Introdução[1]
Da atividade plurifacetada e multi-situada de João
Franco Branco em torno da música e da cultura o trabalho desenvolvido no âmbito
do ensino de música, desde a sua intervenção enquanto membro do governo e da
administração à participação em diferentes grupos de trabalho, elaboração de
estudos e de propostas para este tipo de educação e formação, apresenta-se como
uma dimensão relevante no trabalho desenvolvido.
Partindo do conceito alargado do que é “saber música”
e concebendo as escolas artísticas, e em particular os conservatórios de
música, como “centros de cultura”, o trabalho realizado no plano do pensamento
e da intervenção consubstancia-se na articulação entre diferentes esferas da
educação e da cultura, entre diferentes modos e modalidades, envolvendo
profissionais, amadores, investigadores e técnicos, em que emerge a defesa das
particularidades deste tipo de formação, quer em termos de organização quer em
termos de administração e das suas relação com o Estado.
Neste contexto, e tendo por base os trabalhos
realizados por João de Freitas Branco, no âmbito das propostas de
reestruturação do ensino da música, da formação de profissionais e de amadores,
bem como de textos publicados na imprensa, esta comunicação procura dar a
conhecer as principais perspetivas sobre o ensino de música, os referentes do
seu pensamento e intervenção e defender que todo este trabalho assenta na
defesa da dupla referencialidade deste tipo de formação, articulando a educação
e a cultura (estruturas de formação, de criação e de produção), profissionais e
amadores e que as suas conceptualizações se situam numa visão alargada e
cosmopolita da convivialidade entre diferentes tipos de culturas e saberes
musicais, no plano local, nacional e internacional, e na construção de uma
sociedade democrática mais culta e plural.
Assim esta comunicação está dividida em três momentos.
No primeiro, intitulado “Música, Educação e Cultura”, e apesar da sua
incompletude, apresento, através da voz de João de Freitas Branco algumas das
principais ideias que consubstanciam o olhar que defendo; no segundo “Contributos
para a compreensibilidade do pensamento e ação” discuto e problematizo algumas
dimensões dos seus referentes que, do meu ponto de vista, ainda encontram ecos
na sociedade portuguesa e que não estão plenamente resolvidos; por último apresento
algumas considerações finais.
Música, educação e cultura
Neste ponto, apresento algumas das principais ideias
que JFB desenvolve acerca do fenómeno educativo e musical tendo em conta o
ponto de vista que procuro defender. Isto é que a perspetiva de JFB sobre o
ensino de música só adquire sentido, projeção e se transforma em agente de
desenvolvimento social e cultural numa interdependência de fatores que emanam
da educação e da cultura, da criação, interpretação e estruturas de produção e
de difusão, numa visão alargada situada entre referentes cosmopolitas e a sua
contextualização nacional que interligam a formação de profissionais e de
amadores, o papel do Estado e a diversidade de atores.
Num texto intitulado “Educação Estética –
Funcionalidade da disciplina de estética em diferentes ramos e graus de
ensino”, apresentado no Seminário Internacional sobre “Educação Musical e sobre
Música no Ensino Especial”, publicado na revista da APEM em Abril/Junho de
1985, JFB faz a apologia da pertinência da educação estética em todos os níveis
de ensino musical: do ensino infantil ao ensino superior, do ensino de amadores
ao ensino de profissionais, músicos e professores. Esta “Educação Estética” tem
como propósito não só contribuir para a complexificação do trabalho formativo,
como também, constituir-se como um instrumento que permite questionar alguns
dos dogmatismos existentes, para além de possibilitar a construção de uma
democracia mais culta, como uma espécie de contraponto à “massificação politicamente programada”, ao “superficialmente agradável” “ao
nivelamento da valoração estética por baixo, com o mais ou menos desígnio
encapotado de isolar as artes e letras verdadeiramente emancipadoras da
inteligência, da afetividade e da vida ativa individuais e coletivas […]”
(Branco1985,: 7-8)
A apologia deste tipo de educação assenta, por outro
lado, “no pressuposto duma sociedade
florescente no campo do ensino e da vivência musical” uma vez que “disciplinas de estética ganhariam projeções
excelentes no progresso de musicalização do estudante e do ouvinte genéricos,
isto é, da generalidade da população. Contribuiriam grandemente para o
acréscimo do rendimento sócio-cultural de riquíssimos patrimónios artísticos
não limitados pelas fronteiras dos respetivos países[2]”.
Branco, 1985:7).
Das ideias expressas neste texto ressaltam um conjunto
de indicadores que constituíram alguns dos referenciais dominantes na
conceptualização da relação música, educação e cultura como fatores de
desenvolvimento pessoal e coletivo e na crítica não só à mediania existente
como também no encontrar perspetivas para que a vida musical no seu todo, de
que o ensino era uma das componentes, fosse mais rica e plural.
Desde logo a conceptualização do que é a música, que
sustenta muitas das suas posições em relação à educação e à formação. Para João
de Freitas Branco, “aquilo que
vulgarmente se chama “música” não se reduz a notas e pausas desenhadas sobre
linhas, nem a uma determinada concretização sonora desses sinais gráficos, boa
ou má em si mesma, entendida em pura objetividade. Ela é um processo complexo” envolvendo
o que designa por “cadeia da comunicação
musical[3],
com os seus vários mecanismo, incluindo os de “feed back”, ou auto-regulação”.
E “se, em certa medida, valores
estético-musicais podem dizer-se objetivos, eles só o são relativamente a
certas cadeias da comunicação. Cadeias de que ainda muito mais depende a atribuição
desses valores a esta ou àquela “música”, a ponto de tal valoração parecer
totalmente subjetiva” (Jornal de Letras, Ano I, n.º 23, 5 a 18 de Janeiro
de 1982, p. 21, REG1998).
Esta conceptualização parte de duas premissas
essenciais. Por um lado, a designada música erudita como elemento estruturante
da cultura e por outro a relevância de todas as formas artístico-musicais,
contrariando uma das tensões existentes no contexto da cultura musical assentes
em dicotomias entre diferentes tipos de cultura.
Contudo, se “toda
a música só é boa para alguém” afigura-se pertinente a “diferenciação do complexo das práticas musicais, com os seus segmentos
de variação contínua e as suas soluções de continuidade sem retomar às
divisórias horizontais e consequentes hierarquizações de altas, médias e baixas
culturas” (Branco, 1985: 8). Por outro lado, considerando que “o maior problema da cultura musical
portuguesa não consiste, hoje, na falta de produção, mas sim na de consumo” salienta
que “é preciso criar um outro e muito
mais extenso público afeto à arte musical de nível superior, para que esta
possa exercer a sua preciosa ação educadora de povos. A ópera é um dos melhores
veículos do gosto pela arte” (Branco, 1964: 727 RevJMP).
Apesar da sua crítica aos dogmatismos existentes[4] e a abertura a uma
pluralidade de mundos musicais[5] Freitas Branco, sonhando
com uma efetiva democratização da prática e da fruição musicais considera que “a grande função social de que a boa música
é capaz só poderá cabalmente exercer-se quando as solicitações vierem de muito
maior percentagem da população, o que pressupõe a reforma do ensino musical nas
escolas primárias e secundárias. De um outro modo, só muito lentamente será
possível oferecer aos habitantes de pequenas localidades a inestimável vivência
artística através do som, à qual se obstinarão em resistir, fechando-se de boa
fé no seu acanhado mundo de empregos, cafés, clubes e comentários desportivos”
(Branco, 1959: 209).
Com efeito, se a atividade musical, em particular a
realização de “bons espetáculos musicais”, é considerada um elemento
estratégico para o desenvolvimento cultural da sociedade portuguesa, duvida-se
dos seus resultados se não existir uma boa formação musical nas escolas: “[…] a realização de bons espetáculos em
localidades musicalmente menos (ou nada) desenvolvidos contribuem para a
criação de uma cultura, no domínio da arte dos sons. Mas duvidamos que os resultados
se atinjam com razoável brevidade se não se olhar a sério à instrução musical,
nas escolas, e se os espetáculos se não se multiplicarem em abundância daqueles
que mais suscetíveis são de revelar, pode dizer-se que de um instante para o
outro, os potenciais de boa música. A saber, o concerto sinfónico e a ópera”
(Branco, 1967:118 REJMP critica ao 10º Festival Gulbenkian de Música)
Deste modo, considera que “a educação musical infantil” como o fator mais importante “do desenvolvimento da música em Portugal,
no sentido em que mais interessa que ele se verifique: com incidência sobre a
generalidade da população, e em seu próprio benefício” (Branco, 1962:
80-83RevJMP). Educação musical infantil em que é “de toda a utilidade que se ensaiem diferentes métodos, para que seja a
experiência a ensinar o mais conveniente”. (Branco, 1962:81RevJMP A
propósito do um livro de Joel canhão relacionado com a educação musical).
A utilidade de se ensinarem diferentes métodos assenta
numa crítica à existência de um “fechamento” das estruturas e das metodologias
de ensino em relação ao que se passa no estrangeiro e que não tem tido
aplicação no contexto português: “os
modernos meios de ensino musical, nomeadamente as reuniões nacionais ou
internacionais, que, em alguns países estrangeiros, são exemplos de pedagogia
viva e estímulos excelentes para os jovens músicos, não têm tido aplicação em
Portugal” (Branco,1959:194).
Também no que se refere à formação de profissionais,
questiona uma das dimensões que caracterizou a sociedade portuguesa centrada na
perspetiva de que a aprendizagem artística, “mesmo entre músicos [era] de que a arte musical era coisa toda de
inspiração, de sentimento, de qualidades inatas. Era uma vergonha estudar uma
arte[6]” (Branco, 1960:39-40). Por outro lado, salienta a importância “da
atualização dos conceitos e processos composicionais” que “ultrapassa
nitidamente a posição da maior parte dos músicos profissionais” criticando
o fechamento dos músicos em relação à utilização das “linguagens
contemporâneas”, que se situam “à margem
da terminologia aprendida nas escolas de música” uma vez que “um pouco por toda a parte, o músico
profissional médio tem por inútil qualquer aprendizagem pós-escolar daquilo que
ele arruma sob o labéu de vanguardismo” (Branco, 1981) “Saber música hoje e ontem” (Jornal de
Letras, Ano I, n.º 19, 10 de Novembro de 1981, p. 31, REg1994)
Neste sentido, João de Freitas Branco, através do
comentário que faz a Viana da Mota e Luís de Freitas Brancos, envolvido na
reforma do Conservatório vigente ente 1919 e 1938 enuncia as suas perspetivas de transformação
do ensino de música: “atitude de combate
à maneira romântica, mas onde o ‘lado de cá´ era a inteligência, a cultura, a
aspiração à elevação mental, e o ´lado de lá’ uma espécie de analfabetismo
intelectual, paradoxo que se torna compreensível nestoutra forma: afetação de
intelectualismo, sem conhecimento sequer do á-bê-cê duma verdadeira
intelectualidade[7].”
(Branco, 1964: 434)
Assim considera que “urge reformar também o ensino especializado de música”, da
formação de profissionais, uma vez que “é
possível que a venda de aparelhos de rádio e televisão, de discos e de bilhetes
para espetáculos musicais bata todos os records de todos os tempos, em
Portugal, no mesmo dia em que se tornar inviável a reunião de uma orquestra de
músicos portugueses, por inexistência dos mesmos” (Branco, 1959: 209)
Considerando os conservatórios de música como “centros
de cultura”, pelas manifestações culturais que desenvolvem para além das “atividades estritamente pedagógicas”
(Branco, 1976: 6), promovendo “uma
articulação funcional com os departamentos da Cultura” (Idem: 24), João de
Freita Branco preconiza, por um lado, que
os conservatórios de música poderão ser escolas autónomas com certificação até
à licenciatura e, por outro, que o ensino superior das artes performativas,
leia-se universitário, não é palco da formação neste âmbito uma vez que os
exemplos estrangeiros “ convergem no
desaconselhar a integração do ensino musical nas universidades” com exceção
“de formaturas pedagógicas e
musicológicas, pelas afinidades com as históricas, filosóficas e filológicas” (Branco,
1976, 22). Para Branco, isto decorre
de duas ordens de razões: de natureza científica e das características
organizacionais e curriculares deste tipo de ensino. No primeiro caso, “a integração do ensino artístico em
universidades representa um risco de subalternidade em relação ao ensino
científico” risco este que “provém da
especificidade do mundo das artes e de certos preconceitos que, embora
atenuados pela própria evolução das ideias e dos costumes, ainda exercem grande
influência”, e, no segundo, “o ensino
artístico, designadamente o de música e de dança é dum âmbito etário mais largo
que o do universitário[8]”
(Idem: 38).
Uma outra componente do seu pensamento
diz respeito não só ao que considera
indissociável a articulação entre a formação e a vida musical nas várias
dimensões que isto comporta: “lamentável
é a escassez dos grupos corais portugueses, devida principalmente à falta de
ensino musical eficiente nas escolas” (Branco,1959:189), como também, dando
exemplos da Alemanha e da Hungria, criticando
“o hábito português de copiar a França”
que “foi uma calamidade” chama a
atenção que “assentar em que a solução só
pode encontrar-se por via do ensino oficial não autoriza, porém, a um mero
aguardar a promulgação de leis e esperar os seus resultados, que levarão
gerações a produzir-se de maneira satisfatória. Torna-se necessária uma ação
simultânea e bem coordenada, nos sectores da promoção dos espetáculos
musicais.” (Branco, 1970: 117-118).
A questão da articulação manifesta-se também na
formação de amadores quando salienta que “a
distinção entre arte erudita e arte de entretenimento (ou, no ramo particular
que aqui está mais em foco, entre música “séria” e música “ligeira”) tende a
esbater-se, a ponto de mesmo entre docentes de formação puritana começar a
haver compreensão de que também a arte de entretenimento vivencial pode ter
lugar em conservatórios e academias. O preenchimento de ócios com a
participação em conjuntos “sérios” ou “ligeiros” é um factor social positivo,
do que têm consciência os estabelecimentos onde funcionam cursos de música em
regime livre, para jovens e adultos. Até nos conservatórios nacionais se dá
hoje guarida aos que, destinando-se embora a outras profissões, desejam tornar
mais consistentes as suas capacidades de artistas amadores.”
(JFB,1976,pp.7-8).
Por outro lado, e tendo em consideração as
características das profissões artísticas quer no domínio da criação -“a profissão de compositor é coisa que não
existe entre nós” (Branco, 1976:26) quer no domínio da interpretação - “a probabilidade dum intérprete fazer
profissão de solista é também diminuta” (Idem) – “as medidas conjuntas e planificadas a tomar transcendem a competência
do M.E.I.C., pelo menos na grande medida em que pertencem à Secretaria de
Estado da Cultura” impondo-se por isso “uma
ação concertada e intensiva no sentido da criação de orquestras, pequenos
conjuntos instrumentais e vocais, bandas, em condições verdadeiramente
profissionais” Neste sentido, e também por esta via, torna-se “relativamente aos compositores um meio de
incentivo profissional […] visto que deverá fomentar-se um reportório de base
portuguesa, em constante renovação” (Idem).
Estas considerações têm subjacentes interdependências dinâmicas
entre o Estado e uma rede diferenciada de atores, das autarquias, associações
de cultura e recreio, escolas. Dinâmicas em que o papel do Estado, como uma das
dimensões importantes no desenvolvimento da vida musical, se consubstancia em
várias dimensões do apoio às atividades; da descentralização; de organismos
coordenadores, de estudo e produção de conhecimento sobre as realidades
musicais.
Com efeito, de
acordo com a sua perspetiva, cabe ao Estado
“assegurar os meios eficientes de educação musical, estendida a todo o País e a
todos os graus de ensino, para que não continue desaproveitado um dos melhores
meios de elevação mental e de preenchimento de tempos livres da nação. Está
implícita nesta rubrica toda uma organização do ensino profissional em
conservatórios e outras escolas, para a formação de professores, compositores e
executantes.” Por outro lado, “é
também ao Estado que pertence promover e fomentar o espetáculo de música séria
no País” através de apresentações sistemáticas de orquestra itinerantes,
solistas portugueses, récitas de ópera de um modo descentralizado ao longo do
ano e “em diferentes centros populacionais
do país”, solicitando, estimulando e apoiando “a iniciativa das autarquias locais”. Por outro lado ainda compete
ao Estado “exercer uma função
coordenadora que, orientada pelo interesse nacional, evite uma evolução ao
sabor da livre concorrência e um contante desaproveitamento de potenciais de
produção útil[9]”.
Salienta que a função coordenadora que defende “não deve ser confundida com um dirigismo asfixiante de toda e qualquer
iniciativa alheia. Muito pelo contrário, o que dela se depreende é a criação de
condições favoráveis àquilo que chamámos focos de ideias vivas e em que
claramente subentendemos uma noção de liberdade” (Branco, 1970: 118).
Estas várias dimensões e as articulações entre as
estruturas de formação, produção e difusão, quer a nível central quer a nível
regional e local, implicam para JFB a necessidade de uma estrutura de
coordenação centralizada que possibilitasse o desenvolvimento, direi
sustentado, das várias componentes da vida musical.
Como escreve em 1967 numa crítica aos concertos da
Câmara Municipal de Lisboa: “[falta-nos]
o organismo coordenador e orientador da vida musical portuguesa com métodos
modernos de trabalho em que entrem dados estatísticos de vária ordem,
quantitativos e qualitativos, desde o número de espetáculos, a frequência em
função dos locais e preços e os rendimentos sociais, até à distribuição das
incidências no múltiplo aspeto geográfico, económico-social, pedagógico e,
‘last but not least’, artístico, com as suas interpretações e derivações[10]”
(branco, 1967: 120 REJMP Crítica aos concertos da Câmara Municipal de Lisboa).
Assim, João de Freitas Branco preconiza, por um lado,
a centralização de serviços do Estado relacionados com a música e com a
educação através de uma direção geral e da criação de um Ministério da Cultura
e por outro, atendendo às características da sociedade portuguesa da
descentralização da atividade musical, bem como das instituições de formação
artístico-musical.
No âmbito da vida musical salienta, a propósito VII
Festival Gulbenkian de Música (16 Maio a 9 de Junho) que “a descentralização da nossa cultura continua sendo, e será durante
muito tempo, um problema central português” (Branco, 1964: 679ReJMP)
No que se refere ao ensino de música, “os inconvenientes da inexistência no
M.E.I.C. dum órgão da dependência hierárquica de vocação específica para o
ensino artístico […] parece não só justificar-se mas impor a criação dum novo
serviço central: a Direcção-Geral do Ensino Artístico” de que “passariam a depender todos os
estabelecimentos de ensino exclusiva ou preponderantemente artístico, públicos
e particulares” podendo “ainda
autorizar missões de estudo e conceder subsídios a docentes do ensino
artístico, com o fim de realizarem, no país ou no estrangeiro, estudos de
desenvolvimento curricular e de inovação educacional, ou de participarem em
congressos, colóquios e outras manifestações nacionais ou internacionais que
versem matéria de educação de natureza artística”. A lei orgânica desta
Direcção-Geral do Ensino Artístico deveria refletir “a orientação descentralizadora que preside à atual política do
M.E.I.C., coerentemente com a do governo em relação a toda a administração
pública” (Branco, 1976: 32-33-34) e, neste contexto, considera fundamental uma
distribuição nacional equilibrada das instituições de formação o que implica
uma “indispensável planificação
corográfica do surgimento de novos conservatórios e academias. A verificar-se
por exemplo, o aparecimento duma escola congénere na região privilegiada do
Porto, não seria de se lhe conceder apoio estatal em prejuízo da criação dum
conservatório em Bragança, Estremoz, Beja ou Portimão.” (Branco, 1976: 28).
2.
Contributos para a compreensibilidade do pensamento e ação
Neste segundo momento, e tendo em consideração a
incompletude deste trabalho atendendo à diversidade de intervenção, ao
pensamento e a ação complexa e heterodoxa de JFB, apresento alguns contributos
para a compreensibilidade do pensamento e ação de João de Freitas Branco que se
afiguram pertinentes na compreensão do pensamento complexo do autor. A
preocupação fundamental está centrada em descortinar algumas das dimensões na
esfera do político e das políticas que, ainda hoje, apesar dos diferentes
desenvolvimentos da sociedade, da cultura e da educação em Portugal encontram
ecos, não estão plenamente resolvidos na vida e na cultura musical portuguesa,
bem como dar corpo aos argumentos principais desta comunicação.
E estes contributos estão organizados em torno de
cinco grandes temáticas: (a) educação, cultura e desenvolvimento; (b) a
convivialidade entre diferentes tipologias musicais; (c) o cosmopolitismo e a
“portugalidade”; (d) as interdependências entre a formação e a vida musical;
(e) o Estado e a rede de atores.
Educação,
cultura e desenvolvimento
Não existindo uma relação linear entre as questões de
natureza formativa e artística e as questões do que genericamente se pode
designar por desenvolvimento, João de Freitas Branco contudo não deixou de
acentuar nas suas intervenções no espaço público a pertinência da educação e da
formação (através de modalidades mais formais – via escola, como através de
modalidades mais informais – via vida musical, via diferentes media) num
projeto societário mais culto e desenvolvido, à semelhança de outros países de
referência, em que a cultura representa um fator não só social mas também
financeiro (e a este propósito veja-se por exemplo o estudo coordenado por
Augusto Mateus sobre as indústrias criativas e culturais)
Por outro lado, não deixa de ser curioso que a ideia
de JFB em relação à música, particularmente erudita, e à ópera, como
instrumento de desenvolvimento e de cultura, ainda hoje encontre ecos em
diferentes tipos de sociedades e de agendas políticas. Por exemplo, um
documento do Arts Council da Irlanda do Norte, “Art form and Specialist area policy 2007-2012” refere que a a
música e a ópera “desempenham um papel
essencial na identidade cultural da sociedade” procurando mobilizar as
estruturas profissionais e de performance “como
instrumentos de desenvolvimento qualitativo das experiências musicais no âmbito
local quer como participantes, quer como ouvintes” salientando a
importância da co-operação e dos partenariados entre as organizações” no
sentido de que, apesar dos desenvolvimentos tecnológicos e musicais, a
importância para os indivíduos terem a oportunidade desde crianças para
participarem em todas as formas de música (Arts Council of Northern Irland,
2007: 2)
A convivialidade
entre diferentes tipologias musicais (Ortodoxias e heterodoxias)
Apesar de se manifestar em prol de uma atividade
musical assente na designada “música erudita ocidental”, João de Freitas Branco
manifestou-se na esfera pública favorável à convivialidade entre diferentes
tipologias musicais contrariando algumas das ideias dominantes que tem
subjacente um conjunto de ortodoxias, heterodoxias e contaminações que
constituem este tipo de mundos a que, os diferentes atores, respondem de modos
diferenciados.
Com efeito, a ideia de diferenciação entre formas de
arte assenta numa perspetiva dicotómica em que existem “artes maiores” e “artes
menores” consubstanciada entre diferentes tipos de cultura: uma mais erudita e
próxima das elites e outros tipos de cultura que, de algum modo, se mostram
incapazes de serem agentes de transformação social, cultural e por, esta via,
podem impossibilitar a construção de uma sociedade mais culta e informada.
Neste confronto de posicionamentos ideológicos e
estéticos a procura de uma maior convivialidade entre diferentes formas de
expressão artístico-musical foi sendo afirmada de modo a possibilitar uma maior
interligação entre as músicas e os músicos numa tendência em que, afirmando as
particularidades de cada universo sonoro isso não pode ser motivo de separações
arbitrárias, mas antes manifestações diferenciadas da pluralidade de visões
acerca do que é a música, a criação e a interpretação artística.
“Cosmopolitismo”
e “portugalidade”
Decorrente da dimensão anterior, os processos de
construção de cidadanias formativas e culturais envolvem um conjunto alargado
de fatores onde o confronto com diferentes mundos se afigura um elemento
estruturante. Nos campos formativos, artísticos e musicais as trocas, em maior
ou menor grau, sempre existiram e das quais resultaram, em convergência ou
divergência, novas ideias e projetos educativos e artísticos.
Contudo, uma apologia e aceitação acrítica do que “vem
de fora”, em particular dos países centrais como bem descreve António Pinho
Vargas no seu último trabalho, em detrimento de uma “cultura nacional”, sempre
mutável e transitória, contribui, por seu lado, para diferentes tipos de
“fechamentos”, na expressão de JFB, e de “elitismos pouco significantes” que
pouco contribuem para a construção identitária de um país e de uma cultura
portuguesa periférica.
De um outro modo, o aprofundamento da cultura e da
democracia, combatendo a mediocridade e o provincianismo, exerce-se num quadro
de trocas alargadas de experiências oriundas de diferentes geografias sociais e
culturais e a reapropriação que, de diferentes modos, delas se faz, sem que
isto signifique subalternizar a cultura e a música portuguesa e os seus
diferentes profissionais e amadores.
As
interdependências entre a formação e a vida musical
Apesar dos vários tipos de desenvolvimentos, as
relações entre a educação e a cultura afiguram-se paradoxais, no contexto da
sociedade portuguesa, assentes, por um lado na retórica da sua pertinência e,
por outro, na dificuldade de desenvolvimento de políticas consertadas e
articuladas entre as estruturas de formação, criação, produção e de difusão.
O incremento de uma sociedade mais culta musicalmente
implica uma articulação profunda entre os diferentes tipos de componentes que
constituem a vida musical, em relações de interdependências multifacetadas que
se retroalimentam e que, pelo menos do ponto de vista da teoria, um incremento
na formação possibilita um incremento da música, dos músicos (compositores e
intérpretes), investigadores e de outros tipos de atores ligados à vida
musical: dos técnicos, dos ouvintes, dos amadores. Esta articulação pode também
possibilitar atenuar alguns dos problemas existentes no designado mercado
musical: da edição de partituras, livros, discos, ao incremento da música nos media,
por exemplo.
Em toda esta problemática a concetualização dos conservatórios
de música como “centros de cultura” não deixa de se afigura uma elemento
político e estratégico em toda a “cadeia de comunicação musical” em que as
diferentes tipos de estruturas interagem diferentemente tendo em conta também,
e essencialmente, a “construção de um bem comum” de que falam, por exemplo
Boltansky e Thévenot.
O Estado e a
rede de atores públicos e privados
A perspetiva de uma sociedade mais culta e, por esta
via também, mais democrática remete para questões relacionadas com o papel do Estado
e da rede de atores individuais e coletivos, públicos, privados e do terceiro
setor, na governança e no desenvolvimento da educação e formação e na vida
musical.
Sendo uma discussão, pelo menos em termos políticos e
de políticas públicas, complexa e muitas vezes com divergências profundas, veja
por exemplo o livro as Artes do Estado e o Estado das Artes, importa salientar
que o posicionamento de JFB centrava-se numa dupla perspetiva. Por um lado o
papel determinante do Estado como agente incentivador e regulador da formação e
da vida musical e, por outro, o papel relevante que diferentes tipos de
entidades e associações desempenham na prossecução dos objetivos de formação,
criação, produção e difusão artístico-musical.
Papéis diferenciados mas em complementaridade num
movimento aparentemente paradoxal entre a centralização e a descentralização.
Centralização no que se refere a estruturas de coordenação política e de
políticas, aos apoios e elaboração de estudos que suportam a decisão política e
as políticas, de que a criação de um Ministério da Cultura e de Direções gerais
são exemplo. Descentralização de organismos e das atividades formativas e
artísticas que contrariem a tendência de “litorização do país” potenciando a
existência, por exemplo, não só de escolas como também de espetáculos musicais
relevantes no desenvolvimento cultural das diferentes regiões do país.
3.
Considerações finais
Como procurei demonstrar o pensamento e ação,
complexa, heterogénea, de João de Freitas Branco, apresenta-se, em muitos e
diferenciados aspetos, de uma atualidade “impressionante” e a que é “urgente”
não só estar atento, mas potenciar e dar continuidade. Como refere Paulo
Ferreira de Castro (2001) João de Freita Branco “foi uma personagem de utopia” e um “inconformado com a estreiteza e mediocridade do meio musical
português” (p. 46). Escreve Paulo Ferreira de Castro que “homem de esquerda por convicção (e já muito
antes do 25 de Abril, João de Freitas Branco encarnou, por fim, um dos
paradoxos mais interessantes da esquerda portuguesa – o de tender a assumir-se
como defesa da cultura em si, isto é, num certo sentido, da tradição (e mesmo
da Tradição) contra o obscurantismo, do gosto (e mesmo do Gosto) contra a
ignorância, na perspetiva da “devolução” democrática de um património
ilegitimamente confiscado” tendo “a
lucidez de compreender – e de tornar claro para os outros – que, sem cultura,
não podia haver democracia plena. Ou talvez, mais realisticamente, que a
cultura podia não ser condição suficiente para garantir a democracia – mas era,
pelo menos, necessária” (p. 52)
Ora, como refere José Manuel Pureza numa artigo
publicado no DN em Junho de 2012
intitulado “No centro da democracia, a cultura” sendo a democracia um “lugar político em que a diversidade é o
bem maior” a cultura “não é uma
questão de contas. É uma questão de princípios […]. É uma questão de ambição
social” em que ou se quer “um país de
gente amestrada, acrítica e formatada pelos padrões massificados” ou se
abre “espaço […] para gente com
horizontes amplos, com capacidades reflexivas, críticas e participativas, para
pessoas mais criativas, mais tolerantes, mais cosmopolitas, mais democráticas.”
Isto porque a democracia assenta na existência de
públicos informados e cultos e não necessariamente no especialista erudito que
procura condicionar “o gosto” e as “opções” estéticas, artísticas e formativas
de que fala Samuel Jones, em que o direito à cultura é indissociável do direito
à liberdade de expressão e do direito de participação. Um verdadeiro direito à
cultura é aquele que estende ao conjunto dos membros da coletividade o acesso
tanto à prática como à experiência cultural e artística diversificada e
cosmopolita para que tanto trabalhou João de Freitas Branco.
[3]
Esta “cadeia compreende um emissor, a sua
mensagem, um mensageiro ou conjunto de mensageiros, um destinatário (ouvinte,
público) com possibilidades de acumulação e funcionando mercê de códigos”
(Idem)
[4] Dogmatismos quer em termos
musicais quer os que estão presentes noutros domínios de natureza mais científico-prática.
Por exemplo, e a propósito do Encontro de Etnomusicologia, João de Freitas
Branco escreve no Jornal de Letras que “o programa geral tomou a palavra
“etnomusicologia” em sentido bastante largo. Ou melhor, entendeu-a junto à
letra dum “cientismo” ortodoxo na linha bartokiana, criando no entanto espaços
materiais para heterodoxias que já serem-no se mostram de algum modo
tributárias dela”. Acrescenta,
no que se refere às intervenções musicais que “a actuação do próprio grupo ALMANAQUE” se situa “na zona da etnomusicologia “cientista”, …
porque ao dar a ouvir uma dúzia de trechos (…) os moços e moças do ALMANAQUE
mostraram-se tão demandantes de rigor, tão avessos a qualquer estilização para
burguês gostar, como no acto das próprias recolhas ou da transcrição da fita
para o papel”. Por outro lado, a “heterodoxia” esteve representada pela
Brigada “e que poderá ter ofendido alguns
puritanos, […] música que, embora não etnomusicologicamente pura, possui genes
de criatividade do povo português”.
[5] Esta concetualização da
música e da cultura musical está aberta a vários tipos e culturas musicais. Numa
crítica a uma coleção de discos da UNESCO refere que “esta coleção de recolhas de música do Oriente reclama a atenção de
todo o musicófilo consciente de que a arte dos sons não é exclusivo da
civilização ocidental, e que é preciso conhecê-lo nos seus aspeto exóticos. Mas
não será precisamente a palavra ‘exótico’ a mais flagrante prova da nossa
escandalosa ignorância” (Branco, 1964: 689). Também Numa crítica à
designada “1ª Grande Festa da Música” organizada em 1982 pelo Sindicato dos
Músicos João de Freitas Branco escreve que “a
heterogeneidade da música tocada ou cantada, desde o fado de restaurante típico
à partitura clássica sinfónica, desde o solo de acordeão às experimentações de
vanguarda”. E esta “abertura a todos os géneros” teve um conjunto de
significados: “o primeiro consiste na
aproximação de músicos e também de espectadores, cujos compartimentos se diriam
estanques […]”. O segundo significado remete para o facto de que “a “Festa” veio corrigir, de maneira muito
nítida, a afirmação frequente, mas simplista e portanto errónea, de que não há
música clássica e música ligeira, música séria e música de mero entretenimento,
mas sim música boa e música má” (João de Freitas Branco, Jornal de Letras,
Ano I, n.º 23, 5 de Janeiro de 1982, p. 21, REG1998).
[6] Sobre este tipo de
problemática ver por exemplo, Sasportes, artigos do Diário de Lisboa,
entrevistas aos estudantes sobre a reforma de 1971
[7] Este tipo de crítica
continua presente, anos mais tarde, em relação ao fechamento da formação dos
músicos. A propósito da atividade do: “[O]
Núcleo
da Escola de Música do Porto para o estudo e divulgação da música do século XX,
a Oficina Musical, de que Álvaro Salazar e Madalena Soveral são directores
artísticos” abrangendo “cursos
de Composição e Análise, concertos, não apenas no Porto e com primeiras
audições importantes, concursos, colaborações como outras incitativas culturais
de orientação moderna, publicação de textos informativos e didácticos” || É
certo que também noutros períodos se verificaram avanços do saber música,
promovidos por uma pequena roda de criatividades e inteligências, sobre o
pelotão da mediania. Em todo o caso, há diferenças nítidas no atual modernismo
musical europeu, em relação aos dos tempos de Beethoven, de Berlioz, de LIszt,
de Mussorgsky, de Debussy e até dos jovens Schoenberg e Stravisnky. || Ninguém
ignora que muitas partituras foram então compreendidas, por vezes com
escândalos públicos. Mas não só os músicos profissionais como também os muitos
amadores que frequentavam os espetáculos e cantavam ou tocavam instrumentos em
sessões privadas conheciam os sentidos das palavras técnicas usadas,
basicamente pelos inovadores. (“Saber música hoje e ontem” (Jornal de
Letras, Ano I, n.º 19, 10 de Novembro de 1981, p. 31, REg1994)
[9] Esta crítica ao mercado
está também presente na programação de espetáculos que foi assimilando as
lógicas de mercado e adequando, de acordo com as diferentes transformações
sociais e culturais, estas mudanças no âmbito da atividade musical em
diferentes tipos de instituições. Como escreve Freitas Branco “a
tendência geral dos organizadores de espetáculos musicais que sabem do negócio
(no sentido mais latino que português moderno da palavra) não é, atualmente,
para juntar num mesmo programa Adam de la Halle, Jorge Peixinho, Machaut,
Boulez […] mas sim para acenar à diversificada clientela com séries votadas
(cada cor, seu paladar) a música medieval, música renascentista, música
barroca, e por aí fora, até a mais ou menos impropriamente chamada vanguarda. É
evidente que este facto acentua uma certa relatividade dos valores, das
valorações e dos critérios estéticos, e mesmo uma diferenciação de conceitos e
terminologias (“Em vésperas
de surgimento do Conselho Português da Música?”, João de Freitas Branco, Jornal
de Letras, Ano II, n.º 32, 11 a 24 de Maio de 19982, p. 17 REg2008). Também no
que se refere à edição de partituras, “dos
nossos compositores representativos, do passado e do presente” João de
Freitas Branco nota que é “um dos casos
que mais reclamam atenção” uma vez que
“a exiguidade das que se encontram no
mercado é uma vergonhosa miséria que causa em músicos profissionais e amadores
estrangeiros perplexidades crescentes. Isto, porque vão aparecendo discos com
obras que logo suscitam em muitos ouvintes o interesse se adquiri as
respectivas partituras. Partituras que deveriam existir nas lojas e não
existem. Mas note-se que não são só essas dezenas, já com honras de
micro-sulco, que urge dar à estampa, senão que umas largas centenas,
distribuídas ao longo de séculos” (“A modulação necessária”, João de
Freitas Branco, Jornal de Letras, Ano I, n.º 10, 7 a 20 de Julho de 1981, p. 31Reg1981).
[10] E este organismo
coordenador é um dos aspetos que, segundo o seu ponto de vista, está também
subjacente ao Teatro Nacional de São Carlos: “O problema operático do Teatro de S. Carlos é dos que apontam a falta
que está fazendo uma entidade coordenadora das organizações musicais
portuguesas. Uma direção Geral da Música, dispondo de eficientes meios de ação
e esclarecidamente orientada, seria de grande utilidade” (Branco, 1967:123
REJMP Critica à Temporada de ópera do Teatro Nacional de S. Carlos)
Sem comentários:
Enviar um comentário