sábado, 1 de outubro de 2011

Ensino de Música numa era de convergências e de colisões culturais: dos cânones à ecologia[1]

Music (...) mirrors the world
Robert P.Morgan
Music may be what we think it is; it may not be.
Philip V. Bohlman
I hear all sounds running together, combined,
fused or following,
Sounds of the city and sounds out of the city, sounds
of the day and night...
Walt Whitman, Songs of Myself
The times, they are changing
Bob Dylan



Introdução

A música é uma rede diferenciada de intersecções que cruza por um lado, sons, sentidos, saberes, emoções, ideias, valores e estruturas (Kingsbury,1988) e, por outro, criadores, interpretes, técnicos, investigadores, professores, críticos, agentes, comunidades e públicos (Becker,1984; Crane,1992). De acordo com um contexto social e cultural particular existe uma combinação de factores, tecnológicos, económicos, ideológicos, estéticos, entre outros, que contribuem para determinar os modos como se concebe a música, como é que ela soa, como se aprende e se ensina, quais os cânones predominantes.

A pluralidade existente nas culturas, práticas e consumos musicais contemporâneas compreendem problemáticas estéticas (associadas a diferentes estilos e tipologias musicais), geográficas (englobando várias partes do mundo) e histórico-sociais, englobando diferentes épocas, etnias e contextos. Com os seus valores, hierarquias, códigos, convenções, usos e funções.

O contacto entre diferentes mundos sonoros (Schaeffer,1993; Schafer,1997) desenvolve dois movimentos aparentemente paradoxais entre uma homogeneização dos saberes e práticas artístico-musicais e a procura do que é único (Menger,1983, 1996). Os efeitos desses contactos têm amplitudes diferenciadas variando entre ajustamentos relativamente pequenos entre diferentes estilos e géneros musicais até uma “creative transformation of the world styles and of the ideological and music-organizing principles on which they are based” (Kartomi,1994:ix). Podem conduzir à produção de novas ideias musicais, modos composicionais, novos reportórios, outros discursos sobre a música ou novos métodos de ensino “and even the way a group dresses or behaves at musical events may change as a result of convergences in contact situations” (Idem).

 Por outro lado, este contacto pode criar rupturas e colisões entre diferentes mundos, quando determinadas comunidades rejeitam músicas que lhe são estranhas; quando as práticas hegemónicas dão prioridade a determinados tipos de música em detrimento de outras. Estas colisões podem conduzir também à perca e ao abandono de géneros e conceitos, ao empobrecimento da música nas comunidades, à perda de determinados instrumentos e outros bens culturais e identitários.

Neste contexto, o ensino da música é interpolado por um conjunto de problemáticas onde: (1) existem múltiplas vozes e polifonias sonoras e musicais e um espaço e um tempo escasso para as acomodar a todas; (2) cada uma destas vozes e polifonias contém pressupostos e ideologias muitas vezes contraditórias e conflituais entre si; (3) os cânones dominantes e hegemónicos criam universos de exclusão, mesmo quando se afirmam inclusivos e diferenciados; (4) os cânones estão a mudar ou mesmo a desintegrar-se nas proliferação de outros olhares e práticas artístico-pedagógicas; (5) ao longo do percurso formativo as diferentes experiências de socialização contribuem para alargar ou diminuir quadros de referência.

Com efeito nas sociedades contemporâneas o ensino e a aprendizagem da música é um domínio complexo, plural e paradoxal. A par da apropriação de determinados códigos e convenções (todos eles diferentes conforme a sua historicidade e contextos), procura-se e fomenta-se a criação de subjectividades que se distingam pela sua originalidade e competência. Neste sentido colocam-se algumas interrogações: como é que os diferentes mundos sonoros convergem ou colidem uns com os outros no âmbito da educação e do ensino? Será que as hierarquias musicais existentes no ensino da música reflectem as hegemonias de relações de pode existentes na sociedade? Como conciliar e traduzir diferentes mundos sonoros para além das lógicas de poder e de lógicas hegemónicas? De que modos é que o ensino de música pode contribuir para o reconhecimento dos diferentes saberes inerentes às práticas musicais? Como lidar com os conflitos existentes entre diferentes culturas e tipologias musicais assim como as práticas sociais e culturais que lhe estão associadas? Como potenciar o conhecimento e o pensamento musical em todas as suas vertentes?

 O presente texto  é uma reflexão que cruza várias disciplinas: da musicologia à etnomusicologia, dos estudos da educação aos estudos da cultura. Pretende por um lado, questionar os cânones predominantes e hegemónicos existentes no ensino de música e na relação cultura-educação-sociedade e, por outro, dar voz a outros discursos e práticas existentes nos processos de construção política, de ensino, de aprendizagem, de experienciação sonora. Discursos e práticas que se enquadram no que designei por ecologia dos mundos sonoros.

 Inserido numa perspectiva de uma “razão cosmopolita” (Santos,2002), este trabalho não pretende identificar novas totalidades, ou grandes narrativas (Foucault, ). Pelo contrário, a proliferação de mundos sonoros e das culturas e subculturas musicais “requires an intensification of critical reflection and historical consciousness” (Blum,1994:268) que interpele o ensino de música nas suas várias vertentes e valências. Que interpele o ensino da música a repensar-se quer sob o ponto de vista do que inclui e do que exclui nas aprendizagens, nas metodologias utilizadas, nas investigações que realiza.


Música, educação e cânones
Alan P. Merriam caracterizou a música como um fenómeno tripartido composto pelo som, pelos comportamentos e pelas concepções e ideias. Cada um destes itens está interrelacionado e desempenha um papel relevante na configuração da natureza dos outros dois. Nettl (2001) por sua vez refere que ”the ideas about music, what it does for human society, how it relates to other components of culture such as religion, economic life, class structure, relationship of genders, that determine in the end the quality of a society’s musical life. The ideas about music determine what the context for music will be and how the music will sound” (p. 8). Por outro lado, como diz Morgan (1991) as músicas do nosso tempo reflectem o carácter fragmentado do mundo em que vivemos.

 De facto, os mundos da música têm formas diferenciadas de se relacionarem com este fenómeno tripartido: do concertista de citar, ao pianista na tradição erudita ocidental, do concerto de música sinfónica ao Rap e Hip Hop, da música Sufi aos serviços religiosos ocidentais, da música das cerimónias rituais em África aos rituais associados aos concertos de Marylin Mason.

Disto resulta que a música pode ser entendida e olhada de diferentes perspectivas. Como refere Bohlman (2002) a música pode ser o que pensamos que ela é, pode ser que não. “Music may be feeling or sensuality, but may also have nothing to do with emotion or physical sensation. Music may be that to which some dance or pray or make love; but it’s not necessarily the case. In some cultures there are complex categories for thinking about music; in others there seems to be no need whatsoever to complate music. What music is remains open to question at all times and in all places” (p. 17).

A que nos é mais habitual é ela ser considerada como uma arte tentando percebê-la através de terminologias estéticas e correntes estilísticas ao longo do processo histórico. Contudo, se a pensarmos sobre o ponto de vista dos usos e funções ela é muito mais do que uma arte e que explica a sua importância social. Isto é, a música contribui para a construção social da realidade (Berger & Luckman,1985) e para a construção identitária através de práticas artísticas e concepções, que remetem para determinados mundos, que marcam determinadas épocas e que caracterizam determinados espaços territoriais (Blacking, 1995, DeNora, 2000; Martí, 2000).

Apesar de todas estas polifonias (Ó Súilleabháin, 2002), existe um conjunto de cânones (Bergeron, 1992; Weber, 2001) que estabelecem normas, standards e determinados modos de regular as ideias, as práticas musicais e o seu ensino. Os diferentes tipos de cânones e as suas estruturas profundas vieram a complexificar-se com a globalização, as “indústrias culturais” e a proliferação de géneros, hierarquias, homogeneizações e diferenciações.

Contudo, a criação de um cânone não é em si um problema. Qualquer grupo social, étnico, artístico cria os seus próprios códigos, convenções e cânones (Becker, 1984; Martin, 1996). O problema está na canonização na “institutionalization of certain works over others trough the imposition of hierarchies of self-invested value upon other people and their music” (Koskoff, 2001:547)

Nesta institucionalização e perpetuação de cânones, os modos de ensino representam um papel determinante. No que é incluído e no que é excluído (Blum, 1994; Hennion, 1988; Nettl, 1994, 1995; Kingsbury, 1988, Small, 1980, Vasconcelos, 2002). “The curricula of music departments depends on the scaffolding afforded by the essential repertoires and pedagogical pigeonholes – which is to say, the canons necessary for graduation and degree-granting. Entrance into the field demands familiarity with a central set of canons” (Bohlman, 1992:210).

 O trabalho de investigação realizado até ao momento permitiu distinguir quatro grandes tipos de cânones que caracterizam as racionalidades dominantes no ensino da música em Portugal: cânone da monocultura do saber, cânone de classificação, cânone do produto e cânone do mosaico.

Cânone da monocultura do saber. Este cânone assenta na concepção da ciência e da alta cultura como critérios “únicos de verdade e de qualidade estética”. Cada uma destas culturas arroga-se ser cânones exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística. Tudo o que não se ajuste ao cânone ou o que ele não legitima ou reconhece são formas menores, embora algumas vezes toleradas por força das circunstâncias sociais e culturais.

Neste tipo de cânone a racionalização do ensino apresenta-se como um dos elementos estruturantes. Este esforço de racionalização conduziu a que o ensino da música e a pedagogia artística passasse a utilizar expressões como objectivos, eficácia, eficiência, entre outros, importados do universo empresarial. Se esta racionalização se saldou por alguns ganhos significativos caiu-se contudo, “na tentação de reduzir o trabalho pedagógico a uma dimensão exclusivamente racional, como se o acto educativo se inscrevesse necessariamente no prolongamento do raciocínio científico. Como se fosse possível (e desejável) instaurar uma qualquer razão educativa limitando do ensino os factores aleatórios do quotidiano escolar” (Nóvoa,2002:33).

Este tipo de cânone manifesta-se em todos os tipos de ensino (superior e não superior) através dos repertórios estudados, enquadramentos teóricos dominantes, tecnologias e metodologias de ensino e modos de investigação e produção de conhecimento (Folhadela et all,1999, Ribeiro,2000; Santos,1998; Vasconcelos,2001).

Cânone de classificação. A ideologia canónica criou lógicas classificatórias de géneros e “has often been manipulated for the purposes of snobbery and social élitism” (Weber,2001:354). A distribuição das várias tipologias artístico-musicais por categorias que naturalizam as hierarquias e as diferenças, reforçam diferentes tipos de poderes. É por causa de isto que se olha para a música erudita ocidental como a “grande música”, mais dinâmica e complexa do que outros tipos de música.

Por outro lado, neste cânone existe “a ideia de que a história tem sentido e direcção únicos e conhecidos” (Santos, 2002:247) que caminha do mais simples para o mais complexo, do menos desenvolvido para o mais desenvolvido. Esse sentido e direcção tem sido formulado com conceitos como progresso, modernização, desenvolvimento, crescimento, globalização. Esta perspectiva classificatória caracteriza-se também por um pensamento dicotómico com os seus centros e periferias.

Este cânone conduziu a políticas públicas e a políticas pedagógico-artísticas alicerçadas em separações de modalidades de ensino: ensino especializado versus ensino de amadores, ensino profissional versus ensino genérico, o ensino de jazz versus ensino das bandas filarmónicas. Separações que impediram a existência de outras práticas no ensino superior, no ensino dos conservatórios e de academias de música e no ensino não especializado bem como no desenvolvimento de actividades amadoras (Nogueira,1987; Nogueira et alli,1991).

Cânone do produto. O conceito de produto é dominante em diferentes tipos de conceptualizações existentes no ensino e na profissionalidade dos docentes de música (Small,1980; Vasconcelos,2002). Neste tipo de cânone é-se o produto de determinada escola, professor, técnica, estética. Assenta na reprodução de determinados modelos, numa lógica de mercadorização da formação e do acto artístico e cultural.

A formação e as escolas são valorizadas mais pelos produtos (estudantes formados e outro tipo de “mercadorias” e bens culturais) que conseguiram introduzir no mercado do que pela e pertinência (social, artística e intelectual) do trabalho desenvolvido. Neste cânone a lógica economicista e tecnocrática predomina sobre qualquer outro tipo de racionalidade e de construção do saber (Attali,1977). É-se avaliado pelo número de actividades artísticas desenvolvidas, pelos papers que se escrevem, apresentam e publicam numa perpetuação de lógicas circulares de poder e de visibilidade.

O cânone do produto assenta na normalização e estandardização dos currículos, na realização de exames para facilitar a escolha e melhorar a competitividade. Exames que produzem rankings entre estudantes, professores, escolas. Flexibilidade curricular, certificação, qualificação são um outro lado do espelho deste tipo de cânone em que as aprendizagens e a formação estão pensadas em função de determinados produtos e de segmentos de mercado.

Cânone do mosaico. Numa perspectiva do “politicamente correcto” o ensino da música tornou-se cada vez mais multicultural. Contudo, a dificuldade de envolvimento em sistemas epistemológicos, cognitivos e societais não cartesianos conduziram a modos de ensino que se caracterizam pela justaposição de culturas musicais, racionalidades e de medidas avulsas. Passou-se de “particularismos contextualizados” para “universalismos sem contextos” (Santos,1994).

Neste tipo de cânone estuda-se Mozart e Beethoven como fazendo parte do período clássico ignorando-se os diferentes mundos a que pertenceram. Como se esses mundos (sociais, artísticos, intelectuais) não influenciassem a música que escreveram. Interpreta-se música jazz como se tocasse um “clássico”, interpreta-se um lied de Schubert como se fosse um fado. Estuda-se uma música da Libéria ou uma canção árabe sem a compreensão das tensões que lhe estão adjacentes. É um cânone assente numa espécie de macdonalização artística e macdonalização da diferença (Ritzer,1996).

Da ecologia e da tradução
Os antigos cânones estão a dar origem a múltiplos cânones. No entanto, como refere Koskoff (2001) “perhaps we should stop looking at this from the perspective of canon, or even from the ‘multiple canons’ with their boundaries and individual entities, and move more toward a new perspective of ‘problem-solving’. This is a two-stage process, the first of which we are in rigt now: becoming comfortable with moving effortlessly from centre to margin and back again – living with likeness and difference simultaneously, and perhaps livening up our journeys with friendly or not-so-friendly engagements betwen centres and margins, between insiders and ousiders” (p. 558)

Assim, e como contraponto aos cânones tradicionais e dominantes identifiquei um conjunto de outros modos de pensar e de fazer que se inserem no que designei por ecologia dos mundos sonoros. A ecologia dos mundos sonoros assenta na interdependência dos saberes, no reconhecimento das diferenças, na valorização do processo, no território de fronteira. Estes elementos constituintes da ecologia têm em comum a ideia de que a realidade não se reduz apenas ao que é visível, na assunção da complementaridade não destrutiva entre diferentes mundos sonoros e contrariam o atomismo e o fechamento disciplinar “responsável pela redução da realidade às realidades hegemónicas ou canónicas” (Santos, 2002:268).

Por outro lado a ecologia dos mundos sonoros assenta no pressuposto de que a cultura não é apenas o que nos une mas também o que nos separa (Ribeiro,2002:204). Lugar de partilhas, conflitos, lutas. Neste sentido procura criar inteligibilidade, articulações e coerência num trabalho de tradução (Callon,1986; Latour,1999) entre o que une e o que separa os diferentes mundos, entre as subjectividades e os diferentes tipos de interesses. Como refer Latour (1999) a tradução refer-se “to all the displacements through other actors whose mediation is indispensable for any action to occur” superando aws rigidas oposições “between context and content, chains of translation refers to the work throug which actors modify, displace and translate their various and contraditory interests” (p. 311).

Este trabalho de tradução parte também da ideia que todas as culturas são incompletas e que elas “podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo confronto com outras culturas”, num exercício daquilo que este autor designa por “hermenêutica diatópica” (Santos,2002).

A interdependência dos saberes. As convergências e colisões entre os saberes são convergências e colisões entre diferentes processos através dos quais as práticas artísticas e educativo-formativas diferentemente incompletas e ignorantes se transformam em práticas inteligíveis e mais “sábias”. Saberes artístico-musicais que não vivem isolados de outros saberes e práticas e que contêm dimensões políticas, sociais, culturais e investigativas. Não existe uma separação entre sujeito e objecto como acontece nas culturas e tradição cartesiana (Damásio,1995).

Esta interdependência permite não só superar o cânone da monocultura do saber como também contrapor à ideia de alternativa (que pressupõe uma determinada norma e relação de poder) a identificação dos contextos e das práticas em que cada uma opera, os modos como superam o que se ignora e o que está incompleto. Por exemplo, o que é que o conceito de Raga ou Makam contém que escapa ao conceito de escala ocidental? O que é que nos modos de organização e conceptualização do mundo sonoro dos Kaluli escapa aos modos de organização dos sons electrónicos? O que é que existe nas músicas populares que escapa à dicotomia erudito/popular? O que é que existe no conhecimento tradicional que escapa à dicotomia conhecimento científico/conhecimento tradicional?

Credibilização das diferenças. Ao cânone classificatório contrapõe-se a assunção das diferenças constituídas por reconhecimentos mútuos. Por exemplo, como não existe um único princípio de transformação musical não é possível determinar em abstracto articulações e hierarquias entre diferentes experiências sonoras e as suas concepções artístico-musicais. “Só através da inteligibilidade recíproca das práticas é possível avaliá-las e definir alianças entre elas” (Santos,2002:265).

O trabalho de tradução procura esclarecer o que as une e o que separa os diferentes modos de conceptualizar, organizar e experienciar os mundos sonoros de forma a compreender as possibilidades e limites de articulação entre eles. Este trabalho de tradução não se resume apenas a questões técnicas que obviamente contêm. É também um trabalho político, intelectual e emocional.

Valorização do processo. A valorização do processo assenta na compreensão do ensino da música como uma mediação colectiva e interactiva baseada numa cultura de colaboração, de partilha, de participação de forma a revalorizar o trabalho sobre os diferentes saberes em presença.

As diferentes práticas artísticas e práticas educativo-formativas, os diferentes quotidianos escolares estão assentes numa pluralidade de valores, crenças e situações artísticas e outras que implicam a gestão das diferentes complexidades e imprevisibilidades. O que de mais decisivo acontece nestas interacções “não é possível de ser previsto, nem de ser medido: em educação o que marca a diferença é o modo de produção e não o produto” (Nóvoa,2002:35). O processo é algo dinâmico porque inacabado.

Território de fronteira. “Todo o acto cultural vive, no essencial, nas fronteiras”, afirma Bakhtine (citado por Ribeiro,2001). Também o ensino de música, como acto cultural, se enquadra num tipo de formação que se situa “no estar entre” (Swanwick,2001). Entre saberes, técnicas, mundos e geografias diversificados, numa rede de interacções entre diferentes tipos de comunidades e de sentidos. Território possibilitador de reconfigurações das tradicionais hierarquias sociais, culturais e identitárias em que a sua centralidade se encontra na assunção das margens (Vasconcelos,2002).

Isto implica a utilização de mapas cognitivos que lidam em simultâneo com diferentes tipos de escalas e de limites. Sempre contingentes e transitórios. Uma “transformative pratice zone” na qual os indivíduos “bring together their various areas of knowledge, experience and beliefs” (Bresler,2002:71)

Independentemente dos procedimentos individuais dos músicos professores e de alguns projectos existentes em diferentes escolas saliento três exemplos desta ecologia dos mundos sonoros. O primeiro diz respeito ao projecto que a Maria João Pires desenvolve no Centro de Estudos das Artes de Belgais (www.belgais.net). O trabalho desenvolvido é um bom exemplo nas relações que estabelece com a natureza e a cultura, entre as diferentes formas de arte, na interligação dos diferentes saberes. Também o trabalho artístico-pedagógico desenvolvido pela Casa da Música do Porto (por exemplo o projecto da Ópera Wozzeck com os habitantes de um Bairro desfavorecido) é paradigmático no diálogo que estabelece na interligação dos saberes, na credibilização das diferenças e na valorização dos processos. Por último, o trabalho desenvolvido em alguns sectores do ensino da composição (Vargas,2002) enquadra-se numa perspectiva de território de fronteira ao redimensionar a apropriação dos diferentes tipos de códigos, convenções, técnicas e tecnologias com as subjectividades em presença, na recriação das memórias e na procura de novos sentidos e de novos limites.

Repensar o ensino da música
Em “Songs of Myself” Walt Whitman escreve: “I hear all sounds running together, combined/ fused or following/Sounds of the city and sounds out of the city/sounds of the day and night (...)”. Esta pluralidade de mundos sonoros e a sua experienciação individual e colectiva nem sempre são reconhecidos e considerados relevantes pela ideologia canónica. A natureza dos diferentes mundos sonoros e as tradições são largamente influenciadas pelos modos de transmissão e pelos modos de ensino e aprendizagem (Nettl,2001).

Para contrariar este desperdício da experiência (Santos,2000) é necessário uma crítica ao modelo de racionalidade dominante e as práticas artísticas, educativas e científicas associadas. Para haver mudanças profundas na estruturação dos conhecimentos é necessário começar a mudar a razão que preside tanto aos conhecimentos como à sua estruturação (Santos,2002). No entanto, como refere este autor, “admitir a relatividade das culturas não implica adoptar sem mais o relativismo como atitude filosófica. Implica, sim, conceber o universalismo como uma particularidade ocidental cuja supremacia como ideia não reside em si mesma, mas antes na supremacia dos interesses que a sustentam” (p. 241).

Neste sentido, a diversificação, diferenciação e multiplicação dos diferentes mundos sonoros e as implicações societais e culturais que lhe estão adjacentes, levantam um conjunto alargado de questões ao ensino da música das quais saliento: (a) a fragmentação e atomização das práticas artísticas e educativas; (b) a dificuldade de conferir sentidos a mundos distantes dos nossos, fora de lógicas hegemónicas e canónicas; (c) a necessidade de construção de um ensino de música pertinente, pluridimensional e dialógico. Este tipo de questões implicam repensar o ensino de música numa tentativa de encontrar respostas aos sentidos de uma ecologia sonora, à tradução das diferenças entre políticas e culturas musicais (Flusser,2000; Mansfield,2002, Nettl,1992; Spencer,1998;.Westerland,1999).

As palavras de Koskoff (2001) dão um contributo ao afirmar, “we should be helping our students discover their own paths trough the maze all possible canons and values, past, present, and to come – with an underlying bedrock philosophy that all values, just like all people and all musics, have equivalent meaning to someone, somewhere (...) teaching them a new set of values that will enable them to know their own music well, but also to become good musical citizens in a world where boundaries of all kinds will become more and more permeable, where identities will become more and more multiple, and where differences between people and their musics will become more and more fuzzy” (pp. 558-559).

Por último, e ao contrário das opiniões dominantes não penso que a música faça parte do currículo do ensino em Portugal apenas para formar músicos, formar públicos, descobrir talentos, aprender a conhecer as obras das diferentes culturas. É muito mais do que isso. A música, e a arte em geral, como cultura e conhecimento pode ajudar na construção de outros possíveis, de outros sentidos nos quotidianos reais e ou imaginários, recuperando e recriando identidades (Fradique,2003). Para isso precisa de outras teorias, novas políticas, novos paradigmas que orientem um novo pensamento e acção estratégica, investigativa e educativo-artística e que contribua para ir encontrando respostas (sempre contingentes e transitórias) aos desafios colocados pelos contextos sociais, culturais e identitários da sociedade contemporânea. Em convergência, em colisão, em mudança.

Daí a necessidade de uma ecologia dos mundos sonoros onde os sons da natureza convivam com os sons electrónicos, onde os sons dos búzios convivam com os violinos, onde os sons dos pássaros convivam com o piano ou a orquestra. Sem hierarquias e hegemonias. Como acto político na construção de uma razão cosmopolita para o ensino da música onde as polifonias ecoem como espaços de liberdade na formação das pessoas que, utilizando as palavras de Nketia (1978), cresçam como cidadãos dos seus respectivos países e cidadãos de um “interacting world comunities”. “Perhaps – como refere Colin Durrant (2003)- we need to understand ourselves, within our own situations, that qualify musical experience is so powerful and cannot always be planned in terms of prescriptive learning outcomes or measured in tests, as we so often expected in more formal educational contexts. That is the nature of the creative act – the divergence, the inexplicable ‘wonderment’. Musical and artistic activity helps us to make sense of our world and make sense of ourselves as human beings with feelings within the world. Let more of it happen” (p.82).

Referências bibliográficas
Berger, Peter & Luckman, Thomas (1985). A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes.
Attali, Jacques (1977). Bruits. Paris: Presses Universitaires de France.
Becker, Howard, S. (1984). Art Worlds. California: University of California Press.
Bergeron, Katherine, Bohlman, Philip V. (1992). Disciplining Music. Chicago: The University of Chicago Press
Blacking, John (1995). Music, Culture & Experience – Selected Papers. Chicago: The University of Chicago Press
Blum, Stephen (1994). “Conclusion: “Music in a Agenof Cultural  Confrontation” In Margaret J. Kartomi & Stephen Blum, Music-Cultures in Contact. Convergences and Collisions. Basel: Gordon and Breach Science Publishers S.A.. pp. 250-277.
Bohlman, Philip V. (2001). “Ontologies of Music” In Nicholas Cook & Mark Everist Rethinking Music.. Oxford: Oxford University Press, pp. 17- 34.
Collon, Michel (1986). “Some elements of a sociology of translation: Domestication of scallops and the fishermen of St. Brieuc Bay. In John Law (Ed.),  Power, action and belief: A new sociology of Knowledge. London: Routledge & Kegan Paul. Pp. 127-143.
Damásio, António, (1995). O Erro de Descartes - Emoção, Razão, e Cérebro Humano, Lisboa: Publicações Europa- América.
De Nora, Tia (2000). Music in everyday life. Cambridge: University Press
Durant, Colin (2003). “Cultural exchanges: contrasts and perceptions of young musicians”. British Journal of usic Education, 20:1, pp. 73-82.
Durant, Colin (2003). “Cultural exchanges: contrasts and perceptions of young musicians”. British Journal of Music Education, 2003:1, pp.73-82.
Flusser, Victor (2000). “An ethical approach to music education”. British Journal of Music Education. 17:1, 43-50.
Folhadela, P., Vasconcelos, A. A., Palma, E. (1999). Ensino Especializado da Música: Reflexões de Escolas e de Professores. Lisboa. ME/DES.
Foucault, Michel (1988). “Practicing Criticism In Lawrence Kritzman (ed.). Michel Foucault Politics. Philosophy and Culture – Interviews and Other Writings 1977-1984. New York: Routledge
Hennion, Antoine (1988). Comment la musique vient aux enfants. Une anthropologie de l'enseignement musical. Paris: Anthropos.
Kartomi, Margaret J. (1994). “Preface” In Margaret J. Kartomi & Stephen Blum, Music-Cultures in Contact. Convergences and Collisions. Basel: Gordon and Breach Science Publishers S.A.
Kingsbury, Henry (1988). Music, Talent and Performance-A Conservatory Cultural System. Phyladelphia: Temple University Press.
Koskoff, Ellen (2001). “What do we want to tech when we teach music? One apology, two short trips, three ethical dilemmas and eighty-two questions” In Nicholas Cook & Mark Everist Rethinking Music.. Oxford: Oxford University Press, pp. 545- 559.
Latour, Bruno (1999). Pandora’s hope: Essays on the reality of science studies. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.
Mansfield, Janet (2002). “Differencing music education”. British Journal of Music Education. 19:2, 189-202.
Martí, Josep (2000). Más allá del arte. Balmes: Deriva Editorial
Menger, Pierre-Michel (1983). Le paradoxe du musicien - Le compositeur, le mélomane et l´Etat  dans la société contemporaine. Paris: Flammarion-Harmoniques.
Menger, Pierre-Michel (1996). “La Formation du Compositeur: L'Apprentissage de la Singularité et les Pouvoirs de L'Établissement” In Anne Bongrain & Yves Gérard, dir. Le Conservatoires de Paris, 1695-1995 - Des Menus-Plaisirs à la Cité de la Musique. Paris: Buchet/Chastel, pp. 321-343.
Morgan, Robert P. () “Rethinking Musical Culture: Canonic Reformulations in a Post-tonal Age, in Bergeron & Bohlman (eds.), Disciplining Music
Morgan, Robert P. (1991). Twentieth-Century Music. New York: W.W. Nortom & Company.
Nettl et alli (2001). Excursions in World Music. New Jersey: Prentice Hall. pp. Ix-xiii.
Nettl, Bruno (1992). “Ethnomusicology and the teaching of world music”. International Journal of Music Education, 20, 3-7.
Nettl, Bruno (1995). Heartland Excursions. Ethnomusicological Reflections on Schools of Music. Chicago: University of Illinois Press.
Nóvoa, António (2002). Formação de professores e trabalho pedagógico. Lisboa: Educa
Ó Súilleabháin, Mícheál (2002). “ Many Rivers: Towards a global listening”. Focus Areas Report. SAMSPEL-ISME 2002, pp. 15-21.
Ribeiro, António Pinto (2000). Ser feliz é imoral? Ensaios sobre cultura, cidade e distribuição. Lisboa: Cotovia.
Ribeiro, António Sousa (2002). “As Humanidades como utopia”. Revista Crítica de Ciências Sociais. Outubro de 2002. pp. 199-207.
Ritzer, George (1996). The MacDonaldization of Society. Thousand Oaks:Pine Forge Press
Santos, Boaventura de Sousa (1994). Pela Mão de Alice, O social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento. 2ª ed.
Santos, Boaventura de Sousa (1994). Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2000). A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Edições Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2002). “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”. Revista Crítica de Ciências Sociais. Outubro de 2002. 63, 237-280.
Santos, M. Lourdes Lima dos, coord. (1998). As Políticas Culturais em Portugal: Relatório Nacional. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais.
Schaeffer, Pierre (1993). Tratado dos Objectos Musicais. Ensaio Transdisciplinar. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia.
Schafer, R. Murray (1997). A afinação do Mundo. São Paulo: Editora Unesp.
Scott, Derek B. ed. (2000). Music, Culture and Society- a reader. Oxford: Oxford University Press.
Small, Cristhopher, (1980). Music-Society-Education. London: John Calder. 2nd ed.
Swanwick, Keith (2001). Teaching Music Musically. London: Routledge
Vargas, António Pinho (2002). Sobre Música. Porto: Edições Afrontamento
Vasconcelos A. A (2001). “Paradigmas do ensino da música em Portugal: diferentes olhares e sentidos”. Comunicação apresentada no II Encontro de História do Ensino da Música em Portugal, Braga. Documento policopiado.
Vasconcelos A. A (2002). O Conservatório de música. Professores, organização e políticas. Lisboa: Instituto de Inovação educacional
Weber, William (2001). “The history of musical canon” in Nicholas Cook & Mark Everist Rethinking Music. Oxford: Oxford University Press, pp. 336-355.


[1] Comunicação apresentada na XXVI World Conference for Music Education, organizada pela International Society of Music Education, Tenerife, Julho de 2004.