que se podem "medir". E sabemos bem as consequências sociais, culturais, artísticas e políticas de se reduzir a complexidade das coisas...
 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A educação artística e musical e a política: dos círculos viciosos a círculos virtuosos

As relações entre as Artes, a educação e as políticas educativas públicas desde o 25 de Abril de 1974 têm-se apresentado como contraditórias e paradoxais. A par da afirmação retórica da sua pertinência na formação das crianças, dos jovens e dos adultos na promoção de uma sociedade mais sensível, criativa e culta, constata-se a dificuldade na construção de políticas públicas, quer no âmbito da educação quer no âmbito da cultura, que deem corpo e cidadania à sua relevância prática e como forma de conhecimento dos diferentes mundos.

Num trabalho recente intitulado “A educação artístico-musical: cenas, atores e políticas” identifiquei 47 intervenções, entre especialistas e grupos de trabalho que, no período compreendido entre 1971 e 2009, procuraram, de diferentes modos, pensar, reorganizar e operacionalizar a relação entre as artes e a educação. Emanados dos diferentes poderes políticos, muito raramente o que foi proposto foi assumido pelos poderes que fizeram a encomenda. E existem propostas de altíssima qualidade, fundamentação e sentido de futuro.

Este círculo vicioso apresenta diferentes formas e tipos de argumentos, mesmo em termos internacionais, onde predominam teses em que se retomam “o ler, escrever e contar”, bem como a funcionalização da formação tendo em conta a ideia de um previsível e futuro mercado de emprego e de trabalho. Ora o que também se constata é que nem o mercado é previsível nem a excessiva funcionalização da formação é determinante na construção de um percurso de vida profissional. São múltiplos os fatores individuais, sociais, culturais, económicos e formativos que interagem nesta relação entre a formação, o emprego e o trabalho.

Tudo isto vem a propósito de mais uma recomendação sobre Educação Artística elaborada pelo Conselho Nacional de Educação (Recomendação n.º 1/2013, DR, 2.ª série - N.º 19 - 28 de janeiro de 2013, pp. 4270-4273) em que se afirma que a “importância da educação artística para todos os envolvidos no sistema de educação e formação reúne hoje um consenso alargado. Decisores políticos com responsabilidade na matéria, passando por investigadores e profissionais ligados à educação, até às mais diversas instâncias da sociedade, reconhecem esta área como fundamental, tanto para o desenvolvimento individual como para o desenvolvimento da sociedade”.

No entanto, “Portugal está longe de conseguir a concretização da educação artística que se entende como desejável e que tem sido conseguida em outros países. Ainda que ela se mantenha estabilizada em academias específicas e se tenha ampliado a setores da população a que antes não chegava - nomeadamente por via das parcerias com conservatórios de música e outros equipamentos culturais disponibilizados pelas comunidades -, não se pode negligenciar o facto de uma grande parte das crianças e jovens ficar privada de aprendizagens artísticas de diversos tipos ao longo da sua escolaridade e numa lógica de continuidade e coerência” (p. 4270). Os diferentes tipos de recomendações do CNE, de indispensável leitura e reflexão, situam-se nos planos (a) do currículo e da organização dos ensinos básico e secundário, (b) ao nível da formação de professores e educadores, (c) ao nível das escolas e das autarquias, (d) e ao nível da investigação, da coordenação e da articulação política e das políticas.

Deste parecer e da sua, mais uma vez, ineficácia política, resta constatar que, apesar dos políticos e das políticas, muitos são os projetos que de norte a sul do país e ilhas, em diferentes tipos de modalidades, formatos, parcerias envolvidas e estéticas, contribuem para ir contrariando os círculos viciosos existentes nos poderes e nos responsáveis políticos, procurando criar círculos virtuosos que contribuam para dar corpo à perspetiva de que “uma educação republicana é uma educação culta" (Joaquim Sapinho). (in Apemnewsletter, fevereiro 2013)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Contributos para a História do Ensino de Música em Portugal (II) - João de Freitas Branco e o ensino de música: uma questão de cultura e de democracia


Introdução[1]

Da atividade plurifacetada e multi-situada de João Franco Branco em torno da música e da cultura o trabalho desenvolvido no âmbito do ensino de música, desde a sua intervenção enquanto membro do governo e da administração à participação em diferentes grupos de trabalho, elaboração de estudos e de propostas para este tipo de educação e formação, apresenta-se como uma dimensão relevante no trabalho desenvolvido.

Partindo do conceito alargado do que é “saber música” e concebendo as escolas artísticas, e em particular os conservatórios de música, como “centros de cultura”, o trabalho realizado no plano do pensamento e da intervenção consubstancia-se na articulação entre diferentes esferas da educação e da cultura, entre diferentes modos e modalidades, envolvendo profissionais, amadores, investigadores e técnicos, em que emerge a defesa das particularidades deste tipo de formação, quer em termos de organização quer em termos de administração e das suas relação com o Estado.

Neste contexto, e tendo por base os trabalhos realizados por João de Freitas Branco, no âmbito das propostas de reestruturação do ensino da música, da formação de profissionais e de amadores, bem como de textos publicados na imprensa, esta comunicação procura dar a conhecer as principais perspetivas sobre o ensino de música, os referentes do seu pensamento e intervenção e defender que todo este trabalho assenta na defesa da dupla referencialidade deste tipo de formação, articulando a educação e a cultura (estruturas de formação, de criação e de produção), profissionais e amadores e que as suas conceptualizações se situam numa visão alargada e cosmopolita da convivialidade entre diferentes tipos de culturas e saberes musicais, no plano local, nacional e internacional, e na construção de uma sociedade democrática mais culta e plural.

Assim esta comunicação está dividida em três momentos. No primeiro, intitulado “Música, Educação e Cultura”, e apesar da sua incompletude, apresento, através da voz de João de Freitas Branco algumas das principais ideias que consubstanciam o olhar que defendo; no segundo “Contributos para a compreensibilidade do pensamento e ação” discuto e problematizo algumas dimensões dos seus referentes que, do meu ponto de vista, ainda encontram ecos na sociedade portuguesa e que não estão plenamente resolvidos; por último apresento algumas considerações finais. 

Música, educação e cultura

Neste ponto, apresento algumas das principais ideias que JFB desenvolve acerca do fenómeno educativo e musical tendo em conta o ponto de vista que procuro defender. Isto é que a perspetiva de JFB sobre o ensino de música só adquire sentido, projeção e se transforma em agente de desenvolvimento social e cultural numa interdependência de fatores que emanam da educação e da cultura, da criação, interpretação e estruturas de produção e de difusão, numa visão alargada situada entre referentes cosmopolitas e a sua contextualização nacional que interligam a formação de profissionais e de amadores, o papel do Estado e a diversidade de atores.

Num texto intitulado “Educação Estética – Funcionalidade da disciplina de estética em diferentes ramos e graus de ensino”, apresentado no Seminário Internacional sobre “Educação Musical e sobre Música no Ensino Especial”, publicado na revista da APEM em Abril/Junho de 1985, JFB faz a apologia da pertinência da educação estética em todos os níveis de ensino musical: do ensino infantil ao ensino superior, do ensino de amadores ao ensino de profissionais, músicos e professores. Esta “Educação Estética” tem como propósito não só contribuir para a complexificação do trabalho formativo, como também, constituir-se como um instrumento que permite questionar alguns dos dogmatismos existentes, para além de possibilitar a construção de uma democracia mais culta, como uma espécie de contraponto à “massificação politicamente programada”, ao “superficialmente agradável” “ao nivelamento da valoração estética por baixo, com o mais ou menos desígnio encapotado de isolar as artes e letras verdadeiramente emancipadoras da inteligência, da afetividade e da vida ativa individuais e coletivas […]” (Branco1985,: 7-8)

A apologia deste tipo de educação assenta, por outro lado, “no pressuposto duma sociedade florescente no campo do ensino e da vivência musical” uma vez que “disciplinas de estética ganhariam projeções excelentes no progresso de musicalização do estudante e do ouvinte genéricos, isto é, da generalidade da população. Contribuiriam grandemente para o acréscimo do rendimento sócio-cultural de riquíssimos patrimónios artísticos não limitados pelas fronteiras dos respetivos países[2]. Branco, 1985:7).

Das ideias expressas neste texto ressaltam um conjunto de indicadores que constituíram alguns dos referenciais dominantes na conceptualização da relação música, educação e cultura como fatores de desenvolvimento pessoal e coletivo e na crítica não só à mediania existente como também no encontrar perspetivas para que a vida musical no seu todo, de que o ensino era uma das componentes, fosse mais rica e plural.

Desde logo a conceptualização do que é a música, que sustenta muitas das suas posições em relação à educação e à formação. Para João de Freitas Branco, “aquilo que vulgarmente se chama “música” não se reduz a notas e pausas desenhadas sobre linhas, nem a uma determinada concretização sonora desses sinais gráficos, boa ou má em si mesma, entendida em pura objetividade. Ela é um processo complexo” envolvendo o que designa por “cadeia da comunicação musical[3], com os seus vários mecanismo, incluindo os de “feed back”, ou auto-regulação”. E “se, em certa medida, valores estético-musicais podem dizer-se objetivos, eles só o são relativamente a certas cadeias da comunicação. Cadeias de que ainda muito mais depende a atribuição desses valores a esta ou àquela “música”, a ponto de tal valoração parecer totalmente subjetiva” (Jornal de Letras, Ano I, n.º 23, 5 a 18 de Janeiro de 1982, p. 21, REG1998).

Esta conceptualização parte de duas premissas essenciais. Por um lado, a designada música erudita como elemento estruturante da cultura e por outro a relevância de todas as formas artístico-musicais, contrariando uma das tensões existentes no contexto da cultura musical assentes em dicotomias entre diferentes tipos de cultura.

Contudo, se “toda a música só é boa para alguém” afigura-se pertinente a “diferenciação do complexo das práticas musicais, com os seus segmentos de variação contínua e as suas soluções de continuidade sem retomar às divisórias horizontais e consequentes hierarquizações de altas, médias e baixas culturas” (Branco, 1985: 8). Por outro lado, considerando que “o maior problema da cultura musical portuguesa não consiste, hoje, na falta de produção, mas sim na de consumo” salienta que “é preciso criar um outro e muito mais extenso público afeto à arte musical de nível superior, para que esta possa exercer a sua preciosa ação educadora de povos. A ópera é um dos melhores veículos do gosto pela arte” (Branco, 1964: 727 RevJMP).

Apesar da sua crítica aos dogmatismos existentes[4] e a abertura a uma pluralidade de mundos musicais[5] Freitas Branco, sonhando com uma efetiva democratização da prática e da fruição musicais considera que “a grande função social de que a boa música é capaz só poderá cabalmente exercer-se quando as solicitações vierem de muito maior percentagem da população, o que pressupõe a reforma do ensino musical nas escolas primárias e secundárias. De um outro modo, só muito lentamente será possível oferecer aos habitantes de pequenas localidades a inestimável vivência artística através do som, à qual se obstinarão em resistir, fechando-se de boa fé no seu acanhado mundo de empregos, cafés, clubes e comentários desportivos” (Branco, 1959: 209).

Com efeito, se a atividade musical, em particular a realização de “bons espetáculos musicais”, é considerada um elemento estratégico para o desenvolvimento cultural da sociedade portuguesa, duvida-se dos seus resultados se não existir uma boa formação musical nas escolas: “[…] a realização de bons espetáculos em localidades musicalmente menos (ou nada) desenvolvidos contribuem para a criação de uma cultura, no domínio da arte dos sons. Mas duvidamos que os resultados se atinjam com razoável brevidade se não se olhar a sério à instrução musical, nas escolas, e se os espetáculos se não se multiplicarem em abundância daqueles que mais suscetíveis são de revelar, pode dizer-se que de um instante para o outro, os potenciais de boa música. A saber, o concerto sinfónico e a ópera” (Branco, 1967:118 REJMP critica ao 10º Festival Gulbenkian de Música)

Deste modo, considera que “a educação musical infantil” como o fator mais importante “do desenvolvimento da música em Portugal, no sentido em que mais interessa que ele se verifique: com incidência sobre a generalidade da população, e em seu próprio benefício” (Branco, 1962: 80-83RevJMP). Educação musical infantil em que é “de toda a utilidade que se ensaiem diferentes métodos, para que seja a experiência a ensinar o mais conveniente”. (Branco, 1962:81RevJMP A propósito do um livro de Joel canhão relacionado com a educação musical).

A utilidade de se ensinarem diferentes métodos assenta numa crítica à existência de um “fechamento” das estruturas e das metodologias de ensino em relação ao que se passa no estrangeiro e que não tem tido aplicação no contexto português: “os modernos meios de ensino musical, nomeadamente as reuniões nacionais ou internacionais, que, em alguns países estrangeiros, são exemplos de pedagogia viva e estímulos excelentes para os jovens músicos, não têm tido aplicação em Portugal” (Branco,1959:194).

Também no que se refere à formação de profissionais, questiona uma das dimensões que caracterizou a sociedade portuguesa centrada na perspetiva de que a aprendizagem artística, “mesmo entre músicos [era] de que a arte musical era coisa toda de inspiração, de sentimento, de qualidades inatas. Era uma vergonha estudar uma arte[6] (Branco, 1960:39-40). Por outro lado, salienta a importância da atualização dos conceitos e processos composicionais” que “ultrapassa nitidamente a posição da maior parte dos músicos profissionais” criticando o fechamento dos músicos em relação à utilização das “linguagens contemporâneas”, que se situam “à margem da terminologia aprendida nas escolas de música” uma vez que “um pouco por toda a parte, o músico profissional médio tem por inútil qualquer aprendizagem pós-escolar daquilo que ele arruma sob o labéu de vanguardismo” (Branco, 1981) “Saber música hoje e ontem” (Jornal de Letras, Ano I, n.º 19, 10 de Novembro de 1981, p. 31, REg1994)

Neste sentido, João de Freitas Branco, através do comentário que faz a Viana da Mota e Luís de Freitas Brancos, envolvido na reforma do Conservatório vigente ente 1919 e 1938  enuncia as suas perspetivas de transformação do ensino de música: “atitude de combate à maneira romântica, mas onde o ‘lado de cá´ era a inteligência, a cultura, a aspiração à elevação mental, e o ´lado de lá’ uma espécie de analfabetismo intelectual, paradoxo que se torna compreensível nestoutra forma: afetação de intelectualismo, sem conhecimento sequer do á-bê-cê duma verdadeira intelectualidade[7].” (Branco, 1964: 434)

Assim considera que “urge reformar também o ensino especializado de música”, da formação de profissionais, uma vez que “é possível que a venda de aparelhos de rádio e televisão, de discos e de bilhetes para espetáculos musicais bata todos os records de todos os tempos, em Portugal, no mesmo dia em que se tornar inviável a reunião de uma orquestra de músicos portugueses, por inexistência dos mesmos” (Branco, 1959: 209)

Considerando os conservatórios de música como “centros de cultura”, pelas manifestações culturais que desenvolvem para além das “atividades estritamente pedagógicas” (Branco, 1976: 6), promovendo “uma articulação funcional com os departamentos da Cultura” (Idem: 24), João de Freita Branco preconiza, por um lado, que os conservatórios de música poderão ser escolas autónomas com certificação até à licenciatura e, por outro, que o ensino superior das artes performativas, leia-se universitário, não é palco da formação neste âmbito uma vez que os exemplos estrangeiros “ convergem no desaconselhar a integração do ensino musical nas universidades” com exceção “de formaturas pedagógicas e musicológicas, pelas afinidades com as históricas, filosóficas e filológicas” (Branco, 1976, 22). Para Branco, isto decorre de duas ordens de razões: de natureza científica e das características organizacionais e curriculares deste tipo de ensino. No primeiro caso, “a integração do ensino artístico em universidades representa um risco de subalternidade em relação ao ensino científico” risco este que “provém da especificidade do mundo das artes e de certos preconceitos que, embora atenuados pela própria evolução das ideias e dos costumes, ainda exercem grande influência”, e, no segundo, “o ensino artístico, designadamente o de música e de dança é dum âmbito etário mais largo que o do universitário[8](Idem: 38).

Uma outra componente do seu pensamento diz respeito não só ao que considera indissociável a articulação entre a formação e a vida musical nas várias dimensões que isto comporta: “lamentável é a escassez dos grupos corais portugueses, devida principalmente à falta de ensino musical eficiente nas escolas” (Branco,1959:189), como também, dando exemplos da Alemanha e da Hungria, criticando “o hábito português de copiar a França” que “foi uma calamidade” chama a atenção que “assentar em que a solução só pode encontrar-se por via do ensino oficial não autoriza, porém, a um mero aguardar a promulgação de leis e esperar os seus resultados, que levarão gerações a produzir-se de maneira satisfatória. Torna-se necessária uma ação simultânea e bem coordenada, nos sectores da promoção dos espetáculos musicais.” (Branco, 1970: 117-118).

A questão da articulação manifesta-se também na formação de amadores quando salienta que “a distinção entre arte erudita e arte de entretenimento (ou, no ramo particular que aqui está mais em foco, entre música “séria” e música “ligeira”) tende a esbater-se, a ponto de mesmo entre docentes de formação puritana começar a haver compreensão de que também a arte de entretenimento vivencial pode ter lugar em conservatórios e academias. O preenchimento de ócios com a participação em conjuntos “sérios” ou “ligeiros” é um factor social positivo, do que têm consciência os estabelecimentos onde funcionam cursos de música em regime livre, para jovens e adultos. Até nos conservatórios nacionais se dá hoje guarida aos que, destinando-se embora a outras profissões, desejam tornar mais consistentes as suas capacidades de artistas amadores.” (JFB,1976,pp.7-8).

Por outro lado, e tendo em consideração as características das profissões artísticas quer no domínio da criação -“a profissão de compositor é coisa que não existe entre nós” (Branco, 1976:26) quer no domínio da interpretação - “a probabilidade dum intérprete fazer profissão de solista é também diminuta” (Idem) – “as medidas conjuntas e planificadas a tomar transcendem a competência do M.E.I.C., pelo menos na grande medida em que pertencem à Secretaria de Estado da Cultura” impondo-se por isso “uma ação concertada e intensiva no sentido da criação de orquestras, pequenos conjuntos instrumentais e vocais, bandas, em condições verdadeiramente profissionais” Neste sentido, e também por esta via, torna-se “relativamente aos compositores um meio de incentivo profissional […] visto que deverá fomentar-se um reportório de base portuguesa, em constante renovação” (Idem).

Estas considerações têm subjacentes interdependências dinâmicas entre o Estado e uma rede diferenciada de atores, das autarquias, associações de cultura e recreio, escolas. Dinâmicas em que o papel do Estado, como uma das dimensões importantes no desenvolvimento da vida musical, se consubstancia em várias dimensões do apoio às atividades; da descentralização; de organismos coordenadores, de estudo e produção de conhecimento sobre as realidades musicais.

Com efeito, de acordo com a sua perspetiva, cabe ao Estado “assegurar os meios eficientes de educação musical, estendida a todo o País e a todos os graus de ensino, para que não continue desaproveitado um dos melhores meios de elevação mental e de preenchimento de tempos livres da nação. Está implícita nesta rubrica toda uma organização do ensino profissional em conservatórios e outras escolas, para a formação de professores, compositores e executantes.” Por outro lado, “é também ao Estado que pertence promover e fomentar o espetáculo de música séria no País” através de apresentações sistemáticas de orquestra itinerantes, solistas portugueses, récitas de ópera de um modo descentralizado ao longo do ano e “em diferentes centros populacionais do país”, solicitando, estimulando e apoiando “a iniciativa das autarquias locais”. Por outro lado ainda compete ao Estado “exercer uma função coordenadora que, orientada pelo interesse nacional, evite uma evolução ao sabor da livre concorrência e um contante desaproveitamento de potenciais de produção útil[9]. Salienta que a função coordenadora que defende “não deve ser confundida com um dirigismo asfixiante de toda e qualquer iniciativa alheia. Muito pelo contrário, o que dela se depreende é a criação de condições favoráveis àquilo que chamámos focos de ideias vivas e em que claramente subentendemos uma noção de liberdade” (Branco, 1970: 118).

Estas várias dimensões e as articulações entre as estruturas de formação, produção e difusão, quer a nível central quer a nível regional e local, implicam para JFB a necessidade de uma estrutura de coordenação centralizada que possibilitasse o desenvolvimento, direi sustentado, das várias componentes da vida musical.

Como escreve em 1967 numa crítica aos concertos da Câmara Municipal de Lisboa: “[falta-nos] o organismo coordenador e orientador da vida musical portuguesa com métodos modernos de trabalho em que entrem dados estatísticos de vária ordem, quantitativos e qualitativos, desde o número de espetáculos, a frequência em função dos locais e preços e os rendimentos sociais, até à distribuição das incidências no múltiplo aspeto geográfico, económico-social, pedagógico e, ‘last but not least’, artístico, com as suas interpretações e derivações[10] (branco, 1967: 120 REJMP Crítica aos concertos da Câmara Municipal de Lisboa).

Assim, João de Freitas Branco preconiza, por um lado, a centralização de serviços do Estado relacionados com a música e com a educação através de uma direção geral e da criação de um Ministério da Cultura e por outro, atendendo às características da sociedade portuguesa da descentralização da atividade musical, bem como das instituições de formação artístico-musical.

No âmbito da vida musical salienta, a propósito VII Festival Gulbenkian de Música (16 Maio a 9 de Junho) que “a descentralização da nossa cultura continua sendo, e será durante muito tempo, um problema central português” (Branco, 1964: 679ReJMP)

No que se refere ao ensino de música, “os inconvenientes da inexistência no M.E.I.C. dum órgão da dependência hierárquica de vocação específica para o ensino artístico […] parece não só justificar-se mas impor a criação dum novo serviço central: a Direcção-Geral do Ensino Artístico” de que “passariam a depender todos os estabelecimentos de ensino exclusiva ou preponderantemente artístico, públicos e particulares” podendo “ainda autorizar missões de estudo e conceder subsídios a docentes do ensino artístico, com o fim de realizarem, no país ou no estrangeiro, estudos de desenvolvimento curricular e de inovação educacional, ou de participarem em congressos, colóquios e outras manifestações nacionais ou internacionais que versem matéria de educação de natureza artística”. A lei orgânica desta Direcção-Geral do Ensino Artístico deveria refletir “a orientação descentralizadora que preside à atual política do M.E.I.C., coerentemente com a do governo em relação a toda a administração pública” (Branco, 1976: 32-33-34) e, neste contexto, considera fundamental uma distribuição nacional equilibrada das instituições de formação o que implica uma “indispensável planificação corográfica do surgimento de novos conservatórios e academias. A verificar-se por exemplo, o aparecimento duma escola congénere na região privilegiada do Porto, não seria de se lhe conceder apoio estatal em prejuízo da criação dum conservatório em Bragança, Estremoz, Beja ou Portimão.” (Branco, 1976: 28).

2. Contributos para a compreensibilidade do pensamento e ação

Neste segundo momento, e tendo em consideração a incompletude deste trabalho atendendo à diversidade de intervenção, ao pensamento e a ação complexa e heterodoxa de JFB, apresento alguns contributos para a compreensibilidade do pensamento e ação de João de Freitas Branco que se afiguram pertinentes na compreensão do pensamento complexo do autor. A preocupação fundamental está centrada em descortinar algumas das dimensões na esfera do político e das políticas que, ainda hoje, apesar dos diferentes desenvolvimentos da sociedade, da cultura e da educação em Portugal encontram ecos, não estão plenamente resolvidos na vida e na cultura musical portuguesa, bem como dar corpo aos argumentos principais desta comunicação.

E estes contributos estão organizados em torno de cinco grandes temáticas: (a) educação, cultura e desenvolvimento; (b) a convivialidade entre diferentes tipologias musicais; (c) o cosmopolitismo e a “portugalidade”; (d) as interdependências entre a formação e a vida musical; (e) o Estado e a rede de atores.

Educação, cultura e desenvolvimento

Não existindo uma relação linear entre as questões de natureza formativa e artística e as questões do que genericamente se pode designar por desenvolvimento, João de Freitas Branco contudo não deixou de acentuar nas suas intervenções no espaço público a pertinência da educação e da formação (através de modalidades mais formais – via escola, como através de modalidades mais informais – via vida musical, via diferentes media) num projeto societário mais culto e desenvolvido, à semelhança de outros países de referência, em que a cultura representa um fator não só social mas também financeiro (e a este propósito veja-se por exemplo o estudo coordenado por Augusto Mateus sobre as indústrias criativas e culturais)

Por outro lado, não deixa de ser curioso que a ideia de JFB em relação à música, particularmente erudita, e à ópera, como instrumento de desenvolvimento e de cultura, ainda hoje encontre ecos em diferentes tipos de sociedades e de agendas políticas. Por exemplo, um documento do Arts Council da Irlanda do Norte, “Art form and Specialist area policy 2007-2012” refere que a a música e a ópera “desempenham um papel essencial na identidade cultural da sociedade” procurando mobilizar as estruturas profissionais e de performance “como instrumentos de desenvolvimento qualitativo das experiências musicais no âmbito local quer como participantes, quer como ouvintes” salientando a importância da co-operação e dos partenariados entre as organizações” no sentido de que, apesar dos desenvolvimentos tecnológicos e musicais, a importância para os indivíduos terem a oportunidade desde crianças para participarem em todas as formas de música (Arts Council of Northern Irland, 2007: 2)

A convivialidade entre diferentes tipologias musicais (Ortodoxias e heterodoxias)

Apesar de se manifestar em prol de uma atividade musical assente na designada “música erudita ocidental”, João de Freitas Branco manifestou-se na esfera pública favorável à convivialidade entre diferentes tipologias musicais contrariando algumas das ideias dominantes que tem subjacente um conjunto de ortodoxias, heterodoxias e contaminações que constituem este tipo de mundos a que, os diferentes atores, respondem de modos diferenciados.

Com efeito, a ideia de diferenciação entre formas de arte assenta numa perspetiva dicotómica em que existem “artes maiores” e “artes menores” consubstanciada entre diferentes tipos de cultura: uma mais erudita e próxima das elites e outros tipos de cultura que, de algum modo, se mostram incapazes de serem agentes de transformação social, cultural e por, esta via, podem impossibilitar a construção de uma sociedade mais culta e informada.

Neste confronto de posicionamentos ideológicos e estéticos a procura de uma maior convivialidade entre diferentes formas de expressão artístico-musical foi sendo afirmada de modo a possibilitar uma maior interligação entre as músicas e os músicos numa tendência em que, afirmando as particularidades de cada universo sonoro isso não pode ser motivo de separações arbitrárias, mas antes manifestações diferenciadas da pluralidade de visões acerca do que é a música, a criação e a interpretação artística.

“Cosmopolitismo” e “portugalidade”

Decorrente da dimensão anterior, os processos de construção de cidadanias formativas e culturais envolvem um conjunto alargado de fatores onde o confronto com diferentes mundos se afigura um elemento estruturante. Nos campos formativos, artísticos e musicais as trocas, em maior ou menor grau, sempre existiram e das quais resultaram, em convergência ou divergência, novas ideias e projetos educativos e artísticos.

Contudo, uma apologia e aceitação acrítica do que “vem de fora”, em particular dos países centrais como bem descreve António Pinho Vargas no seu último trabalho, em detrimento de uma “cultura nacional”, sempre mutável e transitória, contribui, por seu lado, para diferentes tipos de “fechamentos”, na expressão de JFB, e de “elitismos pouco significantes” que pouco contribuem para a construção identitária de um país e de uma cultura portuguesa periférica.

De um outro modo, o aprofundamento da cultura e da democracia, combatendo a mediocridade e o provincianismo, exerce-se num quadro de trocas alargadas de experiências oriundas de diferentes geografias sociais e culturais e a reapropriação que, de diferentes modos, delas se faz, sem que isto signifique subalternizar a cultura e a música portuguesa e os seus diferentes profissionais e amadores.

As interdependências entre a formação e a vida musical

Apesar dos vários tipos de desenvolvimentos, as relações entre a educação e a cultura afiguram-se paradoxais, no contexto da sociedade portuguesa, assentes, por um lado na retórica da sua pertinência e, por outro, na dificuldade de desenvolvimento de políticas consertadas e articuladas entre as estruturas de formação, criação, produção e de difusão.

O incremento de uma sociedade mais culta musicalmente implica uma articulação profunda entre os diferentes tipos de componentes que constituem a vida musical, em relações de interdependências multifacetadas que se retroalimentam e que, pelo menos do ponto de vista da teoria, um incremento na formação possibilita um incremento da música, dos músicos (compositores e intérpretes), investigadores e de outros tipos de atores ligados à vida musical: dos técnicos, dos ouvintes, dos amadores. Esta articulação pode também possibilitar atenuar alguns dos problemas existentes no designado mercado musical: da edição de partituras, livros, discos, ao incremento da música nos media, por exemplo.

Em toda esta problemática a concetualização dos conservatórios de música como “centros de cultura” não deixa de se afigura uma elemento político e estratégico em toda a “cadeia de comunicação musical” em que as diferentes tipos de estruturas interagem diferentemente tendo em conta também, e essencialmente, a “construção de um bem comum” de que falam, por exemplo Boltansky e Thévenot.

O Estado e a rede de atores públicos e privados

A perspetiva de uma sociedade mais culta e, por esta via também, mais democrática remete para questões relacionadas com o papel do Estado e da rede de atores individuais e coletivos, públicos, privados e do terceiro setor, na governança e no desenvolvimento da educação e formação e na vida musical.

Sendo uma discussão, pelo menos em termos políticos e de políticas públicas, complexa e muitas vezes com divergências profundas, veja por exemplo o livro as Artes do Estado e o Estado das Artes, importa salientar que o posicionamento de JFB centrava-se numa dupla perspetiva. Por um lado o papel determinante do Estado como agente incentivador e regulador da formação e da vida musical e, por outro, o papel relevante que diferentes tipos de entidades e associações desempenham na prossecução dos objetivos de formação, criação, produção e difusão artístico-musical.

Papéis diferenciados mas em complementaridade num movimento aparentemente paradoxal entre a centralização e a descentralização. Centralização no que se refere a estruturas de coordenação política e de políticas, aos apoios e elaboração de estudos que suportam a decisão política e as políticas, de que a criação de um Ministério da Cultura e de Direções gerais são exemplo. Descentralização de organismos e das atividades formativas e artísticas que contrariem a tendência de “litorização do país” potenciando a existência, por exemplo, não só de escolas como também de espetáculos musicais relevantes no desenvolvimento cultural das diferentes regiões do país.

3. Considerações finais

Como procurei demonstrar o pensamento e ação, complexa, heterogénea, de João de Freitas Branco, apresenta-se, em muitos e diferenciados aspetos, de uma atualidade “impressionante” e a que é “urgente” não só estar atento, mas potenciar e dar continuidade. Como refere Paulo Ferreira de Castro (2001) João de Freita Branco “foi uma personagem de utopia” e um “inconformado com a estreiteza e mediocridade do meio musical português” (p. 46). Escreve Paulo Ferreira de Castro que “homem de esquerda por convicção (e já muito antes do 25 de Abril, João de Freitas Branco encarnou, por fim, um dos paradoxos mais interessantes da esquerda portuguesa – o de tender a assumir-se como defesa da cultura em si, isto é, num certo sentido, da tradição (e mesmo da Tradição) contra o obscurantismo, do gosto (e mesmo do Gosto) contra a ignorância, na perspetiva da “devolução” democrática de um património ilegitimamente confiscado” tendo “a lucidez de compreender – e de tornar claro para os outros – que, sem cultura, não podia haver democracia plena. Ou talvez, mais realisticamente, que a cultura podia não ser condição suficiente para garantir a democracia – mas era, pelo menos, necessária” (p. 52)

Ora, como refere José Manuel Pureza numa artigo publicado no DN em Junho de 2012  intitulado “No centro da democracia, a cultura” sendo a democracia um “lugar político em que a diversidade é o bem maior” a cultura “não é uma questão de contas. É uma questão de princípios […]. É uma questão de ambição social” em que ou se quer “um país de gente amestrada, acrítica e formatada pelos padrões massificados” ou se abre “espaço […] para gente com horizontes amplos, com capacidades reflexivas, críticas e participativas, para pessoas mais criativas, mais tolerantes, mais cosmopolitas, mais democráticas.”

Isto porque a democracia assenta na existência de públicos informados e cultos e não necessariamente no especialista erudito que procura condicionar “o gosto” e as “opções” estéticas, artísticas e formativas de que fala Samuel Jones, em que o direito à cultura é indissociável do direito à liberdade de expressão e do direito de participação. Um verdadeiro direito à cultura é aquele que estende ao conjunto dos membros da coletividade o acesso tanto à prática como à experiência cultural e artística diversificada e cosmopolita para que tanto trabalhou João de Freitas Branco.

 



[1] Comunicação apresentada no Colóquio 'O Gosto pela Música', homenagem a João de Freitas Branco, no 90º aniversário do seu nascimento, 19 e 20 de Outubro 2012. Versão de trabalho.
 [2] Contudo, no seu pragmatismo e o conhecimento da realidade da sociedade portuguesa acrescenta “não sejamos, porém, otimistas até à sedução pela miragem duma sociedade em que toda a gente escutasse música com ouvidos minimamente esteticizados” (Idem)
[3] Esta “cadeia compreende um emissor, a sua mensagem, um mensageiro ou conjunto de mensageiros, um destinatário (ouvinte, público) com possibilidades de acumulação e funcionando mercê de códigos” (Idem)
[4] Dogmatismos quer em termos musicais quer os que estão presentes noutros domínios de natureza mais científico-prática. Por exemplo, e a propósito do Encontro de Etnomusicologia, João de Freitas Branco escreve no Jornal de Letras que “o programa geral tomou a palavra “etnomusicologia” em sentido bastante largo. Ou melhor, entendeu-a junto à letra dum “cientismo” ortodoxo na linha bartokiana, criando no entanto espaços materiais para heterodoxias que já serem-no se mostram de algum modo tributárias dela”. Acrescenta, no que se refere às intervenções musicais que “a actuação do próprio grupo ALMANAQUE” se situa “na zona da etnomusicologia “cientista”, … porque ao dar a ouvir uma dúzia de trechos (…) os moços e moças do ALMANAQUE mostraram-se tão demandantes de rigor, tão avessos a qualquer estilização para burguês gostar, como no acto das próprias recolhas ou da transcrição da fita para o papel”. Por outro lado, a “heterodoxia” esteve representada pela Brigada “e que poderá ter ofendido alguns puritanos, […] música que, embora não etnomusicologicamente pura, possui genes de criatividade do povo português”.
[5] Esta concetualização da música e da cultura musical está aberta a vários tipos e culturas musicais. Numa crítica a uma coleção de discos da UNESCO refere que “esta coleção de recolhas de música do Oriente reclama a atenção de todo o musicófilo consciente de que a arte dos sons não é exclusivo da civilização ocidental, e que é preciso conhecê-lo nos seus aspeto exóticos. Mas não será precisamente a palavra ‘exótico’ a mais flagrante prova da nossa escandalosa ignorância” (Branco, 1964: 689). Também Numa crítica à designada “1ª Grande Festa da Música” organizada em 1982 pelo Sindicato dos Músicos João de Freitas Branco escreve que “a heterogeneidade da música tocada ou cantada, desde o fado de restaurante típico à partitura clássica sinfónica, desde o solo de acordeão às experimentações de vanguarda”. E esta “abertura a todos os géneros” teve um conjunto de significados: “o primeiro consiste na aproximação de músicos e também de espectadores, cujos compartimentos se diriam estanques […]”. O segundo significado remete para o facto de que “a “Festa” veio corrigir, de maneira muito nítida, a afirmação frequente, mas simplista e portanto errónea, de que não há música clássica e música ligeira, música séria e música de mero entretenimento, mas sim música boa e música má” (João de Freitas Branco, Jornal de Letras, Ano I, n.º 23, 5 de Janeiro de 1982, p. 21, REG1998).
[6] Sobre este tipo de problemática ver por exemplo, Sasportes, artigos do Diário de Lisboa, entrevistas aos estudantes sobre a reforma de 1971
[7] Este tipo de crítica continua presente, anos mais tarde, em relação ao fechamento da formação dos músicos. A propósito da atividade do: “[O] Núcleo da Escola de Música do Porto para o estudo e divulgação da música do século XX, a Oficina Musical, de que Álvaro Salazar e Madalena Soveral são directores artísticos”  abrangendo “cursos de Composição e Análise, concertos, não apenas no Porto e com primeiras audições importantes, concursos, colaborações como outras incitativas culturais de orientação moderna, publicação de textos informativos e didácticos”  || É certo que também noutros períodos se verificaram avanços do saber música, promovidos por uma pequena roda de criatividades e inteligências, sobre o pelotão da mediania. Em todo o caso, há diferenças nítidas no atual modernismo musical europeu, em relação aos dos tempos de Beethoven, de Berlioz, de LIszt, de Mussorgsky, de Debussy e até dos jovens Schoenberg e Stravisnky. || Ninguém ignora que muitas partituras foram então compreendidas, por vezes com escândalos públicos. Mas não só os músicos profissionais como também os muitos amadores que frequentavam os espetáculos e cantavam ou tocavam instrumentos em sessões privadas conheciam os sentidos das palavras técnicas usadas, basicamente pelos inovadores. (“Saber música hoje e ontem” (Jornal de Letras, Ano I, n.º 19, 10 de Novembro de 1981, p. 31, REg1994)
 [8] Isto tinha como pressuposto a existência de escolas artísticas de música em que “ as escolas regionais do ensino artístico deverão, em regra, ir até ao nível complementar inclusive (já com saídas profissionais abrangendo, em regime, o professorado), e, nalguns casos até ao Bacharelato. As escolas nacionais formarão até ao bacharelato. Nalgumas especialidades – por exemplo, História da arte, sociologia da arte, estética, musicologia, ciências pedagógicas – as escolas nacionais dará porém acesso à universidade para efeitos de licenciatura e doutoramento” (Idem: 38). Para João de Freitas Branco, os conservatórios e academias podem tornar-se prestáveis às universidades, não só por cursos livres para adultos (o que já se verifica) mas também como promotores de ou colaboradores em manifestações culturais” . Por outro lado, “as potencialidades dos conservatórios e academias interessam outros ramos de ensino, designadamente o pré-primário, o primário, o preparatório e o secundário. Refiro-me concretamente à formação de educadores de infância, de professores primários e de educação musical aos níveis preparatório e secundário, bem como de ensaiadores de conjuntos, nomeadamente coros.” (Branco, 1976, 22). 
[9] Esta crítica ao mercado está também presente na programação de espetáculos que foi assimilando as lógicas de mercado e adequando, de acordo com as diferentes transformações sociais e culturais, estas mudanças no âmbito da atividade musical em diferentes tipos de instituições. Como escreve Freitas Branco “a tendência geral dos organizadores de espetáculos musicais que sabem do negócio (no sentido mais latino que português moderno da palavra) não é, atualmente, para juntar num mesmo programa Adam de la Halle, Jorge Peixinho, Machaut, Boulez […] mas sim para acenar à diversificada clientela com séries votadas (cada cor, seu paladar) a música medieval, música renascentista, música barroca, e por aí fora, até a mais ou menos impropriamente chamada vanguarda. É evidente que este facto acentua uma certa relatividade dos valores, das valorações e dos critérios estéticos, e mesmo uma diferenciação de conceitos e terminologias (“Em vésperas de surgimento do Conselho Português da Música?”, João de Freitas Branco, Jornal de Letras, Ano II, n.º 32, 11 a 24 de Maio de 19982, p. 17 REg2008). Também no que se refere à edição de partituras, “dos nossos compositores representativos, do passado e do presente” João de Freitas Branco nota que é “um dos casos que mais reclamam atenção” uma vez que  “a exiguidade das que se encontram no mercado é uma vergonhosa miséria que causa em músicos profissionais e amadores estrangeiros perplexidades crescentes. Isto, porque vão aparecendo discos com obras que logo suscitam em muitos ouvintes o interesse se adquiri as respectivas partituras. Partituras que deveriam existir nas lojas e não existem. Mas note-se que não são só essas dezenas, já com honras de micro-sulco, que urge dar à estampa, senão que umas largas centenas, distribuídas ao longo de séculos” (“A modulação necessária”, João de Freitas Branco, Jornal de Letras, Ano I, n.º 10,  7 a 20 de Julho de 1981, p. 31Reg1981).
[10] E este organismo coordenador é um dos aspetos que, segundo o seu ponto de vista, está também subjacente ao Teatro Nacional de São Carlos: “O problema operático do Teatro de S. Carlos é dos que apontam a falta que está fazendo uma entidade coordenadora das organizações musicais portuguesas. Uma direção Geral da Música, dispondo de eficientes meios de ação e esclarecidamente orientada, seria de grande utilidade” (Branco, 1967:123 REJMP Critica à Temporada de ópera do Teatro Nacional de S. Carlos)