segunda-feira, 17 de março de 2014

A Democracia e o Ensino de Música || O Ensino de Música e a Democracia

As relações entre o ensino de música e a democracia revestem-se de configurações complexas e paradoxais onde, a par da afirmação pela parte dos responsáveis políticos da sua pertinência na formação das crianças, jovens e adultos e no desenvolvimento de uma sociedade mais culta, constata-se a dificuldade no desenhar de medidas políticas consistentes que corporizem a riqueza e as pluralidades existentes nos “mundos da música e da educação artístico-musical”.

Por outro lado, quer os “mundos da música”, quer os “mundos da educação artístico-musical”, e apesar dos progressos conseguidos para além das políticas centrais, nem sempre têm conseguido articular os diferentes quadros de referências e a riqueza existentes e constituir-se como força alternativa aos diferentes tipos de funcionalizações da formação, à mercadorização da arte e da educação, e à sociedade do espetáculo, de que fala Guy Debord.

Neste contexto, e atendendo a que estamos no ano em que se comemoram os 40 anos do 25 de Abril, importa questionar: de que modos se têm estabelecido as relações entre a democracia e o ensino e música e como é que o ensino de música tem contribuído para a construção da democracia? Para responder a esta pergunta, e de uma maneira muito telegráfica, problematizo esta relação a partir das quatro temáticas seguintes, que, naturalmente, não esgotam as possibilidades do olhar e irão ser desenvolvidas noutras cartas.

Cidadania e cultura - acesso à educação artístico-musical. O acesso à educação artístico-musical tem estado condicionado por múltiplos factores que advêm não só das políticas centrais nos planos da educação e cultura, mas também das políticas sociais e económicas, assim como de fatores de ordem territorial, organizacional e formativos. Assim, e apesar do incremento das escolas de formação artística, das bandas filarmónicas, coros e de associações recreativas e culturais com atividades diferenciadas neste domínio e que possibilitam uma intervenção alargada, no âmbito do designado ensino genérico, ao qual a priori todas as crianças, jovens e adultos, têm acesso, existe uma tendência cíclica de desvalorização dos saberes artísticos e musicais, em favor de saberes mais “úteis”. Por outro lado, e apesar de experiências no terreno muito interessantes, continuam a existir dificuldades em dar visibilidade a outras formas do trabalho formativo em que se fomente, por exemplo, a formação de amadores e de outro tipo de músicas no interior do sistema de formação artística.

Centros e periferias – uniformidades e diferenciações. O sistema educativo foi sendo construído tendo como retórica fundamental “um sistema uno e coerente” que, apesar das retóricas, tem tido dificuldade de “assumir lógicas diferenciadoras como forma de construção de igualdades”, como escrevi noutro local. E esta dificuldade manifesta-se quer no âmbito do exercício da profissão docente-músico, quer no âmbito da organização curricular e da organização escolar, dificultando muitas vezes a existência de projetos inovadores que potenciem as singularidades e o incremento de formas diferenciadas do trabalho formativo e artístico, bem como a sua relação com as diferentes comunidades. Esta dificuldade está presente também no âmbito dos orçamentos que nem sempre possibilitam que se contemplem as particularidades existentes.

Educação artístico-musical e criatividades - criação, experimentação e difusão. O campo artístico é um dos sectores que trabalha na apropriação e no desenvolvimento de diferentes dimensões da criatividade. Ou de criatividades, para utilizar a palavra de Pamela Burnard. E ao falarmos de criatividades, importa relembrar o que António Pinho Vargas escreveu ao referir-se ao ato de compor como “um processo complexo, um estar-lançado no qual surgem coisas, forças às quais se responde de alguma maneira. Este estar-aberto para o devir, inerente ao processo criativo (…), não exclui a consciência histórica dos chamados materiais (que cada compositor terá de maneira muito diversa) mas antes se desloca para fora do processo criativo”. Neste modo de ver, são de salientar alguns conceitos que me parecem pertinentes: processo, complexidade, estar-aberto para o futuro, consciência histórica, materiais, diferenciação, individualidade. Daqui, outros conceitos se podem inferir como imprevisibilidade, inquietação, desafio, risco, disciplina, ordem, desordem, experimentação, que de algum modo caracterizam o ato criativo, seja ele de natureza científica ou artística.

Racionalidades e conhecimento artístico e científico - investigação e intervenções reconfiguradas. A importância de se estudar, conhecer e compreender as diferentes realidades e as complexidades existentes nos “mundos da música” e nos “mundos da educação artístico-musical”, apresenta-se como um dos factores essenciais que sustentam, deveriam sustentar, a tomada de decisões políticas, a tomada de decisões de carácter mais técnico e artístico, a tomada de decisões no que se refere às carreiras artísticas e profissionais. Nem sempre esta dimensão esteve presente, existindo uma modalidade dominante assente numa espécie de racionalidade “técnico-científica” em desfavor doutro tipo de racionalidades presentes no campo artístico e formativo. Por outro lado, esta é uma das temáticas que no contexto do ensino de música se encontra mais fragilizada, não só por causa das políticas centrais, mas também pelo facto de só na década de 90 do século passado ter começado a existir um trabalho neste domínio. Por isso, importa, como escreve Gonçalo M. Tavares, “multiplicar as possibilidades de verdade” e perceber que “as possibilidades da imaginação são infinitamente maiores do que as possibilidades da observação das coisas e acontecimentos exteriores”.

in carta aos socios APEM Newsletter, Fevereiro 2014

quinta-feira, 6 de março de 2014

A música e a educação: por uma prática artística criativa e interdependente

O ensino da música, nas suas múltiplas componentes e modalidades, vive, desde as últimas décadas do século XX, na interação e no confronto entre diferentes modos de conceção, construção, operacionalização e administração das políticas educativas e culturais e as subjetividades artísticas dos seus agentes. Interações e confrontos enformados entre contextos de referência globais e locais. Globais pela importação e comparação com modelos oriundos de outros países, locais pela recontextualização dessas referências.Por outro lado, este tipo de formação enquadra-se numa sobreposição de várias redes que envolvem, entre outras, a educação, a cultura, as conceções de músico, o papel social da arte na educação, os públicos e os consumos. A estas redes associa-se o papel que é exercido pelas barreiras (materiais e simbólicas) entre os grupos sociais, no que se refere às modalidades de acesso às práticas educativas e culturais e aos respetivos universos de valoração e de descodificação dos códigos e das convenções existentes nas culturas musicais.

Este texto tem uma dupla finalidade. Por um lado, questionar alguns dos modelos dominantes defendendo que este tipo de formação se enquadra numa sobreposição de várias redes que envolvem, entre outras, a educação, a cultura, as conceções de músico, o papel social da arte na educação, os públicos e os consumos. Por outro lado, partindo das práticas inovadores existentes de norte a sul do país e das ilhas, torna-se pertinente encontrar alguns princípios que poderão ajudar a incrementar e a potenciar uma área de formação que, cada vez mais no contexto nacional e internacional, se afigura como uma dimensão importante não só na formação dos indivíduos, mas também, no contexto comunitário e na construção da democracia.