quinta-feira, 30 de abril de 2015

As escolas do ensino especializado de música, o Estado, os financiamentos, as instabilidades e a urgência do restabelecimento da confiança e da esperança

As escolas particulares e cooperativas do ensino especializado de música desempenham um papel fundamental na formação de novas gerações de pessoas, de músicos. Embora o seu estatuto seja de natureza privada e/ou associativa, elas constituem-se como um dos pilares do serviço público no âmbito do ensino da música em Portugal, atendendo a que existem apenas seis escolas de natureza pública. Apenas seis porque o Estado e os diferentes governos, desde os anos 70 do século passado, não têm conseguido, não têm tido interesse em alargar a dimensão da rede das escolas públicas delegando nas escolas particulares e cooperativas esse papel através de contratos que estabelecem com as entidades proprietárias.

Nestes contratos de natureza financeira e pedagógico-artística, as escolas seguem o mesmo tipo de organização curricular do que as escolas públicas, estabelecem determinados compromissos, quer por parte das escolas quer por parte do Estado e das instâncias de governo que, num labirinto institucional e burocrático exigem das escolas responsabilidades administrativo-burocráticas que as próprias instâncias do governo central nem sempre cumprem.

Os modelos e os compromissos de financiamento por parte do Estado ficam enredados numa teia de políticas e de instâncias que em vez de permitirem estabilizar o quadro financeiro a partir do qual as escolas como organizações, as suas direcções, bem como os professores, desenvolvam o trabalho para que efectivamente estão vocacionadas e nas quais o Estado delegou competências de serviço público, assiste-se a um constante desrespeito pelos compromissos assumidos. A crise, as crises, não explicam tudo. Ou melhor não explicam nada uma vez que o dinheiro existe. Tal como existe uma política deliberada de reter financiamentos numas coisas para poder aplicá-los noutras. Vivi processos semelhantes há 23 anos atrás na passagem do então designado Quadro Comunitário I para o Quadro Comunitário II, equivalente ao POPH actual. E o que é curioso e arrepiante é que os argumentos então utilizados para justificar os atrasos eram muito semelhantes aos que existem agora. Parece que nada se aprende.

Ora, esta teia de políticas, de instâncias, de irresponsabilidades transforma-se num elemento causador de profundas perturbações na vida das instituições e dos seus profissionais e é demonstrativo da surdez e da cegueira do poder político em relação à importância deste tipo de formação, demonstrativo da surdez e da cegueira do poder político em relação às dificuldades que se criam sob o ponto de vista da organização e da gestão bem como dos quotidianos das pessoas que lá estudam e trabalham. E isto não se pode tolerar na segunda década do século XXI.

E não se pode tolerar porque, como tenho defendido, as escolas do ensino artístico especializado de música são centros e laboratórios de cultura, de conhecimento, de criatividade e de cidadania, onde as novas gerações aprendem a arte do encontro com os saberes, as técnicas, as estéticas e, principalmente, a arte do encontro com os outros na co-construção e reconfiguração dos mundos pessoais e coletivos. O trabalho que se tem desenvolvido assenta e alicerça-se na história, nas memórias e em determinadas visões do futuro mas, fundamentalmente, nas vivências do presente, com um trabalho notável, de norte a sul do país, na formação das crianças e dos jovens envolvendo diferentes tipologias musicais, na criação, produção e difusão de projectos artísticos diversificados, na realização de diferentes tipos de cursos e na dinamização da vida musical nas comunidades onde se inserem.

O tipo de constrangimentos financeiros que atravessam são resultantes de políticas públicas erradas, de políticas mais centradas em modelos exclusivamente economicistas em que a cultura, as artes e a educação artístico-musical ficam relegadas para um plano de menoridade quando comparadas com outro tipo de investimentos. E este tipo de políticas, a que se acrescentam políticas que não respeitam os compromissos assumidos com as escolas, com os professores, com as crianças e com as famílias, tem contribuído não só para instabilidades pessoais, colectivas e organizativas como também fomentam a criação de impossibilidade na construção de novos imaginários e de uma sociedade democrática mais culta e plural.

Torna-se por isso urgente que o Estado (o governo e os diferentes serviços centrais) assuma os compromissos que estabeleceu com as escolas e os seus profissionais, criando um novo contrato de confiança e de esperança entre as instituições e as modalidades de governação. Sem isto, o muito e bom trabalhado que se desenvolve corre o risco, não só de estagnar, como fundamentalmente limitar, senão mesmo impedir, a existência de projectos dinâmicos e inovadores e de se privarem as crianças, os jovens, os adultos e as comunidade de uma formação que vem dando mostras da sua vitalidade quer em termos nacionais, quer em termos internacionais.

Sem um novo contrato de confiança e de esperança, perdemos todos. Como indivíduos, como colectivo, como sociedade que se quer a par das sociedades desenvolvidas. Se a formação de gerações mais cultas, criativas e cosmopolitas não é relevante então o que é que é relevante para o poder político e para a sociedade como um todo?

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A situação das escolas de música do ensino particular e cooperativo. A crise não explica tudo...

De um outro modo, o ensino especializado de música, o Estado e os incumprimentos: entre a incompetência, o desrespeito e estratégias económico-financeiras

Os conservatórios e academias de música do ensino particular e cooperativo vivem momentos conturbados pelo não cumprimento pela parte do Estado, melhor do governo, das obrigações contratuais que estabelece, em particular no que se refere aos pagamentos relacionados com o ensino articulado, criando situações de grandes constrangimentos às escolas, direções, professores e famílias. Uma das escolas, a Academia de Música de Almada, não sendo o único caso nesta situação é, contudo, um exemplo tipo das disfuncionalidades da relação do Estado com as instituições de formação que, depois das várias tentativas de interlocução com os serviços do Ministério, acabam por suspender as aulas no âmbito do ensino articulado que envolvem cerca 190 estudantes.

Com efeito, num ofício ao Secretário de Estado a Academia de Música de Almada escreveu no início do mês de janeiro que “(1) A portaria 1065-E/2014 que aprova as condições de financiamento através de contrato de patrocínio às entidades proprietárias de ensino particular e cooperativo que ministram o ensino especializado da música foi publicada a 19 de dezembro de 2014, apesar das candidaturas terem decorrido até ao início de agosto; (2) A 22 de dezembro fomos informados pelos serviços da DGEstE que a transferência das verbas dependia de um aval prévio do Tribunal de Contas e que este poderia demorar até 45 dias.; (c) Só a 6 de janeiro, na sequência de um contacto nosso com o Tribunal de Contas, fomos informados pelos serviços da DGEstE que, para além das habituais declarações de não dívida (Segurança Social, Finanças, CGA), devíamos enviar no prazo de 24 horas os certificados de registo criminal dos sócios gerentes e a certidão permanente do registo comercial e (3) “Fomos ainda informados que os emolumentos ao Tribunal de Contas correriam por conta das escolas, condição sem a qual o processo de pagamento não se efetivaria.”

Tendo em conta a gravidade da situação, é dito ainda que “caso a situação não se altere, alertamos desde já para o facto de não podermos garantir a partir do início da próxima semana o normal funcionamento das atividades letivas da Academia de Música de Almada”, em particular no que se refere ao ensino articulado, o que veio a verificar-se.
Perante a repercussão que este caso teve na comunicação social e nas redes sociais, bem como a pressão de algumas forças políticas, "O Ministério da Educação promete pagar, em breve, o que deve às escolas do ensino artístico. Em comunicado enviado à Renascença, o gabinete do ministro Nuno Crato indica que as transferências bancárias serão feitas logo que estejam concluídos os respetivos trâmites processuais."

Contudo, como escreveu o Sol, muitos dos processos que foram enviados para o Tribunal Constitucional, que de acordo com a legislação necessita de emitir um visto, “exigência imposta este ano pelo Governo aos contratos cujo financiamento excede os 350 mil euros, as escolas estão impedidas de receber qualquer verba”. Curioso é que muitos contratos, foram novamente remetidos para o Ministério da Educação com a justificação de “estarem mal instruídos”. De acordo com o jornal esta situação originou até um reparo do próprio tribunal à atuação do Governo. “Em futuras situações o Ministério da Educação deverá remeter os processos em momento que não possa suscitar perturbações ou atrasos no normal funcionamento das escolas. Estamos perante uma determinação que resulta da Lei geral que não pode deixar de ser cumprida”.

Por outro lado, num comunicado de 23 de Janeiro, as direções de 14 escolas que têm os seus contratos de patrocínio a aguardar o visto do Tribunal de Contas, afinam pelo mesmo diapasão ao referirem que: “(1) a maioria das referidas escolas não tem condições para garantir o pagamento de salários a professores e funcionários, bem como o pagamento de impostos e contribuições à segurança social a partir do mês de fevereiro, sendo que há escolas que não pagam os salários devidos há mais tempo; (2) as escolas estão profundamente indignadas com os seguintes factos: (a) à data, a meio do ano letivo, não terem ainda recebido qualquer verba referente ao contrato de patrocínio com o Ministério da Educação e Ciência para o ano letivo 2014/2015; (b) não obterem qualquer resposta e informação atempada por parte das entidades competentes do Ministério da Educação e Ciência sobre o referido atraso ou sobre possíveis perspetivas de pagamento; (c) os contratos estarem em apreciação no Tribunal de Contas e implicarem às referidas o pagamento de emolumentos sobre o montante global dos contratos.” Assim, (a) “considerando que todos os anos se verificam atrasos, as escolas questionam a forma e os processos de pagamento dos contratos; (b) as escolas estão abertas a um diálogo construtivo para que esta situação não se volte a repetir; (c) as escolas consideram que é um direito que lhes assiste serem ressarcidas pelos prejuízos, incumprimentos e dívidas contraídas, as quais se devem única e exclusivamente ao incumprimento dos prazos de pagamento por parte do Ministério da Educação e Ciência; (d) as escolas estão muito preocupadas com o futuro dos seus alunos que correm o risco de ficar sem aulas quando as escolas não tiverem mais condições para as garantir!”

Perante este quadro o que pensar? Que indicadores estão presentes neste tipo de comportamentos do Estado? Será que a crise explica tudo? Como encontrar modalidades de coordenação entre as escolas e entre as escolas e o Estado? Será que as instituições de formação, os estudantes, os professores e as famílias poderão viver nestes constantes sobressaltos?

As respostas a estas e muitas outras questões não sendo simples todas têm um denominador comum: o Estado tem de ser “uma pessoa de bem” que honre os compromissos, sem retóricas falsas que aliam incompetências várias e mecanismos de retenção de dinheiros para outros fins que não para aqueles a que estão adstritos. O problema não é falta de dinheiro, como a retórica dominante quer fazer passar. O problema é de natureza política, de políticos e de políticas. As opções que se fazem ou não fazem. Nem mais nem menos.
in apemnwesletter, "de olhos postos", janeiro 2015

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O Estado e o ensino de música: ambiguidades, mercadorização e irresponsabilidades


As políticas públicas na educação artística em geral e na educação artístico-musical em particular não emanam apenas do poder político nem da sua tradução num quadro legislativo. Os atores locais através de trabalho de transposição, de mediação e de avaliação, desempenham um papel determinante não só na viabilização local da política educativo-artística, do seu impulsionamento e da criação de condições para a sua realização, como também no incremento de novas políticas, nem sempre consignadas pelo poder político, nem articuladas entre si. Por outro lado, a dimensão pública da educação artístico-musical não se situa apenas no contexto das escolas públicas. O ensino particular e cooperativo e diferentes tipos de associações sem fins lucrativos também contribuem para uma noção mais alargada de serviço público no ensino de música.

Neste contexto, o Estado, entendido aqui como as instâncias de governo central bem como as diferentes instâncias administrativas que o compõem, não sendo o único ator, desempenha um papel de grande relevância no enquadramento político-administrativo - em articulação com as instituições de formação e as instituições culturais, em torno do qual os diferentes tipos de projetos educativo-artísticos se desenvolvem. Contudo, este papel central tem apresentado um conjunto de características que, de um modo sucinto, se podem traduzir por ambiguidades políticas, mercadorização da regulação e irresponsabilidades na assunção e no desenvolvimento do contrato social que estabelece entre as instâncias de governo e as instituições de formação, de criação e de produção artística.

Ambiguidades do político e das políticas
Os modos como o Estado se tem relacionado com o ensino de música apresentam uma dimensão retórica paradoxal. A par da afirmação da importância de uma sociedade mais culta, exigente e criativa, assiste-se a uma enorme dificuldade do Estado cumprir os desígnios expressos nesta afirmação. Veja-se por exemplo os discursos dos ministros e outros responsáveis políticos e depois a sua tradução em políticas públicas articuladas entre a formação, a criação, a investigação e a produção e realização de espectáculos.

Com efeito, existe uma espécie de laxismo em relação às questões estruturantes relacionadas com o ensino de música nas valências atrás referidas, em que as diferentes instâncias de governo “preferem ficar” numa certa posição entre o “deixar andar” e a relevância que dão a outro tipo de formações mais assente num contexto imediatista de uma sociedade concorrencial e de consumo, com consequências nefastas quer no presente quer no futuro. Consequências visíveis desta situação.

Da mercadorização dos mecanismos de coordenação
Assiste-se ao confronto entre políticas contraditórias de coordenação “que denotam um impasse caracterizado pela retórica política do Estado Avaliador e pela prática gestionária do Estado Educador”, como refere Natércio Afonso. Ou, no dizer de João Barroso, assiste-se “à tentativa de “criar mercados” (ou quase mercados) educativos transformando a ideia de “serviço público” em “serviço para clientes”, onde o “bem comum educativo” para todos é substituído por “bens” diversos, desigualmente acessíveis. Sob a aparência de um mercado único, funcionam diferentes sub-mercados onde os “consumidores” de educação e formação, socialmente diferenciados, veem-lhes serem propostos produtos de natureza e qualidade desiguais. […] O objectivo central já não é adequar a educação e emprego mas articular o “mercado da educação” com o “mercado de emprego”, nem que para isso seja necessário criar um “mercado de excluídos”.

E isto tem tido consequências profundamente negativas num setor de educação e de formação que apresenta características que não se compadecem com as designadas lógicas de mercado. Não só pelo facto de se estar em presença do longo prazo, em vez do curto, como também os resultados desta formação não são linearmente traduzíveis em bens de consumo imediato, situadas que estão num contexto dos bens simbólicos, que exigem outro tipo de modalidade de ação e de coordenação.

Do respeito e da confiabilidade do contrato social
Ao serem criadas determinadas expetativas, quer através do discurso político quer através de algum quadro legal, espera-se que elas não fiquem no domínio da retórica política mas que tenham consequências práticas na vida das escolas, professores, estudantes, famílias e comunidade. Contudo, verifica-se, que, de um modo geral, o Estado, em particular o poder político, não cumpre com o que ele próprio estabelece. Dois exemplos. O decreto-lei n. 344/90, de 2 de novembro, que estabelece as bases gerais da organização da educação artística, estabelece no seu artigo 43.º que no prazo de dois anos a partir da entrada em vigor do diploma serão publicados os diplomas que regulamentarão as diversas áreas da educação artística. Passados 24 anos, e apesar de todas as transformações existentes, nem o decreto foi revogado, nem se regulamentou o que era suposto.

Um outro exemplo mais recente, do início deste ano letivo, diz respeito aos professores contratados no ensino especializado de música e que, o atual ministro afirmou publicamente que, começariam a auferir o seu salário desde 1 de Setembro de 2014. Só que, nos vários empecilhos administrativo-burocráticos da máquina ministerial, os contratos foram assinados mais tarde e é uma luta e um desgaste muito grande para que se cumpra o que foi afirmado.

Estes dois exemplos separados no tempo, a que se poderiam juntar muitos outros nos setores da educação, são representativos do que se pode designar em última instância da falta de respeito por parte da administração, não só em si própria (mas isso é um outro problema) mas fundamentalmente pela quebra constante de um contrato social, o que contribui decisivamente para as ambiguidades e o incremento da falta de confiança num Estado que deveria ser o garante da responsabilidade, da responsabilização na reconfiguração de uma relação entre o Estado, os indivíduos, as comunidade e as instituições mais exigente, clara e culta, sem a qual a atividade formativo-artística, nas suas várias valências e tipologias, dificilmente consegue alicerçar-se na sociedade portuguesa.

Apesar das ambiguidades, mercadorização e irresponsabilidades do papel do Estado, as instituições de formação têm conseguido, com muito esforço e dedicação, incrementar o número de crianças, jovens e adultos que procuram este tipo de formação, o que é um indicador relevante sob vários pontos de vista, resultante de uma actividade educativa e artística intensa que se afigura, apesar da pouca atenção que lhe é dado pelos media, como um dos setores mais dinâmicos da sociedade portuguesa. Por isso, importa, ser exigente em relação ao Estado, o(s) governo(s), para que cumpra o seu papel e não esteja permanentemente a rasgar os contratos que faz com as pessoas e as instituições. A crise não explica tudo.

in Carta aos Sócios, apemnewsletter, janeiro 2015