terça-feira, 11 de novembro de 2014

A aprendizagem da música ao longo da vida: contra o desperdício da experiência

A aprendizagem ao longo da vida, pelo menos no quadro europeu, resulta da confluência de dois fatores principais. Por um lado do incremento da esperança média de vida e no crescimento da vontade pessoal de melhorar e desenvolver determinado tipo de aprendizagens e, por outro, na reconfiguração do trabalho e das suas exigências, qualquer que seja o campo de atuação, o que implica ou uma atualização ou uma mudança de trajetória profissional. É nesta confluência que, num texto de 2003, a Comissão Europeia define a aprendizagem ao longo da vida como toda a atividade de aprendizagem que se realiza num percurso individual com o objetivo de melhorar os conhecimentos, habilidades e competências numa perspetiva pessoal, cívica e/ou numa perspetiva relacionada com o emprego.

No âmbito das artes, e em particular no que se refere à música, apesar de toda a investigação e reflexão que se tem produzido em termos internacionais, ver por exemplo, e só para citar alguns, o International Journal of Music Education, o International Journal of Community Music ou o British Journal of Music Education, em Portugal, a investigação e a produção do conhecimento sobre esta temática é ainda muito embrionária.

Contudo, a aprendizagem da música ao longo da vida afigura-se relevante tendo em conta a interseção e a confluência de três grandes dimensões: a dimensão pessoal, a dimensão institucional e formativa e a dimensão política.

No primeiro caso, e apesar de todas as crises, assiste-se a uma procura cada vez mais crescente de atividades de formação que não as situadas num contexto formalizado e de escolaridade obrigatória, de que as designadas universidades seniores são exemplo. Por outro lado, esta aprendizagem não se situa apenas no quadro da formação de adultos mas também de crianças, jovens e profissionais que, por motivos vários, procuram desenvolver os seus conhecimentos e as suas competências artístico-musicais.

No segundo, e de um modo geral, as instituições de formação artísticas, atendendo a diferentes tipos de problemáticas existentes, têm dado pouca atenção a esta temática e mesmo quando a inscreve no seu trabalho formativo-artístico, os modelos existentes dificilmente são compatíveis com públicos jovens e/ou adultos que procuram outro tipo de formações e de metodologias.

Por último, a dimensão política, remete para a necessidade de reconfiguração das políticas públicas e das políticas institucionais, quer no âmbito do ensino superior e não superior, que favoreçam e potenciem aprendizagens menos escolarizadas. No primeiro caso, a construção de políticas para este setor tem sido ou inexistentes ou um completo desastre. No segundo, apesar das várias possibilidades existentes no quadro de algumas instituições artísticas, por exemplo, os coros e/ou as bandas filarmónicas, a sua inscrição nas políticas das escolas ainda é muito marginal e, ao existir, enquadra-se num tipo de matriz curricular existentes e, por esta via desadequada a outros públicos com outro tipo de interesses.

Com efeito, a Escola e o saber escolar adquiriram nas sociedades contemporâneas uma grande hegemonia em relação a outras modalidades educativas e modos de aprendizagem artístico-musicais. No entanto, os processos não formais e informais, na escola e em particular fora dela, constituem-se, como aspetos fundamentais não só no que se refere à iniciação artística e ao desenvolvimento das carreiras musicais, como, em particular, às vivências e às procuras de formação por parte de públicos adultos.

Neste sentido, e contra o desperdício dos saberes e das experiências, a aprendizagem da música ao longo da vida engloba um conjunto diversificado de práticas numa rede diferenciada de contextos e de procedimentos, numa combinação multifacetada de processos que advêm da experiência de vida e que envolvem o indivíduo como um todo, integrando-se na sua biografia em concreto, num conjunto alargado de comunidades de práticas, de que fala Etienne Wenger.

Wenger, no quadro da aprendizagem como participação social em que os participantes constroem a sua identidade na relação que estabelecem com as comunidades de prática, distingue quatro componentes fundamentais que se interligam: “sentidos”
(aprendizagem como experiência), "prática" (aprender fazendo), "comunidade" (aprender como pertencendo) e "identidade" (aprender como tornar-se). Wenger assinala que a aprendizagem transforma quem somos e o que fazemos e fala, neste contexto, sobre a “prática transformadora de uma comunidade de aprendizagem” como aquela que oferece um contexto ideal para o desenvolvimento de novos entendimentos sobre nós, o mundo e os saberes.

Assim, e contra o desperdício da experiência, para utilizar o título de um trabalho de Boaventura Sousa Santos, adequabilidade e criatividade são dois dos conceitos que emergem ao pensar-se a aprendizagem da música ao longo da vida, atendendo a que estamos em presença de motivações e interesses heterogéneos. Adequabilidade de modo a apreender a diversidade de experiências de aprendizagens em vez de se focalizar nos saberes que são reconhecidos e valorizados pelo “saber escolar”, num contexto em que as aprendizagens são co-construídas e centradas na articulação entre as pessoas em concreto e os saberes em presença e a desenvolver, interligando o conhecimento interpares, o formal, o informal e o não formal. Criatividade, melhor criatividades – de que fala, por exemplo, Pamela Burnard, em que o envolvimento e a participação nas atividades musicais criativas, desde a iniciação até níveis mais avançados da aprendizagem, podem ser um contributo importante na construção dos sentidos e no desenvolvimento de competências e saberes técnicos e artísticos.

Por último, pensar-se a aprendizagem da música ao longo da vida, pode ser um instrumento político e artístico relevante não só na reconfiguração das práticas formativas hegemónicas, obrigando a questionar e a repensar o saber escolar e os modos de fazer artístico escolarizado, como também contribuir para o desenvolvimento individual e coletivo em que a partilha de experiências, de saberes e de conhecimentos andam a par com as inquietações e as ignorâncias.

in apemnwsletter, outubro 2014

Recomeços: velhos problemas e novos desafios

O início de um novo ano escolar remete para um conjunto de questionamentos, expetativas e desafios. Para as escolas, professores, crianças e famílias. Questionamentos, expetativas e desafios que, num contexto que deveria ser normal e natural, se prendem com questões de natureza científica, artística e relacional, atendendo não só à presença de novos estudantes como também às mudanças nas crianças e nos jovens. E estes recomeços constituem, deveriam constituir-se, como uma força renovada na difícil tarefa de educar, de ensinar e aprender, de contribuir para um maior conhecimento de si, do outro e dos mundos sociais, científicos, culturais e artísticos, e dos saberes que lhe são inerentes.

Contudo, ano após ano, o que se tem verificado é que um contexto que deveria ser normal e natural, com as inquietações inerentes, tem-se transformado num campo de incertezas e problemas de natureza diversa em que predomina não só a incompetência de natureza política como, sobretudo, um profundo desrespeito pelas escolas, pelos professores, crianças e famílias. E não existe pedido de desculpas que sirva de “consolo” perante a enormidade do que está em causa: a importância da escola, dos professores e dos saberes na construção de uma cidadania mais culta e preparada para o presente e para os futuros, também eles incertos.

Por outro lado, a política dos mega-agrupamentos e do aumento do número de crianças e de jovens por turma, para além de uma política deliberada de “funcionalização e utilitarismo da formação” têm retirado do currículo das escolas públicas, do designado ensino regular, a área das artes e tem-se abandonado a ideia original das atividades de enriquecimento curricular. E esta conjugação de fatores tem-se consubstanciado no incremento do desemprego de profissionais que, com elevadas qualificações e competências artísticas e pedagógicas, se veem em situações de grande instabilidade socioprofissional e, na melhor das hipóteses, relegados a horários incompreensíveis.

Basta atender, por um lado, os números assustadores apresentados no relatório "Estado da Educação 2013" do Conselho Nacional de Educação onde se refere que desde 2001, foram eliminados 7.024 estabelecimentos de ensino público e, por outro, a notícia de que “Portugal é o país que desinvestiu mais em Educação na última década” (Visão, 11 de Setembro de 2014).

E isto não tem apenas a ver com a regressão em termos demográficos. São claramente opções de natureza de política educativa e de política financeira.

Perante este quadro de grande violência simbólica, profissional, pessoal e organizacional uma pergunta impõe-se: o que fazer e como fazer?

Das múltiplas possibilidades de resposta, e de uma forma muito sintética, existem duas dimensões que me parecem relevantes e a que é necessário atender. Uma no plano mais macro e outra num plano mais micro.

Trabalho associativo, auto-organização e envolvimento. Apesar de todos os esforços de escolas, professores, famílias e de algumas associações, nomeadamente da APEM, os diferentes governos têm desenvolvido políticas que, de um modo geral, são contrárias às dimensões artísticas nas aprendizagens, apesar de todos os pareceres e conferências nacionais e internacionais. Apesar de todos os estudos. Perante a incapacidade política e de políticas a nível central urge encontrar outro tipo de caminhos e de soluções que permitam criar e recriar movimentos suficientemente fortes que articulem a dimensão escola-família-comunidade, de modo a que a nossa voz possa ser tida em conta. À fragmentação existente no campo do ensino de música e, em particular, no quadro da educação musical, contrapõe-se a necessidade de uma maior participação e envolvimento no movimento associativo de modo a que nos auto-organizemos em defesa de uma educação mais culta. Perante todas as incompetências e desvarios se não cuidarmos de nós quem cuidará?

As crianças, os jovens, os saberes e as práticas artísticas no centro dos processos de ensino aprendizagem. “A educação será cada vez menos estimulante [para as crianças, jovens e professores] se apenas se centrar em adquirir “estratégias para ter sucesso nos exames” (Daniel Sampaio Público, 2, 14 de Setembro2014, p. 30). Traduzindo esta ideia para o plano do trabalho em sala de aula no nosso campo específico, isto significa que a excessiva centralização em determinado tipo de modelos assentes em conteúdos duvidosos e afastado muitas vezes dos mundos das artes, das crianças, dos jovens e das comunidades, importa recentrar a nossa atividade formativa nas práticas artísticas, e nos saberes que lhe são inerentes. Daí a importância da curiosidade, das criatividades, das inquietações, dos saberes e do conhecimento como um dos modos de sobrevivência pessoal e profissional nestes quotidianos incertos e aziagos, contrariando estes tempos de funcionalidades e de mercadorização da formação.

E como estava inscrito algures numa parede “antes arte do que nunca”.
in apemnewsletter, setembro 2014

As escolas como laboratórios de cultura, de criatividade e de cidadania


As artes em geral e a música em particular são áreas de saber e do conhecimento que aliam competências diversificadas de natureza multifacetada. No plano das técnicas, das estéticas, mas também históricas e culturais e intelectuais. Para além disto, como refere Josep Marti a música, tal como outras modalidades artísticas no âmbito das artes performativas, é muito mais do que uma forma de arte. É uma forma de construção identitária, individual e coletiva. Esta dimensão individual e social é também salientada por José António Abreu (fundador do “El Sistema” na Venezuela) que defende que aprender a tocar e tocar numa orquestra é algo mais do que apenas estudos artísticos. São exemplos de escolas de vida social. Cantar e tocar em conjunto significa coexistir intimamente.

O que a história da educação artística e musical tem demonstrado no quadro do sistema de ensino em Portugal é que, apesar de toda a retórica existente, tem sido difícil “acomodar” as áreas artísticas no currículo das escolas do designado “ensino regular”, e mesmo no âmbito do ensino especializado. Esta dificuldade tem conduzido a que, durante um determinado período histórico, com reflexos ainda na contemporaneidade, se procurou afirmar a pertinência da inclusão desta área na escolaridade através de uma dupla argumentação. Por m lado, argumentos situados na “importância da música na formação integral das crianças”, e, por outro, na procura de que as disciplinas artísticas e musicais fossem iguais às outras disciplinas. É interessante ler alguns textos da década de 70 e 80 que afirmam que finalmente a disciplina de música, por fazer exames, era uma disciplina iguais às outras. E isto conduziu a diferentes tipos de problemas que ainda hoje existem no interior da relação Artes-Música-Educação-Currículo-Escolas.

Ora o que tem estado aqui em causa pode ser interpretado de uma dupla forma. Por um lado, a não assunção, por parte dos profissionais do sector – músicos, docentes, escolas de formação de professores, apesar de alguns desenvolvimentos muito interessantes de norte a sul do país e incluindo as ilhas - das particularidades desta área de saber e do conhecimento, e por outro, as dificuldades da administração, nos seus vários planos, de assumirem, como escrevi noutro local, “lógicas diferenciadoras como forma de construção de igualdades”.

Por outro lado, e sob o ponto de vista concetual assiste-se à dificuldade na assunção desta área formativa como “disciplina indisciplinada”, para utilizar as palavras de Denyse Beaulieu, em que nem tudo pode ser medido e avaliado, como refere António Nóvoa e Collin Durant, por exemplo.

Com efeito, “os mundos da educação artística e musical”, parafraseando Howard Becker, são constituídos por redes diferenciadas de interseções que cruzam a formação, a criação, a receção, a produção e a difusão artístico-musical, ligando diferentes contextos, das instituições formativas, aos espaços domésticos e às comunidades como falam Alexandra Lammont e Nita Termmerman. Convivem entre contrários, numa “estrutura rizomática” entre o estrutural e o anti-estrutural; o ortodoxo e o subversivo; o nacional e o local; o institucional e o anti-institucional; os interesses, valores e objetivos conflituais, de que fala Brent Wilson.
Apesar das tensões ainda existentes, veja-se a recentração no “ler, escrever e contar”, felizmente diferentes tipos de projetos existentes no terreno tem vindo a alterar algumas das perceções dominantes, e, quer no interior dos agrupamentos de escolas, quer na relação entre as escolas do ensino regular e do ensino especializado, as artes e a música afiguram-se como uma dimensão fundamental do trabalho formativo.

Projetos que vêm demonstrando que o que torna a educação e a formação das crianças, dos jovens e dos adultos mais rica e plural é a existência de escolas pensadas e organizadas como “laboratórios de cultura e de cidadania”, como refere Anthony Everitt. Laboratórios de cultura e de cidadania que contribuam decisivamente para a preparação de cidadãos aptos para viverem em tempos complexos e incertos, com competências diversificadas, capazes de produzirem ideias criativas e inovadoras, aptos para enfrentarem e responderem a novos e diferentes tipos de desafios e de riscos.

São tempos difíceis estes em que vivemos e em que também as artes e a cultura na escola parecem estar, mais uma vez, colocadas à margem e numa situação problemática de empobrecimento quer para os professores quer para o desenvolvimento de uma formação que se quer rica e plurifacetada. O recentramento das escolas como “laboratórios de cultura, criatividade e de cidadania” poderá constituir-se como um desafio que possibilite a abertura de janelas de esperança e de (re)encantamento para todos e todas que no dia a dia se confrontam com os paradoxos e os cinzentismos dos dias.

in apemnewsletter, junho/julho 2014

Debater o ensino de música em Portugal: uma questão de democracia


Os referentes que hoje temos em relação à educação e formação artística e musical nos vários planos, modalidades e tipologias em que se desenvolve, são histórica e culturalmente construídas, muitas vezes pouco sustentadas e questionadas “porque aparentemente são muito evidentes”, como diz António Nóvoa, assentes numa determinada representação do que são as artes, as músicas, a cultura, a educação e o exercício de determinada profissão.

Estas representações nem sempre têm sido ou estudadas e debatidas de modo a que, não só se conheçam, mas sobretudo que se perspectivem as diferenças, as complementaridades e se desenvolvam as interdependências colaborativas com geografias de geometria variável que deem corpo às polifonias existentes e contribuam para atenuar as fragmentações existentes. Por outro lado, o debate tem-se centrado num mesmo tipo de questões em que simultaneamente existe excesso do passado e excesso de futuro. Pela importância do que se fez e do que se pode fazer.

O debate que se estabeleceu ao longo do ciclo de cinco conferências, organizado pela APEM, em torno de “A Democracia e o Ensino de Música||O Ensino de Música e a Democracia” vieram colocar questões pertinentes neste reolhar para este tipo de educação e formação artística no século XXI. Reolhar que se pode sintetizar em torno de quatro temáticas principais.
O papel do Estado, da sociedade civil e das organizações sem fins lucrativos.

A multiplicidade dos atores sociais, económicos, educativos e culturais envolvidos no neste tipo de formação, que direta ou indiretamente influenciam e interferem no processo político, na decisão, execução e controlo da ação pública, tendem a alterar as relações verticais baseadas apenas na regulação e subordinação, no sentido de um relacionamento mais horizontal em que se privilegia o diálogo, a participação e a diversidade de situações, referenciais e instrumentos de ação política, formativa e artístico-musical.

Esta multiplicidade coloca desafios na esfera pública, criando espaços de negociação que estão para além dos interesses em jogo, fomentando que os atores envolvidos negoceiem uma determinada visão e interpretação da realidade social, cultural e formativa, modos de intervenção apropriados para a resolução de problemas e também potenciando e favorecendo o aparecimento de visões e projetos singulares e plurais que deem corpo às dinâmicas entre as formações, a educação, a cultura, a sociedade, as profissões, a economia e o mercado, num “novo espírito da democracia” de que fala Blondiaux.

A territorialização das políticas educativo-artísticas
Nos contextos complexos e paradoxais das sociedades contemporâneas e das problemáticas existentes nos mundos da formação, das profissões, da educação, da cultura e das artes, as respostas políticas e organizacionais para este campo de intervenção, “não são, nem as melhores nem as únicas possíveis, nem mesmo as melhores relativamente a um contexto determinado. São sempre soluções contingentes no sentido radical do termo. Isto quer dizer largamente indeterminadas e portanto arbitrárias” como escrevem Crozier e Friedberg.

Isto significa que não existe uma maneira correta de organizar e de solucionar determinados problemas. Deste modo, os modelos tayloristas de "one best way", o modelo da burocracia de Weber, dificilmente se adaptam às particularidades deste tipo de educação e formação, e aos dias de hoje. As transformações operadas na relação indivíduo-coletivo-formação-trabalho-sociedade-cultura, implicam um outro olhar sobre o ensino e a formação assente nos territórios, “admitindo a diversidade de soluções, a pluralidade de iniciativas e a variedade das formas, de acordo com as características específicas de cada situação", de cada contexto, como escreve João Barroso. Diversidade e pluralidade assente em localismos cosmopolitas que se alicerçam no reconhecimento das diferenças das práticas artísticas, estéticas e sociais que lhe estão associadas, não as ordenando de um modo hierárquico nem as dissolvendo.

As escolas como centros de cultura e de conhecimento
Contrariando as lógicas dominantes, as escolas de formação artística e musical têm-se constituído como centros de cultura e de conhecimento, como polos de desenvolvimento artístico-musical dando corpo a uma das propostas que João de Freitas Branco apresentou em 1976 ao Ministério da Educação e Cultura e que nem sequer foi discutida.

E esta assunção apresenta pelo menos um desafio importante: implementar uma perspetiva de organizar o trabalho educativo-artístico de um modo mais denso e complexo, o que implica uma maior cooperação entre as instituições de formação e as instituições culturais, entre os professores e os artistas, entre modos mais formalizados e menos racionalizados de formação, bem como uma maior responsabilidade coletiva no desenvolvimento da educação artístico-musical em que interagem a complementaridade e a diferenciação de pressupostos, projetos e intervenções formativas, culturais e artísticas para a construção de pontes entre as atividades musicais, os recursos, os saberes e as comunidades, pontes entre diferentes culturas musicais, pontes entre diferentes modalidades de aprendizagem entre as quais a formação ao longo da vida.

As práticas artísticas, interpretativas, criativas e investigativas no centro das formações
Uma das funções da educação artística e artístico-musical é a de ativar os recursos do imaginário e da criatividade e em particular estimular modos de resistência em relação ao fechamento e à reprodução acrítica de modelos e de modos organizacionais e pedagógico-artísticos, de forma a desenvolver a apetência pelo risco do desconhecido. Este trabalho inscreve-se numa situação paradoxal que resulta do facto de serem muitas vezes os obstáculos, os limites, os constrangimentos que permitem o desenvolvimento do trabalho do imaginário. As artes em geral e a música em particular, ao propor novos olhares sobre as realidades existentes, novas abordagens à vida coletiva ou à vida pessoal, são recursos essenciais para a ativação e para a formação dos imaginários, para a invenção de linguagens, expressões e atitudes vivenciais, para novas formas de compreender e criar mundos.

in apemnewsletter, maio 2014

terça-feira, 29 de abril de 2014

O ensino de música e a democracia: por uma cidadania culta e cosmopolita

A reflexão em torno dos papéis do ensino de música na construção e aprofundamento da democracia e de uma cidadania mais culta e cosmopolita é, no nosso país, ainda diminuta. Daí a importância de, deste ponto de vista, potenciar o trabalho notável que tem sido desenvolvido pelas escolas, pelos professores, pelas crianças, jovens e adultos, pelas comunidades. Partindo das transformações existentes e do que mais pertinente tem sido realizado no âmbito deste tipo de formação (nas suas várias valências, formais e não formais) a relevância da interligação do ensino de música e a democracia pode ser sintetizada em torno de duas ideias essenciais.

Da imaginação e do saber e fazer imaginado: trabalhar no que não se conhece
O trabalho formativo artístico-pedagógico inscreve-se numa perspetiva poliédrica, assente em avanços, recuos e mudanças de direção, e que, sinteticamente, envolve quatro dimensões principais. A primeira “o potenciar o imaginário”, reveste-se de múltiplas formas e modelagens musicais e extramusicais. O “potencial de ativação do imaginário é o motor do início de algo, o momento de aparente imobilidade onde, interiormente, precisamente no imaginário individual, se constroem ideias: umas combatendo outras” (Tavares, 2013:384). Neste “potenciar o imaginário” a “exploração e experimentação” apresenta-se como um fator que, de modos diferenciados e consoante a tipologia do trabalho em causa, se vão procurando e adequando as ideias, processos, objetos, técnicas. A segunda é a fase do, “passar do imaginado ao fazer o imaginado, é dar o passo essencial: é criar novas coisas” pôr novas ideias ou ideias reconfiguradas no mundo, multiplicando “as possibilidades de verdade, as analogias, as explicações, as ligações, em que a existência de uma teoria ou modelo se apresenta como um sistema de ligações “uma maneira racional de aproximar uma coisa ou uma ideia das outras” (Idem: 385). Uma terceira fase, em que o “passar do imaginado ao fazer o imaginado” se confronta com os outros numa relação complexa entre diferentes imaginários, modos e condições de perceção. Por último uma fase em que, o estudante-músico pode revisitar o trabalho realizado introduzindo alterações que podem ser substantivas, consoante o grau de satisfação e /ou insatisfação perante o resultado obtido.

A formação e as práticas artísticas como territórios de fronteira
Como se pode depreender do que apresentei anteriormente estamos perante um quadro multifacetado, multipolar e multisituado, com um conjunto alargado de ambiguidade, incertezas e riscos inscritas em polifonias multiformes. Polifonias que compreendem problemáticas técnicas e estéticas (associadas a diferentes estilos e tipologias artísticas e saberes diferenciados), geográficas (englobando várias partes do mundo), histórico-sociais, (englobando diferentes épocas, etnias, contextos) e educativo-artísticas (envolvendo modos de pensar e de fazer diferenciados). Cada uma destas polifonias tem os seus valores, hierarquias, códigos, convenções, usos, funções, modos de ver e de fazer.

Os diferentes tipos de cruzamentos subjacentes afiguram-se relevantes na construção de uma individualidade pessoal e artística. “Cruzamentos [que] são os pontos onde a realidade se começa a afastar da ciência da previsibilidade” que “baralham, recolocam tudo outra vez no início, abrem possibilidades” (Tavares, 2013:523), num “estar entre” diferentes tipos de possibilidades e saberes e “num estar na margem” de diferentes mundos em que, num quadro de uma “imaginação dialógica” (Beck, 2002) e na assunção de uma razão cosmopolita, “práticas diferentemente ignorantes se transformam em práticas diferentemente sábias” (Santos,2002:250).

Deste modo, o viver num território de fronteira pode ser caracterizado (a) pelo uso seletivo e instrumental das tradições - a novidade das situações subvertem os planos e previsões escolhendo-se do passado aquilo que se deseja reter, esquecer ou modificar; (b) pela invenção de novas formas de sociabilidade e de criatividade - em que se vive a sensação de estar a participar na criação de um novo mundo; (c) pelas hierarquias fracas - a construção de identidades de fronteira é lenta, precária e difícil, dada a sua separação das diversas ordens centrais; (d) pela pluralidade de poderes e de ordens jurídicas - uma vez que afastados de uma ordem central coexistem múltiplas fontes de autoridade; (e) pela fluidez nas relações sociais, artísticas e culturais - atendendo a que a fronteira, enquanto espaço, não está claramente delimitada e neste sentido a “inovação e instabilidade são, nela, as duas faces das relações sociais” artísticas e culturais e (f) pela promiscuidade de estranhos e íntimos, de herança e de invenção - dado que viver na fronteira implica uma disponibilidade total para esperar o inesperado o que significa prestar atenção a todos e aos seus modos de pensar e de fazer reconhecendo na diferença as oportunidades para o enriquecimento mútuo (Santos,2000: 322-324).

Ora, de modo a conseguir lidar-se com os desafios, os riscos, as ambiguidades, as diversidades e as incertezas, num trabalho indefinido de liberdade, o desafio da educação artístico-musical é viver num mundo incompleto, descontínuo e múltiplo, num processo dinâmico de procura quotidiana e contingente de sentidos, no encontro, sempre conflitual, entre a permanência e mudança que contribuam para o enriquecimento dos mundos singulares e coletivos, reais e imaginários.

Estes são alguns dos possíveis contributos do ensino de música na construção e aprofundamento da democracia e de uma cidadania mais culta e cosmopolita.

Referências
Beck, U. (2002), ‘The Cosmopolitan Society and its Enemies’, Theory, Culture & Society 19(1–2): 17–44.
Santos, B. S. (2000), A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, Porto: Edições Afrontamento.
Santos, B. S. (2002), ‘Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências’, Revista Crítica de Ciências Sociais, 63: 237-80.
Tavares, G. M. (2013). Atlas do Corpo e da Imaginação. Teoria. Fragmentos e Imagens. Lisboa: Editorial Caminho.

in



domingo, 6 de abril de 2014

A democracia e o ensino de música: tensões e circularidades à procura de equilíbrios

As relações da democracia com o ensino de música apresentam contornos diversificados em que confluem diferentes tipos de perspetivas, ausências e modos de ver e de fazer política e de políticas. Ao longo dos últimos 40 anos, as relações que o Estado, a administração e os diferentes governos têm estabelecido com este tipo de educação e de formação, podem, de um modo telegráfico, ser sintetizados num conjunto de quatro grandes tensões e circularidades.

(1) Centro e periferia ou a necessidade de gerir a unidade e a diversidade
Um dos grandes problemas que tem afetado e caracterizado o Sistema Educativo Português tem-se situado na dificuldade, senão mesmo incapacidade, da assunção de uma lógica diferenciadora como forma de construção de igualdades. Isto é, a criação e o desenvolvimento de mecanismos, no plano político geral e no plano interno das escolas, que potenciem as diferenças através da territorialização das medidas e dos procedimentos. Apesar dos diferentes tipos de desenvolvimentos nesta área, o esquema de funcionamento, predominantemente burocrático e centralizado ainda é dominante no pensamento e ação política e na cultura administrativa central e regional.
Tudo isto significa que existem dificuldades de implementação de políticas educativo-culturais diferenciadas e articuladas, capazes de integrar quer as diferentes transformações operadas no domínio científico (musicológico, etnomusicológico, artístico e pedagógico) e no domínio tecnológico (estúdios de música eletrónica, composição assistida por computador, por exemplo), quer a nível da incorporação das diferentes motivações dos públicos.

(2) Mudança e permanência ou a necessidade de gerir a contradição e a especificidade
Uma imagem recorrente quando se fala do Ensino de Música é a necessidade e a urgência da mudança: de modelos, de práticas profissionais e organizacionais. Esta vontade generalizada de transformação contém vários pressupostos ideológicos e artísticos e, de uma maneira geral, as diversas tentativas realizadas a partir da década de 70 têm sido confrontadas com resistências e antagonismos no que se refere aos princípios orientadores e à sua implementação.
A tendência uniformizadora predominante dificilmente tem conseguido lidar com as marcas de heterogeneidade e de diversidade existentes, procurando-se, através de despachos e circulares, atender, ainda que em aspetos de menores dimensões, às especificidades deste ensino. Contudo, como os mecanismos de regulação administrativo-legal se centram num outro tipo de referente, “ensinar a muitos como se fossem um só”, para utilizar as palavras de João Barroso, as contradições têm-se mantido e de algum modo agravado.
Ora, uma das dimensões do que está em causa é "o processo de construção dessas mudanças", como escreve Rui Canário. Isto é, as diferentes tentativas de reforma foram impostas verticalmente, de uma forma centralizada e normativa, apesar de, aparentemente, se solicitar a participação a partir de pedidos de parecer a propostas elaboradas pelo centro, nomeadamente por um grupo de indivíduos considerados peritos na matéria.

(3) Da burocracia ao funcionamento em rede ou a passagem da gestão da rotina para a gestão de parcerias e interdependências
A predominância de um modelo centralizado e burocrático e a ausência de uma estratégia sustentada numa rede de pessoas, de instituições e de projetos capazes de conceber a ação formativa no plano alargado de uma “bacia de formação” alicerçada na confluência entre diferentes interesses e atividades no âmbito local, regional, nacional e transnacional, tem dificultado a passagem de um paradigma assente na gestão das rotinas, para um outro assente na gestão de parcerias. Este facto tem conduzido a um estado de espírito generalizado em que as escolas e os professores se sentem completamente abandonados pelo poder político que, em tempo útil, não soube criar os mecanismos de transformação e de regulação que possibilitassem a assunção deste tipo de ensino “como laboratório de cultura e de criatividade” e de escolas “como centros de cultura” numa lógica de localização cosmopolita.

(4) Cultura de massas e cultura erudita ou a necessidade da construção de projetos em contraciclo
O "mundo da música" é uma rede de interações entre múltiplos atores com estatutos, funções diferentes, que contribuem, no seu todo, para que a obra se materialize num determinado produto, partitura, CD, vídeo, espetáculos ao vivo, entre outros. Estes diferentes tipos de realizações têm subjacente, no quadro das artes performativas, os públicos, agentes consumidores das criações e das produções musicais onde confluem múltiplas estratégias, muitas vezes alicerçadas em fortes campanhas de marketing, que influenciam decisivamente o “jogo da oferta e da procura” bem como a tendência para a globalização e uniformização do consumo. Isto conduz a um confronto entre uma “cultura de massas” predominante e uma tipologia musical ‘erudita’ claramente minoritária, a que não se tem sabido, ou mesmo querido, encontrar equilíbrios necessários, regulando as lógicas de mercado dominantes.

Este conjunto de tensões e circularidades, entre as muitas que se podem identificar, representam o muito que, no plano das políticas púbicas centrais, ainda há a construir, de modo a que a democracia se constitua como um referente fundamental na tomada de decisões pertinentes para o desenvolvimento de uma componente fundamental, não só do viver em sociedade mas também da construção de comunidades mais sábias: a música e o seu ensino nas suas múltiplas formas e valências bem como as redes de interdependências que se estabelecem com outros saberes e áreas do conhecimento.

in carta aos sócios apemnewsletter, março 2014

segunda-feira, 17 de março de 2014

A Democracia e o Ensino de Música || O Ensino de Música e a Democracia

As relações entre o ensino de música e a democracia revestem-se de configurações complexas e paradoxais onde, a par da afirmação pela parte dos responsáveis políticos da sua pertinência na formação das crianças, jovens e adultos e no desenvolvimento de uma sociedade mais culta, constata-se a dificuldade no desenhar de medidas políticas consistentes que corporizem a riqueza e as pluralidades existentes nos “mundos da música e da educação artístico-musical”.

Por outro lado, quer os “mundos da música”, quer os “mundos da educação artístico-musical”, e apesar dos progressos conseguidos para além das políticas centrais, nem sempre têm conseguido articular os diferentes quadros de referências e a riqueza existentes e constituir-se como força alternativa aos diferentes tipos de funcionalizações da formação, à mercadorização da arte e da educação, e à sociedade do espetáculo, de que fala Guy Debord.

Neste contexto, e atendendo a que estamos no ano em que se comemoram os 40 anos do 25 de Abril, importa questionar: de que modos se têm estabelecido as relações entre a democracia e o ensino e música e como é que o ensino de música tem contribuído para a construção da democracia? Para responder a esta pergunta, e de uma maneira muito telegráfica, problematizo esta relação a partir das quatro temáticas seguintes, que, naturalmente, não esgotam as possibilidades do olhar e irão ser desenvolvidas noutras cartas.

Cidadania e cultura - acesso à educação artístico-musical. O acesso à educação artístico-musical tem estado condicionado por múltiplos factores que advêm não só das políticas centrais nos planos da educação e cultura, mas também das políticas sociais e económicas, assim como de fatores de ordem territorial, organizacional e formativos. Assim, e apesar do incremento das escolas de formação artística, das bandas filarmónicas, coros e de associações recreativas e culturais com atividades diferenciadas neste domínio e que possibilitam uma intervenção alargada, no âmbito do designado ensino genérico, ao qual a priori todas as crianças, jovens e adultos, têm acesso, existe uma tendência cíclica de desvalorização dos saberes artísticos e musicais, em favor de saberes mais “úteis”. Por outro lado, e apesar de experiências no terreno muito interessantes, continuam a existir dificuldades em dar visibilidade a outras formas do trabalho formativo em que se fomente, por exemplo, a formação de amadores e de outro tipo de músicas no interior do sistema de formação artística.

Centros e periferias – uniformidades e diferenciações. O sistema educativo foi sendo construído tendo como retórica fundamental “um sistema uno e coerente” que, apesar das retóricas, tem tido dificuldade de “assumir lógicas diferenciadoras como forma de construção de igualdades”, como escrevi noutro local. E esta dificuldade manifesta-se quer no âmbito do exercício da profissão docente-músico, quer no âmbito da organização curricular e da organização escolar, dificultando muitas vezes a existência de projetos inovadores que potenciem as singularidades e o incremento de formas diferenciadas do trabalho formativo e artístico, bem como a sua relação com as diferentes comunidades. Esta dificuldade está presente também no âmbito dos orçamentos que nem sempre possibilitam que se contemplem as particularidades existentes.

Educação artístico-musical e criatividades - criação, experimentação e difusão. O campo artístico é um dos sectores que trabalha na apropriação e no desenvolvimento de diferentes dimensões da criatividade. Ou de criatividades, para utilizar a palavra de Pamela Burnard. E ao falarmos de criatividades, importa relembrar o que António Pinho Vargas escreveu ao referir-se ao ato de compor como “um processo complexo, um estar-lançado no qual surgem coisas, forças às quais se responde de alguma maneira. Este estar-aberto para o devir, inerente ao processo criativo (…), não exclui a consciência histórica dos chamados materiais (que cada compositor terá de maneira muito diversa) mas antes se desloca para fora do processo criativo”. Neste modo de ver, são de salientar alguns conceitos que me parecem pertinentes: processo, complexidade, estar-aberto para o futuro, consciência histórica, materiais, diferenciação, individualidade. Daqui, outros conceitos se podem inferir como imprevisibilidade, inquietação, desafio, risco, disciplina, ordem, desordem, experimentação, que de algum modo caracterizam o ato criativo, seja ele de natureza científica ou artística.

Racionalidades e conhecimento artístico e científico - investigação e intervenções reconfiguradas. A importância de se estudar, conhecer e compreender as diferentes realidades e as complexidades existentes nos “mundos da música” e nos “mundos da educação artístico-musical”, apresenta-se como um dos factores essenciais que sustentam, deveriam sustentar, a tomada de decisões políticas, a tomada de decisões de carácter mais técnico e artístico, a tomada de decisões no que se refere às carreiras artísticas e profissionais. Nem sempre esta dimensão esteve presente, existindo uma modalidade dominante assente numa espécie de racionalidade “técnico-científica” em desfavor doutro tipo de racionalidades presentes no campo artístico e formativo. Por outro lado, esta é uma das temáticas que no contexto do ensino de música se encontra mais fragilizada, não só por causa das políticas centrais, mas também pelo facto de só na década de 90 do século passado ter começado a existir um trabalho neste domínio. Por isso, importa, como escreve Gonçalo M. Tavares, “multiplicar as possibilidades de verdade” e perceber que “as possibilidades da imaginação são infinitamente maiores do que as possibilidades da observação das coisas e acontecimentos exteriores”.

in carta aos socios APEM Newsletter, Fevereiro 2014

quinta-feira, 6 de março de 2014

A música e a educação: por uma prática artística criativa e interdependente

O ensino da música, nas suas múltiplas componentes e modalidades, vive, desde as últimas décadas do século XX, na interação e no confronto entre diferentes modos de conceção, construção, operacionalização e administração das políticas educativas e culturais e as subjetividades artísticas dos seus agentes. Interações e confrontos enformados entre contextos de referência globais e locais. Globais pela importação e comparação com modelos oriundos de outros países, locais pela recontextualização dessas referências.Por outro lado, este tipo de formação enquadra-se numa sobreposição de várias redes que envolvem, entre outras, a educação, a cultura, as conceções de músico, o papel social da arte na educação, os públicos e os consumos. A estas redes associa-se o papel que é exercido pelas barreiras (materiais e simbólicas) entre os grupos sociais, no que se refere às modalidades de acesso às práticas educativas e culturais e aos respetivos universos de valoração e de descodificação dos códigos e das convenções existentes nas culturas musicais.

Este texto tem uma dupla finalidade. Por um lado, questionar alguns dos modelos dominantes defendendo que este tipo de formação se enquadra numa sobreposição de várias redes que envolvem, entre outras, a educação, a cultura, as conceções de músico, o papel social da arte na educação, os públicos e os consumos. Por outro lado, partindo das práticas inovadores existentes de norte a sul do país e das ilhas, torna-se pertinente encontrar alguns princípios que poderão ajudar a incrementar e a potenciar uma área de formação que, cada vez mais no contexto nacional e internacional, se afigura como uma dimensão importante não só na formação dos indivíduos, mas também, no contexto comunitário e na construção da democracia.








sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Conservatório de Música - Professores, organização e políticas

Um trabalho já com alguns anos mas que me parece ainda actual.
Se pudesse sintetizar numa frase o tema deste trabalho, diria que ele trata da profissão docente de música e do conservatório de música enquanto organização, de como a profissão e a organização se intersectam na construção de uma profissionalidade, nas configurações identitárias individuais, colectivas, organizacionais em relação às políticas da educação e da cultura.
Como escreve João Barroso no prefácio, "[Este livro é]ua obra estimulante para uma reflexão e intervenção no domínio das organizações educativas em geral, para além dos múltiplos ensinamentos que permite colher para uma compreensão abrangente da realidade do ensino da música em Portugal e das actividades profissionais dos seus formadores"

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Uma agenda para a música e educação artístico-musical: algumas ideias

Nas últimas décadas a música e a educação artístico-musical apresentaram, apesar de diferentes tipos de ausências e de problemas, desenvolvimentos significativos do ponto de vista formativo, criativo, investigativo, técnico e interventivo. Contudo, nestes tempos complexos em que vivemos, quer em termos nacionais quer internacionais, assiste-se a regressões várias o que implica reolhar para este sector das artes e da cultura e procurar encontrar caminhos que contribuam para aumentar as dinâmicas existentes e não deixar que a economia e as finanças se sobreponham a outros modos de pensar e de organizar a nossa vida coletiva.

Assim, em jeito de agenda para a música e para o seu ensino, algumas ideias para um trabalho articulado que é necessário desenvolver. Ideias que cruzam temáticas diferenciadas (da formação ao exercício da profissão, da experimentação e da difusão e criatividade, por exemplo) e que merecem reflexão, debate e uma força coletiva para a sua implementação:

•Articulação entre os diferentes tipos de escolas e de profissionais evitando a fragmentação existente numa complementaridade entre o trabalho dos criadores e intérpretes e o trabalho das escolas potenciando a criação de outros imaginários através das práticas artísticas não normativas que rompam com as regras instituídas nas instituições, no ensino e nos programas existentes.

•Alargamento do acesso das crianças, jovens e adultos à prática de um instrumento musical à prática vocal, em todas as escolas, à criação de obras musicais de diferentes estilos, épocas e tipologias, dando especial destaque aos autores e à cultura musical portuguesa.

•Incremento da investigação, da experimentação artística e do conhecimento colmatando as ausências existentes e criando condições não só para uma melhor compreensão das múltiplas realidades existentes bem como para o aparecimento de ideias e obras que nos interpelem enquanto indivíduos e enquanto coletivo.

•Aprofundamento das práticas artísticas e musicais amadoras, composicionais e interpretativas com especial incidência na formação de adultos num quadro de um trabalho descentrado das formulações escolarizadas dominantes

•Reorganização da formação de professores de música, qualquer que seja o tipo e nível de ensino, passando de um perspetiva formativa predominantemente funcionalista para uma que interligue os domínios técnico, artístico e cultural aos domínios da educação e da formação potenciando uma intervenção formativa e artística em contextos complexos e diversificados.

•Reconfiguração legal das profissões artísticas e musicais (onde incluo os professores) atendendo a que estas se exercem em contextos multipolares de multiactividades e de intermitências várias.

•Interligação das estruturas de formação, produção e difusão de modo a que se potenciem as redes existentes e se criem novas configurações, nacionais e internacionais, fomentando a participação das escolas, dos estudantes e dos músicos, nas suas várias vertentes, fora dos constrangimentos da “sociedade do espetáculo” e da “mercadorização” do trabalho artístico assente na visibilidade e na quantificação dos públicos.

•Incremento da participação no trabalho associativo atendendo não só à reconfiguração do papel do Estado mas também, e sobretudo, ao contributo que este tipo de instituições, públicas, privadas e do terceiro sector têm dado, e continuarão a dar, no desenvolvimento profissional, social, cultural, económico e comunitário.

Algumas destas ideias, não são novas. Existem desde, pelo menos, a década de 70 do século passado. Contudo, ou ainda estão por cumprir ou necessitam de reconfigurações. Reconfigurações estas que ultrapassem as antigas dicotomias entre tipos de ensino e tipos de música e que se alicercem numa base de complementaridade articulada, potenciando as subjetividades, desburocratizando o pensamento e a ação e acentuando o carácter ambíguo, multisituado e multiforme das práticas artísticas e formativas contemporâneas que aliam, de modos diversos, a tradição e a inovação. O que já se sabe e conhece e o que ainda está por conhecer.

Este conjunto de ideias, e a sua operacionalização, poderá dar um contributo no incremento das práticas artísticas na sociedade portuguesa, possibilitando não só a inscrição da música e dos seus profissionais no quadro da contemporaneidade e das políticas, como também a construção de uma comunidade mais culta.

Hoje temos mais informação, mais saber, mais conhecimento. E este facto responsabiliza-nos mais. Obriga-nos a pensar e a fazer melhor. De um modo mais consistente e articulado. Completando ausências e tornando mais sábias as nossas ignorâncias.
in apemnewsletter, janeiro 2004, pp. 2-3