quarta-feira, 12 de abril de 2017

O ensino especializado de música e o desenvolvimento local: cinco notas


Nota I - Descentralizar a discussão sobre o ensino especializado abrindo-o a novas temáticas

Uma das características da história do ensino da música em Portugal, e em particular no que se refere ao ensino especializado de música, está relacionada com a predominância de determinadas temáticas que se têm mantido constantes ao longo dos últimos 40 anos como por exemplo identidade deste tipo de ensino, professores, currículo, aprendizagens, carreira docente, carreira de músico a que se juntou mais recentemente, com a existência dos trabalhos de mestrado no âmbito do ensino de música, a pedagogia e as didácticas.

Sendo certo que sendo temáticas que nem sempre tiveram do poder político uma resposta adequada, ou mesmo resposta, compreende-se de certo modo a recorrência de determinadas questões. Por outro lado, também é certo que com as diferentes transformações sociais, culturais, políticas artísticas e criativas, importa olhar para estes temas com outros olhares de modo a poder ir interrogando as práticas políticas e formativas.

Contudo, existem um conjunto alargado de questões que acabam por ficar sempre fora do debate, fora da investigação e da construção de pensamento sobre o assunto. Uma dessas questões prende-se com a relação entre o ensino especializado de música, as suas escolas professores, estudantes e famílias, e l desenvolvimento local, o desenvolvimento das comunidades onde os projectos formativo-artísticos estão implementados. Existem muitas razões para que esta relação não seja muito discutida, até pelo fato de este ensino sempre se ter pensado mais com a “imaginação ao centro” de que fala o Boaventura Sousa Santos, do que propriamente prensar-se como projeto local, esquecendo-se de que como escreveu o Miguel Torga, “o local é o universal sem paredes”.

Nota II - Das escolas do ensino especializado, dos diferentes papéis e da sua relevância formativa e artístico-cultural

O ensino especializado de música vive momentos de profunda transformação sob o ponto de vista artístico e de intervenção comunitária. O incremento de diferentes tipos de agrupamentos musicais no interior das escolas, e, embora tenuemente, o também incremento de diferentes práticas artísticas, de que o Jazz é exemplo, a realização de concertos, seminários, concursos e festivais de música, têm contribuído de formas diferenciadas para o desenvolvimento cultural das regiões e dos locais onde as instituições de formação estão inseridas. Todas estas actividades vêm também contrabalançar a cultura massificada dominante na sociedade portuguesa contemporânea.

Por outro lado, a intensa actividade musical realizada pelas escolas de norte a sul do pais e nas ilhas, nem sempre visível no âmbito dos média nacionais e locais, se é um fator fundamental no desenvolvimento das aprendizagens das crianças e do jovens, também levanta algumas interrogações quando, muitas vezes, estas actividades substituem o trabalho de músicos profissionais.

Neste contexto, e atendendo aos diferentes tipos de papéis que as escolas do ensino especializado desempenham, importa olhar e discutir os modos como o trabalho formativo contribui para o alargamento dos quadros de referências nas comunidades, bem como os desafios que se colocam às escolas, professores, músicos, estudantes, famílias, comunidades, que se colocam ao Estado, Administração Central e Autarquias Locais, para que a relação entre o ensino especializado de música e o desenvolvimento local seja potenciada em prol de uma democracia mais culta.

Nota III – O localismo cosmopolita

A localização da política e da acção educativa, artística e musical, e das diferentes redes que operacionalizam a territorialização da política, coloca um outro tipo de desafio: a convivialidade entre diferentes.

Com efeito, das interdependências, singularidades e proliferação de sentidos e mundos diferenciados e, muitas vezes, distantes, apesar de próximos e conflituais, emerge a necessidade de encontrar formulações que permitam a convivialidade entre referências múltiplas, entre culturas que se interpenetram, entre diferentes “territórios de fronteira” e zonas de contacto, entre diferentes tipologias e géneros artístico-musicais. Esta convivialidade implica uma “imaginação dialógica”, de que fala Ulrich Beck, uma característica central definidora de uma perspectiva cosmopolita, entendida como “o choque de culturas e racionalidades na vida de cada pessoa, o ‘outro internalizado’”. A “imaginação dialógica” corresponde “à coexistência de modos de vida rivais na experiência individual, o que torna inevitável a comparação, a reflexão, a crítica, a compreensão e a combinação de certezas contraditórias”. Enquanto “a perspectiva nacional é uma imaginação monológica, que exclui a alteridade e o outro”, a perspectiva cosmopolita é “uma imaginação alternativa, a imaginação de modos de vida e racionalidades alternativas que incluem a alteridade do ‘outro’. Ela coloca a negociação de experiências culturais contraditórias no centro da actividade política, económica, científica e social” (p. 18).

Por outro lado, difere de todas as formas de diferenciação vertical que conduzem à fragmentação social, artística e educativa numa relação hierárquica de superioridade e subordinação. O cosmopolitismo alicerça-se no reconhecimento das diferenças das práticas artísticas, estéticas e sociais que lhe estão associadas, não as ordenando de um modo hierárquico nem as dissolvendo. Ele “aceita-as enquanto tal, na verdade investindo-as de um valor positivo. O cosmopolitismo afirma o que é excluído tanto pela diferenciação hierárquica como pela igualdade universal, nomeadamente a percepção dos outros como diferentes e simultaneamente como iguais” ( como escrevem Beck, Grande & Cronin. Para estes autores, o cosmopolitismo apela a que conceitos como integração e identidade “que possibilitam e afirmam a coexistência ultra-fronteiriça sem exigir que os traços distintivos e a diferença sejam sacrificados em prol de uma suposta igualdade (nacional): identidade e integração deixam assim de significar hegemonia sobre o outro ou sobre os outros” (p. 14).

Deste modo, afigura-se pertinente pensar e gerir as instituições de formação como “espaços públicos locais”, de que fala João Barros,  tendo em consideração grandes referenciais como: serviço local do Estado, organização de profissionais, serviço público de solidariedade social e associação local, a que acrescento serviço público de cultura e das artes. A “institucionalização da polivalência organizacional” poderá ser um contributo para a recuperação da visibilidade social e cultural das instituições formativas, contribuindo deste modo para restaurar e recriar laços de sociabilidade participada entre professores, artistas, estudantes, pais e comunidade.

Nota IV –  O papel do atores locais na construção das políticas da educação artística

As políticas na educação artístico-musical, como em qualquer dimensão da política educativa e cultural em geral, não emana apenas do poder político nem da sua tradução num quadro regulamentar pela administração educativa, uma vez que não só nem as reformas são efectivamente aplicadas no terreno como também os diferentes actores locais “reformam a reforma” através de procedimentos variados, situados entre a omissão e a transgressão ao que é estipulado. Nem sempre a intervenção do poder político na educação artístico-musical se traduz num quadro legal, nem na utilização de instrumentos de avaliação que permitam induzir modos de regulação que afiram procedimentos, modos e consequências do trabalho realizado. Os actores locais, através de um trabalho de transposição, de mediação e de avaliação, desempenham um papel central não só na viabilização local da política educativo-artística, o seu impulsionamento e a criação de condições para a sua realização, como também o incremento de políticas nem sempre consignadas pelo poder político, nem articuladas entre si.

Ora, não relegando o papel do Estado, interessa pensar e discutir o papel dos actores locais na construção e no desenvolvimento de uma acção concertada de intervenção educativa, artística e cultural. Esta intervenção emerge como uma das dimensões relevantes no âmbito de políticas e projectos artísticos e formativos através da mobilização de recursos locais e de processos formais e informais de carácter participativo.

Nota V - Algumas questões a que importa ir dando respostas

Tendo em conta as notas anteriores algumas questões se podem levantar:

·         Quais os tipos de papéis que o Ensino Especializado de Música e as escolas têm desempenhado, e desempenham, no desenvolvimento das comunidades onde está inserido?

·         Que relações se têm estabelecido, formal e informalmente, entre as diferentes instituições de cultura e recreio, entre os diferentes espaços existentes nos territórios?

·         De que modos é que as comunidades vêm o Ensino Especializado de Música e as suas escolas como pólos de desenvolvimento artístico, cultural e social?

·         Como articular as políticas centrais e as políticas locais, as tensões entre objectivos artísticos e objectivos políticos, bem como o papel das escolas na co-construção das políticas?

·         Que tipo de desafios políticos, culturais, pedagógicos, profissionais e políticos se colocam a este tipo de ensino de modo a potenciar o trabalho formativo e artístico, a sua interligação com os territórios assim como fomentar uma democracia mais culta?