terça-feira, 11 de novembro de 2014

As escolas como laboratórios de cultura, de criatividade e de cidadania


As artes em geral e a música em particular são áreas de saber e do conhecimento que aliam competências diversificadas de natureza multifacetada. No plano das técnicas, das estéticas, mas também históricas e culturais e intelectuais. Para além disto, como refere Josep Marti a música, tal como outras modalidades artísticas no âmbito das artes performativas, é muito mais do que uma forma de arte. É uma forma de construção identitária, individual e coletiva. Esta dimensão individual e social é também salientada por José António Abreu (fundador do “El Sistema” na Venezuela) que defende que aprender a tocar e tocar numa orquestra é algo mais do que apenas estudos artísticos. São exemplos de escolas de vida social. Cantar e tocar em conjunto significa coexistir intimamente.

O que a história da educação artística e musical tem demonstrado no quadro do sistema de ensino em Portugal é que, apesar de toda a retórica existente, tem sido difícil “acomodar” as áreas artísticas no currículo das escolas do designado “ensino regular”, e mesmo no âmbito do ensino especializado. Esta dificuldade tem conduzido a que, durante um determinado período histórico, com reflexos ainda na contemporaneidade, se procurou afirmar a pertinência da inclusão desta área na escolaridade através de uma dupla argumentação. Por m lado, argumentos situados na “importância da música na formação integral das crianças”, e, por outro, na procura de que as disciplinas artísticas e musicais fossem iguais às outras disciplinas. É interessante ler alguns textos da década de 70 e 80 que afirmam que finalmente a disciplina de música, por fazer exames, era uma disciplina iguais às outras. E isto conduziu a diferentes tipos de problemas que ainda hoje existem no interior da relação Artes-Música-Educação-Currículo-Escolas.

Ora o que tem estado aqui em causa pode ser interpretado de uma dupla forma. Por um lado, a não assunção, por parte dos profissionais do sector – músicos, docentes, escolas de formação de professores, apesar de alguns desenvolvimentos muito interessantes de norte a sul do país e incluindo as ilhas - das particularidades desta área de saber e do conhecimento, e por outro, as dificuldades da administração, nos seus vários planos, de assumirem, como escrevi noutro local, “lógicas diferenciadoras como forma de construção de igualdades”.

Por outro lado, e sob o ponto de vista concetual assiste-se à dificuldade na assunção desta área formativa como “disciplina indisciplinada”, para utilizar as palavras de Denyse Beaulieu, em que nem tudo pode ser medido e avaliado, como refere António Nóvoa e Collin Durant, por exemplo.

Com efeito, “os mundos da educação artística e musical”, parafraseando Howard Becker, são constituídos por redes diferenciadas de interseções que cruzam a formação, a criação, a receção, a produção e a difusão artístico-musical, ligando diferentes contextos, das instituições formativas, aos espaços domésticos e às comunidades como falam Alexandra Lammont e Nita Termmerman. Convivem entre contrários, numa “estrutura rizomática” entre o estrutural e o anti-estrutural; o ortodoxo e o subversivo; o nacional e o local; o institucional e o anti-institucional; os interesses, valores e objetivos conflituais, de que fala Brent Wilson.
Apesar das tensões ainda existentes, veja-se a recentração no “ler, escrever e contar”, felizmente diferentes tipos de projetos existentes no terreno tem vindo a alterar algumas das perceções dominantes, e, quer no interior dos agrupamentos de escolas, quer na relação entre as escolas do ensino regular e do ensino especializado, as artes e a música afiguram-se como uma dimensão fundamental do trabalho formativo.

Projetos que vêm demonstrando que o que torna a educação e a formação das crianças, dos jovens e dos adultos mais rica e plural é a existência de escolas pensadas e organizadas como “laboratórios de cultura e de cidadania”, como refere Anthony Everitt. Laboratórios de cultura e de cidadania que contribuam decisivamente para a preparação de cidadãos aptos para viverem em tempos complexos e incertos, com competências diversificadas, capazes de produzirem ideias criativas e inovadoras, aptos para enfrentarem e responderem a novos e diferentes tipos de desafios e de riscos.

São tempos difíceis estes em que vivemos e em que também as artes e a cultura na escola parecem estar, mais uma vez, colocadas à margem e numa situação problemática de empobrecimento quer para os professores quer para o desenvolvimento de uma formação que se quer rica e plurifacetada. O recentramento das escolas como “laboratórios de cultura, criatividade e de cidadania” poderá constituir-se como um desafio que possibilite a abertura de janelas de esperança e de (re)encantamento para todos e todas que no dia a dia se confrontam com os paradoxos e os cinzentismos dos dias.

in apemnewsletter, junho/julho 2014

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