quarta-feira, 20 de julho de 2011

Educação artística: em torno da diversidade e coerência e das singularidades diferentemente articuladas

O ensino artístico, e em particular o ensino das artes performativas – das artes do palco, nas quais se integra a educação artístico-musical – enquadra-se num conjunto de acções que interligam (a) a formação propriamente dita, isto é, a aprendizagem de determinados códigos e convenções, técnicas, estéticas e artísticas, no âmbito interpretativo e criativo, (b) a investigação, a criação e a experimentação; (c) a contextualização diferenciada das diferentes tipologias musicais e os mundos políticos, sociais, culturais e artísticos que lhe estão associados (mesmo no âmbito de uma mesma tipologia musical); (d) a produção e realização de espectáculos de formatos e pressupostos comunicacionais diferenciados e muitas vezes realizados “fora” do âmbito estritamente escolar; (e) diferentes tipos de partenariados (formais e não formais, públicos, privados e do terceiro sector); (f) os mecanismos de recepção das obras e dos espectáculos musicais.

Esta perspectiva de olhar político para este tipo de educação e de formação inscreve-se no que se pode designar por “estrutura rizomática”, por oposição a uma “estrutura em árvore” (Wilson, 2002). Contudo, o pensamento dominante de diferentes actores (intelectuais, burocratas, professores e investigadores) inscreve-se numa perspectiva de segmentação da realidade em que se classificam, planificam e programam as escolas e as instituições artísticas e culturais no sentido de atingir determinados objectivos mensuráveis. Conceptualizar as artes e a cultura, assim como a formação artística, como “estruturas em árvore” quando elas são rizomáticas e anti-estruturais, caracteriza uma visão redutora dos fenómenos complexos contribuindo para o desenvolvimento de políticas falhadas.

Sob o ponto de vista da política artístico-pedagógico, a educação e formação artístico-musical apresenta outra singularidade: a interligação entre diferentes saberes: saberes de natureza técnica (específica de acordo com os instrumentos em presença); saberes relacionados com a interpretação (apoiados na história das artes e na história da música); saberes relacionados com a criação e experimentação (apoiados na análise e compreensão das diferentes obras), saberes relacionados com a criatividade (apoiados no fomentar o pensamento divergente alicerçado em conhecimentos profundos de várias áreas do saber tecnológico, científico, artístico), saberes relacionados com os contextos de referência política, social, histórica, cultural; saberes relacionados com a apresentação pública, com a construção de um espectáculo, com as consequentes diferenciações em termos de comunicabilidade com os públicos diferenciados a que se destina, com a produção e difusão.

Estamos, pois, num campo não só de singularidades como também num campo intersectorial, e, neste contexto, nos modelos curriculares, importa interrogar as diferentes possibilidades e características deste tipo de formação de modo a que o estudante (Perrenoud, 1995) seja considerado também como um actor político e não um consumidor, deixando de o encarar como “ser futuro” mas “ser actual” (Canário, 2005; Small, 1980) para que as suas competências, adquiridas em diferentes contextos formais e não formais, possam ser reconhecidas e valorizadas. A qualificação decorre da apropriação e do desenvolvimento de competências multifacetadas e não é um desígnio apriori, da apropriação de instrumentos de pensamento e de cultura.

A singularidade da educação artístico-musical apresenta uma outra particularidade. A educação e formação artística vivem entre o paradoxo e a ambiguidade. Com efeito, pode-se aprender as técnicas, a história, os reportórios, desenvolver a criatividade mas dificilmente se formam artistas (Waterman, 1976), alguém singular, que dominando as técnicas, os reportórios, a história da música e a história social e cultural, consegue construir uma visão particular sobre o mundo e as obras de arte que interpreta, cria ou recria. Sob este ponto de vista, a educação artístico-musical, só pode criar condições plurais que potenciem a formação de artistas através do fomento de uma cultura humanista, do confronto com diferentes mundos e realidades artísticas e outras, no alargamento dos quadros de referência e numa convivialidade cosmopolita entre diferentes mundos e sentidos.

Por outro lado, a arte não se ensina nem como experiência nem como prática, uma vez que ela é profundamente irredutível a uma tradução deste tipo, atendendo a que a educação artística é, antes de tudo, composta de itinerários individuais, muitas vezes convergentes e divergentes com determinados pressupostos canónicos. É esta tensão entre as particularidades da arte e as finalidades da educação que caracterizam os efeitos formativos da educação artística onde existe a necessidade de uma aproximação ao interior das práticas artísticas e criativas, o que induz uma pedagogia artística diferente de outras matérias de âmbito escolar (Carasso, 2003). Um outro tipo de paradoxo reside no facto de que o “encontro com a arte” não pode ser apenas assegurado pelos professores, uma vez que ela não pode ter lugar sem que a escola faça apelo a recursos exteriores, quer se pensem em artistas quer em instituições culturais ou outras. Também as relações complexas entre as exigências “universais” da educação e as experiências singulares da arte, entre a regra e a transgressão, entre o centro e a margem, contribuem para estas ambiguidades, para a concepção política de “disciplinas indisciplinadas” (Beaulieu, 1993b).

Nestas “disciplinas indisciplinadas” existe um outro factor de grande ambiguidade e importância, naquilo que Bamford (2006) designa como o “the wow factor”. Isto é, o “encantamento” e os resultados imprevistos que são difíceis de medir mas que possuem um impacto não negligenciável nos estudantes, professores e comunidades, transformando-se também numa força que une os diferentes actores mesmo quando existem situações de grandes constrangimentos estruturais e políticos. A qualidade da experienciação musical é “poderosa” e nem sempre pode ser planeada em termos de resultados finais ou medida em testes e exames, como acontece noutro tipo de contextos educacionais e formativos, dado que a natureza do acto criativo reside na divergência e no “encantamento inexplicável” (Durrant, 2003:82).

Neste contexto, aquilo que, comummente, o poder político e ministerial e determinados sectores intelectuais, académicos e formativos caracterizam como problemas, por não se integrarem numa determinada ordem, é o que caracteriza este tipo de educação e formação, em que o “estrutural e o anti-estrutural; o alto e o baixo; o ortodoxo e o subversivo, o nacional e o local; o institucional e o anti-institucional; o top-down e o bottom-up; os interesses conflituais, valores e metas das escolas e das instituições culturais – todas as forças opostas – são as características permanentes no interior da paisagem cultural e, neste sentido, importa, mais do que procurar anular os paradoxos, potenciar as oportunidades presentes nos conflitos de interesses” (Wilson, 2002: 211).

Deste modo, importa interrogar os modelos dominantes potenciando a diferenciação de modos de organizar as instituições e a formação. Com efeito, os sistemas educativos foram pensados tendo como ênfase a estandardização e a conformidade em relação a um conjunto de procedimentos, modos de organização e desenvolvimento curricular numa determinada “gramática escolar” (Tyack & Tobin, 1994) que se tem mantido estável ao longo dos anos, apesar das várias reformas e reestruturações introduzidas. A educação ainda é vista como um processo linear, alicerçada em ideias de utilidade económica e de determinadas visões conjunturais de inserção no mercado de trabalho. Esta ênfase na estandardização e na conformidade, oriundas do modelo industrial, procura assegurar um conjunto de saberes considerados essenciais para os “desafios da competitividade e da concorrência” característicos deste tipo de modelo que, embora com outro tipo de designação - sociedade do conhecimento, sociedade da informação – , permanecem centrais na sociedade contemporânea portuguesa.

Este modo de pensar e organizar os sistemas educativos encontrou um modelo de forma escolar que propagou para diversos países e continentes (Nóvoa & Schriwer, 2000). A “naturalização da forma escolar” (Canário, 2008), apesar das nuances “que distinguem diferentes níveis de ensino, diferentes espaços geográficos e diferentes períodos históricos, não tornam possível ocultar a universalidade de uma solução organizacional, claramente aparentada com o modo taylorista de organização do trabalho, mantendo, ao mesmo tempo, modalidades de trabalho artesanal que explicam o crescimento exponencial do número de professores” (p. 27). Por outro lado, “a organização escolar, baseada em processos de ensino simultâneo, consubstancia-se na submissão de todos a um conjunto de procedimentos e regras impessoais, cuja realização se constitui como a sua principal finalidade, procurando eliminar tudo o que seja do domínio do imprevisível. São, precisamente, as exigências de um “ensino simultâneo” que conduzem à necessidade de construir uma “gramática organizacional”, da qual fazem parte a natureza e as modalidades de divisão do trabalho dos professores, que torne viável a imposição coerciva de processos uniformes de ensino” (Idem).

Com efeito, uma das problemáticas que caracterizam o sistema educativo português situa-se na “dificuldade de assunção de lógicas diferenciadoras como forma de construção de igualdades” (Vasconcelos, 2002a). Isto é, a criação e o desenvolvimento de mecanismos, no plano político geral e no plano interno das instituições de formação artístico-musical, que potenciem, por um lado, lidar com conceitos paradoxais como, por exemplo, singularidade e indiferenciação, homogeneidade e heterogeneidade, autonomia e controlo, imposição e negociação, ambiguidade e coerência e, por outro, a territorialização das medidas e dos procedimentos capazes de integrarem as diferentes transformações operadas no domínio científico (musicológico, etnomusicológico, artístico e pedagógico), no domínio tecnológico (estúdios de música electrónica, composição assistida por computador) e no domínio das motivações e expectativas dos públicos. Os diferentes tipos de resistências e de práticas diferenciadoras tiveram dificuldade em contrariar o predomínio da duplicação do mesmo no mesmo, em que a política emanada do Estado e de diferentes actores das instituições formativas procuraram organizar a formação artística e artístico-musical como se fosse uma só.

Ora, a questão deve, na minha perspectiva, ser colocada politicamente num outro âmbito. Ou seja, os sistemas educativos são tanto mais ricos quanto maior for a sua diversificação e diferenciação num quadro de autonomia e de pilotagem. Autonomia que permita o desenvolvimento de projectos formativos e culturais territorializados e distintivos e com formas organizacionais multifacetadas. Pilotagem, de modo a evitar a sua fragmentação, assim como modos de regulação que corrijam as assimetrias territoriais, culturais, estéticas, formativas, profissionais. O que pressupõe a passagem de um paradigma assente na centralização e na homogeneidade para um caminho de descentralização e reconhecimento da heterogeneidade e da complementaridade, quer se pense em termos das políticas centrais, quer nas políticas das instituições de ensino e das instituições culturais.

Heterogeneidade e complementaridade assentes na diversidade cultural. Diversidade presente não só através dos diferentes tipos de populações que constituem um determinado tecido social e comunitário, como também, e em particular, no interior de cada uma das formas artísticas e mesmo dentro de uma área artística. A diversidade cultural é constitutiva de toda a cultura e revela-se na produção de valores, imaginários, representações do mundo, construções simbólicas, expressões e linguagens, de comportamentos individuais e colectivos. Por outro lado, o modelo do Estado-Nação, na medida em que procurou uma determinada forma de homogeneidade cultural num espaço territorial, está confrontado com a heterogeneidade cultural como elemento característico das sociedades contemporâneas. O reconhecimento político e simbólico da diversidade na esfera pública estabelece que as instituições públicas desempenham um papel importante de modo a favorecer esta diversidade, e que a questão transcultural da diversidade no espaço público parte da constatação de que cada individuo, pertencendo a qualquer grupo cultural, possui numerosos “espaços de vida” cruzando e convivendo com indivíduos com outro tipo de pertenças territoriais, geracionais, de classes sociais, de comportamentos, de sensibilidades artísticas e culturais.

Esta perspectiva questiona o modelo do “multiculturalismo liberal”, que enfatiza, por um lado, que o mundo social e cultural está dividido em culturas distintas entre as quais existem fronteiras claras, e, por outro, que cada indivíduo tem a necessidade de uma e uma só cultura para dar sentido à sua vida individual e colectiva, contrapondo-lhe o “cosmopolitismo” que faz apelo à livre escolha identitária, à multiplicidade das identidades reconhecendo o princípio aberto das fronteiras culturais apostando no carácter social nele contido bem como a convivialidade entre estranhos e diferentes.

Assim, a diversidade, respeitante a todos os níveis de ensino, pode assumir dimensões diferenciadas. Uma dimensão relaciona-se com a “diversidade dos percursos individuais”, assumindo-se que “a aprendizagem corresponde a um percurso singular que cada pessoa constrói ao longo da sua vida” (Canário, 2008: 27). No entanto, a forma escolar baseada “numa concepção cumulativa do conhecimento que alimenta um sistema de repetição de informações […] subestima e desvaloriza as aquisições, os interesses e as experiências dos alunos, bem como as características socioculturais do seu contexto” conferindo “ao saber um carácter de exterioridade relativamente aos que são ensinados, a quem não é reconhecido o estatuto de sujeito” (Idem: 27-28). “A possibilidade de permitir uma pluralidade de caminhos e ritmos de aprendizagem implica que se passe de uma concepção de pedagogia activa para uma concepção de aprendizagem interactiva que se baseie no reforço e na multiplicação da diversidade de oportunidades de aprendizagem, oferecidas no ambiente escolar” (p. 28). Uma outra dimensão relaciona-se com o “aumento da diversidade de ofertas educativas (cursos diferentes para públicos diferentes), mas de valor idêntico para o prosseguimento de estudos, [que] constitui uma riqueza e um aumento da diversidade interna a cada estabelecimento de ensino e, simultaneamente, um acréscimo da diversidade do sistema educativo, no seu conjunto. A criação de ofertas diferenciadas, por parte de cada escola, cuja pertinência é evidente a partir do fim do ensino básico, não significa necessariamente a reprodução da clássica antinomia entre ensino profissional e não profissional”. “A relação entre a educação e o mundo do trabalho tem de estar presente em todos os patamares do sistema educativo e, quer no ensino secundário, quer no ensino superior, todas as ofertas educativas têm uma dimensão profissionalizante (pp. 28-29), podendo esta diversidade de ofertas estar presente desde o ensino básico. Uma outra dimensão “consiste em fazer evoluir as escolas (todas) para sistemas plurifuncionais de recursos, abertos a uma utilização intensiva por parte de uma pluralidade de públicos e de parceiros. A abertura das escolas ao contexto local e a sua articulação com actividades educativas não escolares abrem caminho à sua progressiva transformação em centros de educação [e cultura] permanente, fortemente contextualizados, propiciando a interacção de múltiplos tipos de aprendentes e de múltiplas modalidades de aprendizagem” (p. 29).

Neste contexto, para a construção política de uma política da diversidade, podem ser estabelecidas duas condições essenciais. A primeira “consiste em estabelecer uma ruptura com estratégias voluntaristas de mudança, conduzidas centralmente, de “cima” para “baixo” como se houvesse “uma solução” que seria possível impor. A diversidade, por definição, não se decreta, constrói-se, o que significa proceder de forma indutiva, encarando cada escola como um colectivo capaz de aprender e de encontrar respostas diferentes para problemas que, tendo um carácter aberto, admitem uma infinidade de soluções. Para isso é necessário, garantindo a coerência global do sistema, combinar formas de regulação convergente (que reconduzem a situações de equilíbrio) com formas de regulação divergente que têm como fundamentos a criatividade e a inovação”. A segunda relaciona-se com o reconhecimento da “importância decisiva dos professores, promovendo situações de crescente valorização objectiva e subjectiva da profissão docente. Incentivar o potencial criativo dos professores e das escolas implica reconhecer a pertinência de infringir regras estabelecidas, inventando práticas novas. Só um saber que provenha do interior do campo profissional pode alimentar a construção de “respostas diferentes para alunos diferentes”. Inovar sob tutela é um paradoxo e uma impossibilidade” (Idem: 30).



In  EDUCAÇÃO ARTÍSTICO-MUSICAL: CENAS, ACTORES E POLÍTICAS  (2011).

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Centralização, burocracia e autonomia das escolas

Para os diferentes responsáveis ministeriais, o desenvolvimento das políticas centradas nas escolas e na sua autonomia encontra um problema central que é “a máquina infernal centralizadora que parece ser a 5 de Outubro”. Ana Benavente, enquanto Secretária de Estado da Educação e Inovação do XIII Governo Constitucional, salienta que “cada escola tem que ter um projecto educativo elaborado pelos órgãos da própria escola, e é a esse projecto que os professores estão vinculados”. Daí a necessidade de “descentralização do sistema”, uma vez que “a máquina infernal centralizadora que parece ser a 5 de Outubro […] e as direcções regionais que decidem o dia-a-dia das escolas – tudo isto é um absurdo, que temos de começar a destruir”. Para isso, “a escola precisa de muito mais autonomia e tem que estar ligada aos territórios em rede, ligada às autarquias e a outras instituições educativas, culturais e económicas, ficando reservadas para a gestão central sobretudo a regulação e a avaliação do sistema[1]” (Jornal de Letras, Ano XVI, n.º 676, 11 de Setembro de 1996, p. 2).

Também para João de Deus Pinheiro, Ministro da Educação e Cultura do X Governo Constitucional, o Ministério é “altamente centralizador e centralizado”, obrigando “a que todas as escolas sejam homogéneas”, o que, do seu ponto de vista, não é desejável dada a importância da criatividade, diversidade e da inovação nas sociedades contemporâneas. Deste modo, preconiza que este tipo de “qualidades […] só vingarão se as próprias escolas tiverem em si esse gérmen de inovação, se em cada escola puderem florescer o que são as suas vertentes e potencialidades próprias, diversas de região para região, de escola para escola” (Expresso, n.º 677, 4 de Outubro de 1985, p. 17-R).

Numa perspectiva equivalente, Roberto Carneiro, do XI Governo Constitucional, salienta que a alteração da “máquina burocrática” do Ministério da Educação é “um problema que só se resolve” resgatando “a escola da visão demasiado tecno-burocrática da Educação”, o que exige “que um político […] consiga ligar-se, directamente, ao centro nevrálgico do processo educativo”, centro esse que não é o Gabinete do Ministro “nem a Direcção-Geral ou Regional – é a escola”, sendo necessário inverter a lógica do sistema através da “autonomia da escola”. Diz o ministro que “a escola preparatória e secundária […] têm que ter uma vivência própria, o seu projecto, a capacidade para o realizar com responsabilidade. E tem que ser avaliada pelos seus méritos ou deméritos em função dos projectos[2]” (Expresso, n.º 789, 12 de Dezembro de 1987, p. 31-R). Para este actor, o tempo em que “o ministro apenas tinha de decidir sobre um processo elaborado racionalmente pela burocracia” é um tempo passado, uma vez que “a política deve ser cada vez mais o jogo dos actores e a cena educativa está cheia de actores: os professores e os respectivos sindicatos, os pais e as respectivas associações, as autarquias, as comunidades e as associações de estudantes, o ensino particular, as instituições religiosas, a comunicação social, os homens da cultura e da ciência, os empregadores…” (Idem).

Por sua vez, Maria do Carmo Seabra (XVI Governo Constitucional) salienta “dois males fundamentais (ainda que de gravidade diferente) e com soluções necessariamente correlacionadas”. Para esta ministra, “o primeiro e maior problema” situa-se na “ausência de uma cultura e prática generalizada de avaliação: avaliação dos alunos, dos professores, das escolas; o segundo problema relaciona-se com “o excesso de centralismo e dirigismo por parte da máquina do Ministério, que conduzia a uma desconfiança muito grande do poder relativamente a todas as iniciativas inovadoras e criativas das escolas, das associações de pais, da sociedade civil” em que “a atitude inicial dos responsáveis face a qualquer inovação e manifestação de criatividade é sempre de suspeição” (http://www.sg.min-edu.pt/expo03/ min_27_maria_seabra/ expo5.htm, p. 2).

Ora, a procura de políticas para contrariar estas “perspectivas centralizadoras” aparece também no discurso de David Justino, Ministro da Educação do XV Governo Constitucional, que “partindo de um sistema de ensino assente numa concepção centralista, homogeneizadora[3], no primado da regulação burocrática e na endoutrinação – legado de uma concepção característica do que poderemos designar por Estado Educador”, procura “estruturar uma estratégia” conducente “a um sistema cada vez mais descentralizado, diversificado nas formas de organização das escolas e pluralista na valorização dos diferentes modelos de ensino-aprendizagem” – um sistema que promova “a autonomia das escolas” e que responsabilize “civicamente as comunidades de base pelo futuro da educação” (http://www.sg.min-edu.pt/ expo03/min_26_justino/expo5.htm, p. 1).

Tudo este discurso político sobre a centralização e a burocracia da administração do Estado, que nem as escolas nem os próprios responsáveis ministeriais parecem ter poder para inverter, acaba por se transformar num argumento justificativo, de natureza política, para as dificuldades que encontram no desempenho da sua acção governativa. Outros actores, no entanto, apresentam, para além “do modelo centralizado de governação da educação”, outro tipo de argumentos que podem ser situados entre a articulação com outros poderes no interior do governo, os contextos socioprofissionais, os partidos políticos, na incerteza da mudança e na aceitação de novas regras.

No primeiro caso, Júlio Pedrosa considera que “na Educação Básica e Secundária era evidente que não se poderiam concretizar certas reformas sem concretizar a transferência de competências para as autarquias, acompanhada dos correspondentes meios, e sem estabilizar as equipas de docentes das escolas. O modelo centralizado de governação da educação, clamando por transferência efectiva de competências para autarquias e escolas, bem como pela consolidação da autonomia das universidades e institutos politécnicos, associado à exposição mediática contínua, decorrente do clima político e social que se vivia, submergiam o Ministério com questões de administração que impediam a concentração na estratégia e acções de política” (http://www.sg.min-edu.pt/expo03/min_25_pedrosa/expo5.htm, p. 1).

Por outro lado, para Fraústo da Silva, os problemas no desenvolvimento da acção política assentam na “dificuldade em fazer valer os nossos argumentos junto dos nossos pares ao nível do Conselho de Ministros, que lutam também pelos projectos e necessidades das suas áreas”. Embora considere que todos os problemas “são importantes”, contudo, “nem sempre se reconhece que todos são interdependentes no que é, de facto, um sistema dinâmico e não um conjunto de componentes isolados, pelo que quando os recursos são limitados é difícil chegar a consensos na definição de prioridades” (http://www.sg.min-edu.pt/expo03/min_15_frausto_silva/expo5.htm, p. 1).

Marçal Grilo considera que as “dificuldades” estão associadas à “tradicional resistência à mudança que é tão característica do comportamento de quase todos os grupos profissionais e o modo como alguns dirigentes sindicais entendem a sua função de defesa dos interesses da “corporação” dos professores”, embora também deva ser referida “a dificuldade em articular alguma legislação com outros sectores da Administração do Estado”. Um outro tipo de dificuldades situa-se no âmbito partidário e parlamentar, lamentando-se “que os Partidos Políticos não tenham aceite a proposta que lhes foi apresentada no Parlamento para aceitarem um “Pacto Educativo”, onde fosse possível estabelecer algumas orientações de política para o Sector que permitissem evitar as constantes alterações que se processam na transição entre legislaturas ou mesmo entre governos durante a mesma legislatura” (http://www.sg.min-edu.pt/ expo03/min_22_marcal_grilo/expo5.htm, pp. 1-2).

Por último, Maria de Lurdes Rodrigues salienta que “greves sempre houve [...] mas, de facto, a expressão dos conflitos neste mandato foi muito evidente, tal como a profundidade das mudanças que procurámos concretizar. Mudanças em que se pedia às pessoas que se organizassem de forma bem diferente do que era a tradição e do convencionado. São naturais estas reacções e podem-se explicar, mas não significa que aceitemos os pontos de vista. Creio que os conflitos são resultado da perplexidade e da incerteza de não se saber como vai ser”. No entanto, estas mudanças e conflitos acabam por ser acomodadas nos diferentes sectores, dado que a reforma, na perspectiva da Ministra da Educação do XVII Governo Constitucional “melhorava a condição de todos”: o caso do ensino artístico, em que tivemos uma contestação fortíssima e depois veio a acalmia. Ouviu-se falar de ensino artístico este ano? Não. E a reforma foi feita, provando às pessoas envolvidas que a reforma melhorava as condições de todos. E aumentámos em 40% o número de alunos bem como o emprego no sector. O que é que explica a reacção inicial? A incerteza”. Apesar de ser “um sector ínfimo”, este exemplo, em relação às conflitualidades a diferente tipo de políticas é “um exemplo, pequeno, que teve muita expressão e mobilizou muitas escolas e professores”, tendo a Ministra procurado “analisar, verificar e, nuns casos, prosseguir, noutros, ajustar” (http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id= 131 7554, 26 de Julho 2009).

Para Maria de Lurdes Rodrigues, este tipo de problemas não é resultante exclusivamente dos modos como a mensagem política é passada, “mas de compreensão do sentido das novas regras. Uma proposta de mudança diz respeito a novas regras e, por vezes, há discordância total, porque não se entendem os efeitos imediatos ou a prazo e reage-se por muitas razões. Também tivemos reacções às aulas de substituição, à escola a tempo inteiro e a outras medidas. No caso do Estatuto, estou convencida de que há uma diferente visão do que deve ser a organização da carreira dos professores. No que respeita à avaliação, acho que é outro problema, mas também a dificuldade em compreender qual será o impacto das novas regras. É preciso mostrar que os professores podem ter ganhos ao premiar-se o mérito” (Idem).

(In Vasconcelos, António Ângelo, Educação artístico-musical: cenas, actores e políticas, 2011)



[1] Tendo em conta “uma máquina tão pesada e tão centralizadora como é o Ministério da Educação”, Ana Benavente considera que, para desenvolver este tipo de ideias, o Ministério vai “iniciar e apoiar a descentralização do sistema educativo fazendo de cada escola o centro da vida educativa e um elo de escolas, facilitando a iniciativa dos diferentes agentes sociais organizados, o que implica reformular o papel do Estado, que passa a regular, orientar, supervisionar, avaliar e apoiar. Mas isso exige capacidade para dinamizar o próprio centro, torná-lo mais capaz de monitorizar as escolas, assegurando que cada escola conheça o “rosto” da administração e construir retaguardas técnicas de apoio, que podem facilitar a construção da autonomia das escolas” (Idem:3).
[2] Este tipo de ideia aparece também numa outra entrevista de Roberto Carneiro ao Jornal de Letras em 1999 quando refere que “a escola não pode ser mais um terminal burocrático duma cadeia de comando”, tem de ser “conectada com a comunidade” e ter projectos diferenciados entre si, atendendo que “uma escola de Bragança não tem de ter o mesmo projecto educativo de outra no Alentejo ou Algarve” (Jornal de Letras, Ano XIX, n.º 747, 19 de Maio de 1999, pp. 6-7).
[3] Esta questão do “centralismo” e a necessidade da sua transformação, em particular de uma maior autonomia das escolas, é uma ideia recorrente no âmbito do discurso e da acção dos ministros da educação explicitada por João de Deus Pinheiro, em 1985, do seguinte modo: “o que é que significa uma administração altamente centralizada como a nossa em relação às escolas preparatórias e secundárias? Muito simplesmente que nós temos que homogeneizar, que tornar as escolas o mais possíveis iguais uma às outras para centralmente se conseguir gerir este sistema de oitocentas e tal escolas. || Isto é exactamente o contrário àquilo que eu defendo e que a equipa governativa tem defendido e que é a necessidade de cada escola ter uma alma própria, de se poder dar maior autonomia e maior responsabilidade às escolas, com uma educação em que a criatividade e a educação não-formal assumam novos contornos e novas iniciativas. É que as escolas são quase sufocadas por circulares perfeitamente anódinas as quais chegam às escolas dizendo «faça-se assim, faça-se assado», independentemente do tipo de escola, se está numa zona rural ou numa zona urbana, se tem muitos ou poucos alunos, se tem muitos professores profissionalizados ou efectivos, se é uma escola com instalações recentes, se tem gimnodesportivo… Isto é um sistema que, enquanto for gerido a nível central, não vemos possibilidade de reformar. || Esta reestruturação do ME, com a consequente desmultiplicação da estrutura central e mais eficácia e mais competência e uma efectiva descentralização muito profunda, é, quanto a nós, uma condição «sine qua non» seja de que reforma for do sistema educativo” (O Jornal da Educação, Ano VII, N.º 86, Outubro de 1985, p. 10).