quarta-feira, 13 de junho de 2012

a educação artístico-musical: uma questão de democracia e de cosmopolitismo

A relação entre as artes, a cultura e a educação, onde a educação artístico-musical se insere, é uma relação política paradoxal onde, a par de retórica assente na pertinência da sua inclusão no sistema educativo português tem-se assistido a uma dificuldade política e de políticas que deem corpo a este desígnio. E nesta relação paradoxal, a pressão internacional afigura-se com uma dimensão importante. Em particular a pressão das instâncias económico-financeiras em que se perspetiva a educação como instrumento ao serviço das teorias do capital humano a que se juntam as teorias que defendem que a educação artística potencia a criatividade, facilitando a adoção de novos conceitos e metodologias de trabalho menos ortodoxas, permitindo a formação de recursos humanos mais criativos e mais ajustados à polivalência e flexibilidade necessárias no contexto das sociedades contemporâneas ocidentais.

Por outro lado, se a esfera empresarial e da economia, no contexto de um “novo espirito do capitalismo” de que falam Luc Boltanky e Éve Chiapello, incorporam conceitos e ideias oriundos da esfera artística, por sua vez, as artes, e a música e o seu ensino em particular, têm sido contaminadas por uma visão mercadorizada, gestionária e fragmentada incorporando no seu discurso e na sua ação conceitos que advieram destas esferas.

Com efeito, as perspetivas dominantes de pensar a música na educação, acompanhando perspetivas internacionais, consensualizou a divisão da formação entre a “música na educação” e a “educação para a música”. No primeiro caso, perspetiva-se uma formação generalista, fundamentalmente realizada no que se convencionou chamar de “ensino regular”, alegando-se a existência de valores intrínsecos e instrumentais que potenciam a formação das crianças jovens e adultos, e, no segundo, a ideia está alicerçada na formação especializada de preparação de futuros artistas e profissionais no comummente designado “ensino especializado de música” ou “ensino profissional de música”.

Cada um destes “espaços formativos” foi adquirindo uma maior liberdade e autonomia em simultâneo com uma menor coesão e uma maior fragmentação e fragilidade face às diferentes tutelas institucionais e simbólicas dos poderes públicos e privados, e mesmo inter-pares. As redes de interação nem sempre se consubstanciaram numa estratégia política integrada e articulada, potenciando resistências e conflitos de valores formativos e culturais. Estas redes de interação manifestam-se através de um conjunto de hierarquias que cruzam as dimensões educativas e culturais e que são traduzidas por discursos, ações e políticas assentes, em designações como, por exemplo, “formação especializada vs formação não especializada”, “formação de músicos vs formação de públicos”, “cultura erudita vs cultura ‘popular’, “formação para todos vs formação de elites”.

A elaboração, a impulsão, o desenvolvimento e implementação das políticas para este subsistema tem por base uma estrutura profunda centrada na dicotomia entre equidade e “erudição/excelência”. Esta perspetiva enferma de uma contradição profunda ao considerar que só determinados bens educativos e culturais poderão ser usufruídos pelas diferentes comunidades. Por outro lado, está muitas vezes camuflada na ideia de associar excelência à exclusividade de determinados bens artísticos e culturais, em que a excelência em si é muitas vezes considerada como exclusiva, canónica e “herdeira de um passado”, como refere John Holden.

Várias ideias emergem desta perspetiva em se procura associar a “excelência” à “exclusividade”. Uma é a de que os “músicos clássicos” têm uma formação superior a outro tipo de músicos e que a colaboração entre eles é sempre uma colaboração deficiente; uma segunda é que o “sucesso popular” é sempre de “baixa qualidade” e, uma terceira ideia é a de que a “arte pela arte”, a “pureza da arte” fica contaminada quando entra em contacto com outras formas consideradas como não artísticas.

Ora o que está em causa é a crença de que apenas uma pequena minoria pode apreciar as formas de arte mais “eruditas” e que estas precisam de ser defendidas dos públicos que não têm competências sociais, culturais e artísticas para a poderem apreciar e avaliar. De facto, ao falar-se de arte, ela está associada a algo de especial com determinada aura de que fala Walter Benjamim, que não é a mesma coisa do que o entretenimento, e que eleva o humano para além do dia-a-dia, tendo uma função social importante na crítica ao senso comum e na procura de novos territórios, conduzindo, por isso, os apreciadores a “um passo em frente” em relação à experiência mundana. No entanto, as intersecções e as redes entre as diferentes esferas da cultura incrementam não só as ambiguidades entre os modos mais conservadores de olhar para as artes e a cultura.

Diversidade, proximidade, singularidades
Apesar das propostas alternativas de instituições formativas e culturais, de professores e de artistas, os modos dominantes de pensamento assente em hierarquias, de organização burocrática e profissional (do Estado, escola professores e artistas) têm dificultado o desenvolvimento de soluções diferenciadas com maior proximidade às pessoas, às comunidades, às diferentes tendências artísticas.

A questão central, política e de políticas, está situada na criação de condições de modo a que os processos permitam envolver a capacidade de construção de ferramentas conceptuais, de pensamento e de cultura. Isto porque no contexto das sociedades contemporâneas, não se pode ignorar que elas não são uma manta de retalhos igualitária resultante da justaposição harmoniosa de culturas diferentes, mas organiza-se à volta dos valores da cultura dominante, central e hegemónica de que fala por exemplo António Pinho Vargas, que apenas acomodará os contributos culturais de outros participantes na medida em que sejam compatíveis com os seus valores.

Deste modo, é necessário colocar a exigência da escolha no âmbito de uma vivência na diversidade permitindo conceder a todos a palavra como sujeitos e atores do seu próprio discurso, tal como devem ser reconhecidos como sujeitos e atores dos seus direitos. Por outro lado, em todos estes processos é de salientar, como escreve Dan Van Raemdonck, que “um dos papéis primordiais da atitude artística” é “criar, propor aos nossos imaginários universos que nos compliquem a vida, que nos ponham questões”.

Assim, e num tempo contraditório e paradoxal, afigura-se pertinente pensar as artes e o trabalho artístico e a educação artístico-musical, em que os processos de massificação andam a par com a construção de singularidades artísticas e onde a globalização dos fenómenos políticos, educativos, culturais e organizacionais convivem com os mundos locais, como um território de fronteira na aceção de Boaventura Sousa Santos.

Território de fronteira que (re)concilie as esferas artísticas, as formações e os indivíduos, a educação e a cultura com os diferentes tipos de práticas culturais, sociais e comunitárias. E este reconciliar é um dos desafios centrais das políticas educativas e culturais desenvolvidas pela administração central e pelas instituições de formação de modo a aumentar o compromisso social e cultural com a educação artístico-musical como espaço público, acolhendo e apoiando as iniciativas que possibilitem a afirmação da sua originalidade e individualidade. Na assunção das características distintivas, como polos de aperfeiçoamento pessoal, artística e musical aberto a outros modos de formação, produção, criação, difusão e de fruição mais contemporâneas, que contribuam para a sua sustentabilidade social e, numa convivialidade entre diferentes, que potenciem a construção de uma sociedade democrática mais culta, plural e cosmopolita.
Publicado no Le Monde Diplomatique, Versão Portuguesa, n.º 68, Junho 2012, p.8.