O que
considera ser a interdisciplinaridade no contexto do ensino especializado da
música?
É pensar um conjunto de características que
fazem parte deste tipo de formação artística. Isto é, desde sempre qualquer que
seja a área de formação artística ou musical que engloba diferentes tipos de
saberes e problemáticas. Problemáticas de ordem técnica e estética, tendo em
contas os diferentes tipos de obras e dos períodos da História da Música; de
ordem geográfica, com a sua dimensão histórico-sociais) a música não é
independente do contexto histórico-social em que foram criadas); de ordem
económica e política; e de ordem educativa e artística, cada professor e cada
modelo de formação tem características próprias dependendo dos posicionamentos
e referenciais que os professores têm. Por outro lado, as aprendizagens
artísticas situam-se numa zona de fronteira em que engloba saberes técnicos e
artísticos que são questões de natureza muito diferentes, da apropriação de
códigos e convenções que, consoante aos períodos da História da Música e
diferentes tipos de culturas musicais, tem diferente maneira. Essa apropriação
também envolve questões relacionadas com a tradição e a inovação, dentro de uma
dimensão histórica e social em contextos diferenciados e mudando esses códigos
e convenções também muda-se outro tipo de coisas e na arte houve sempre este
confronto entre a mobilização de saberes que fazem parte da história é
fundamental que se conheçam, mas ao mesmo tempo a transgressão desses códigos e
convenções. Isso tem consequências profundas do ponto de vista de se pensar o
trabalho formativo porque, por um lado, estes tipos diferentes de saberes
envolvem ou implicam também diferentes tipos de competências que são
necessárias abordar e trabalhar com comunidade educativa: as questões de ordem
mais técnica (a apropriação dos códigos e convenções), mas a técnica não é tudo
e/ou é muito pouco; as questões de natureza estética; as características de
natureza social (relacional); as de natureza artística; e competências de
natureza conceptual (ideia que se defende quando se faz uma interpretação
artística). Estamos num campo complexo, quer do ponto de vista das
problemáticas associadas às características deste tipo de ensino, quer também
do ponto de vista das competências que são precisas desenvolverem. Qual o
problema em relação ao isto: por um lado há um certo desfasamento o que são as
características de pensar as artes, a música e a formação, e por outro lado, a
tendência desde meados do século de uma grande racionalização do ensino, ou
seja, transformar tudo isto em conteúdos. Esta racionalização do ensino, que se
foi importante para poder acertar algumas questões (cita António Nóvoa), no
entanto acabou por conduzir aquilo que o Edgar Morin designa pela
híper-especialização, o que transformou isso, fragmentou e atomizou os saberes,
as áreas, o que tem feito com que esta interligação de aprender o que é
complexo acabou por predominar sobre a dimensão de uma perspectiva mais
interactiva dos vários saberes. Desde ponto de vista, estamos num contexto e
numa situação muito paradoxal porque o pensar a música como arte de espectáculo
que é, é pensar numa dimensão em rede com fala o Howard Becker: não é possível
pensar a dimensão e formação artística sem ser em rede. E por outro lado, a
escola (que também inclui os conservatórios de música) acabou por transformar o
saber e o conhecimento em saber escolar, o que muitas vezes não tem nada a ver
com a dimensão dos saberes (cita Lise Demailly). E neste sentido, esta ideia de
retomar e re-olhar para a questão da interdisciplinaridade é um pouco religar
os diferentes saberes que existem em um determinado tipo de contexto e, deste
ponto de vista, é um elemento fundamental por uma razão muito simples: ou
estamos no domínio de uma formação artística ou estamos no domínio de uma
formação técnica?! Precisamente porque há esta ideia da racionalização do
ensino porque é mais fácil talvez ensinar e depois poder ser avaliado e essas
dimensões todas, mas esquecemo-nos de uma dimensão fundamental é a do
maravilhamento (cita Colin Durrant), isto é, aquela coisa que nunca pode ser
medida por testes, por exames, que é aquilo que nos faz arrepiar a pele.
Portanto, desde ponto de vista, e tendo em conta as problemáticas actuais e
toda a discussão que existe em termos europeus e não-europeus relacionadas com
os novos perfis dos estudantes e das escolas, tendo em conta as complexidades
do tempo actual, é precisamente procurar voltar a um tipo de trabalho mais
“renascentista” (cita Mara João Pires), voltar a esse sentido mais
interdependente dos diferentes saberes, é fundamental que haja um trabalho
muito grande de quebrar esse excesso de racionalização e colocar no centro do
trabalho formativo e artístico as criatividades, ou colocar no centro o
trabalhar aquilo que não se conhece, e isso molda, do meu ponto de visto,
completamente tudo o que está expresso quer em termos legais, quer em termos de
uma grande parte do trabalho que é feito.
Identificou
no seu percurso enquanto investigador/professor algum documento oficial da
tutela (decreto-lei, portaria, circular, programas oficiais, etc.), sobre o
ensino especializado da música, que revelasse um sentido interdisciplinar?
Qual(is)?
É ao mesmo tempo uma pergunta fácil e
difícil de se responder, assim um pouco paradoxal, porque normalmente a
legislação que existe decorre muito do confronto entre duas perspectivas: por
um lado, uma perspectiva em que se vê o EEM como o ensino e a educação em geral
e portanto toda a legislação que existe tenta de alguma maneira adequar-se a
esse lado mais geral da educação, e por outro lado, uma outra tendência também
muito forte, que é o chamar a atenção para que esse tipo de ensino tem
características próprias e seria necessário e fundamental que a legislação
contemplasse isto. Portanto, tem sido sempre, desde os anos 70 (que é o período
que eu tenho estudado com mais profundidade), tem existido este confronto. Ora,
existindo este confronto, o que que acontece? De uma maneira geral, esta
questão da interdisciplinaridade aparece numa determinada época mas o Estado,
ou em documentos que o ME promove que sejam feitos alguns estudos ou algumas
reflexões de natureza mais teóricas, mas a legislação de uma maneira geral
acaba sempre por fechar o currículo em disciplinas. Portanto, o fechar em
disciplinas, mesmo que existem algumas portarias ou circulares que são enviadas
(nem tanto em Decretos-Lei) expressando a necessidade e a importância dos
projectos da questão da interligação dos diferentes saberes, mas na prática
isso acaba por ser completamente impossível pela fragmentação que existe em
termos de currículo, pela importância que se dá e se atribui a cada uma das
disciplinas, e, por outro lado, pela relevância que se dá pelos modos de
avaliação, em particular na formulação de determinados tipos de exames e de
avaliações que não se compadecem muito com essa estrutura muito hierarquizada
em termos do currículo, com uma estrutura muito fragmentada. Acresce a isso que
tem sido sempre muito difícil a compreensão e a falta de investigação no
assunto, que é: como é que nós avaliamos a dimensão prática de um trabalho.
Estou a falar de outro tipo de coisas de natureza artística: como é que se
avalia isso? E temos andado a fugir como o diabo da cruz em relação a estas
questões centrais porque é mais cómodo perceber que se o aluno (em FM) consegue
fazer o ditado certo, quantas notas erra, soma-se, divide-se e se dá uma
determinada nota. E esquecemos outras dimensões talvez aqui mais importantes do
que estas e o ME tem pouco saber e há determinados tipos de opções políticas
que têm sido feitas e que o EEM não tem estado muito presente, porque os
problemas do sistema educativo são tão complexos que esta é uma dimensão
relativamente pequena. Por outro lado, as políticas não é só aquilo que o ME
manda para as escolas: as escolas também têm e fazem políticas expressas no PEE
do mesmo modo que o professor também tem uma acção política, isto é, os modos
como ele entende o futuro e como é que este futuro é feito e trabalhado no
presente. Dentro desta questão, os programas que existem também são uma coisa
muito paradoxal porque não existem programas oficiais: existem os programas de
1971, houve algumas reformulações de ATC nos anos 80, da FM mais ou menos e dos
instrumentos também muito mais ou menos, ou seja, nós estamos aqui, até certo
modo, numa ficção em termos dos programas porque quem de facto faz os programas
ou são as escolas que, no seu todo, fazem os programas tendo em consideração um
determinado tipo de coisas ou, no limite, cada professor tem o seu programa. Se
se quisesse fazer uma avaliação do trabalho ou dos programas que existem, seria
uma trapalhada imensa porque não há nenhum modelo enquadrador, mas sim uma
referencia virtual, que na prática são as escolas os professores que o fazem.
Portanto, deste ponto de vista, as escolas e os professores não são
indiferentes à aquilo que eu disse anteriormente: num determinado modelo há
determinados modelos e, portanto, as questões que se colocam são que esta ideia
de interdisciplinaridade, embora esteja sempre presente, acaba por de certo
modo estar sempre ausente, porque é difícil imaginar um projecto que existem
nas várias escolas do ensino público e não só, como por exemplo a EMCN que
tinha lá o Atelier de Ópera que no ano passado ou há dois anos desenvolveram um
trabalho com o Bruno Cochat com as crianças, fizeram o Dido e Eneias (Purcell),
se não me engano, etc... O trabalho é um trabalho que engloba várias áreas do
saber, e que é interdisciplinar por ele próprio. Agora a questão que se coloca
é: será que (e o resultado é um resultado interdisciplinar, pois envolve
música, envolve movimento, teatro, posição em palco, um conjunto alargado de
competências) este trabalho artístico resultou de um trabalho interdisciplinar
em relação às disciplinas do currículo? E eu diria que tenho algumas dúvidas...
nuns casos sim, noutros casos não. E a maior parte das vezes o trabalho
interdisciplinar acaba por ser quase da responsabilidade de quem está a dirigir
o espectáculo (o director artístico, o professor, etc.). Portanto, fala-se
muito disso mas, numa maneira geral, acaba por ser difícil até porque esta área
artística particularmente da educação artística é uma área que tem estado muito
ausente da investigação em termos universitários e, portanto, por essa razão
também, de algum modo, isso acaba por ser muito o reproduzir o mesmo do mesmo
em vários sítios. Felizmente que agora começam haver um conjunto alargado de
pessoas a poder outras visões sobre o assunto porque é fundamental pegar-se na
prática, eu diria que, isto não é muito complicado: é voltar às questões
essenciais que são o trabalho artístico. E se se voltarmos a isso, vamos
encontrar provavelmente algumas possibilidades de se pensar em organizar o
trabalho formativo porque a arte tem ela própria um conjunto de característica
não são isoladas no seu conjunto. Eu diria para sintetizar que, da parte do ME
e da parte de um conjunto de entidades públicas, ficam todas muito satisfeitas
quando vão assistir aos concertos com crianças e jovens e vêem trabalhos que,
supostamente, são interdisciplinares, mas na prática tem havido muito pouco
trabalho, quer de pensamento, quer de acção, que articule esses saberes. E pode
não ser um espetáculo de ópera ou teatro musical, basta pensar, por exemplo,
num coro, ou num grupo instrumental de cordas e de sopros, já aí tem vários
tipos de saberes que estão englobados, mas isso depois não é suficientemente
explorado. Portanto, eu diria que há uma riqueza intrínseca no trabalho
artístico, depois do ponto de vista da educação e da formação não é
suficientemente explorado, e nem está expresso, quer em termos legais, quer em
termos dos programas, embora para ser justo e rigoroso, há já um conjunto
alargado de professores que, por sua própria iniciativa e com as suas próprias
características, já procurem desenvolver esse trabalho, quer no interior da
sala de aula, que nos projectos em que estão envolvidos.
Identificou
no seu percurso enquanto investigador/professor algum paradigma e/ou
experiência de ensino, no ensino especializado da música, que revelasse um
sentido interdisciplinar? Qual(is)?
O Atelier de Ópera já respondido
na questão anterior que procura desenvolver este tipo de trabalhos, mas há
vários. Curiosamente, eu diria que é até mesmo mais fora, que é uma coisa
tramada, que é fora da escola que estas coisas acontecem mais. Ora bem, isso
que dizer uma outra coisa que é isto: a aprendizagem artística e musical não se
faz só no contexto da escola, da sala de aula, mas também fora, nas relações e
nas interacções que os alunos estabelecem com a comunidade artística, quer seja
numa banda filarmónica, a família ou o grupo de amigos, etc. E o que é curioso
é que há aqui um paradoxo: supostamente as escolas do EEM deviam ser os centros
e os laboratórios de cultura, de experimentação e de criação. Tem sido poucas
as experiências que eu conheço em que se peçam a jovens compositores para
escreverem, criarem peças, obras para que os estudantes possam fazê-las em
conjunto e, desde modo, ir articulando os saberes. E, às vezes, é fora destes
contextos onde estas coisas aparecem mais, quer em grupos corais de crianças,
quer também em algumas instituições culturais que têm uma ligação com as artes
(Fábrica das Artes do CCB), onde de facto começam emergir outro tipos de
projectos. Ora bem, pode ser pensar assim: ok, então porque as escolas não
fazem isto? É porque ninguém quer fazer? Porque os professores não são
artistas? Eu penso que aqui não é só isso: há aqui uma questão que é de
natureza burocrática, por um lado, e os modos de organização da escola. A
natureza burocrática quer dizer que, do ponto de vista do modelo de escola que existe,
há esta compartimentação e muitas vezes é difícil pois as escolas nem sempre
têm a autonomia para poderem dizer: durante esta ou duas semanas não há aulas
nem de FM, HM e ATC e toda gente vai contribuir para desenvolver um determinado
projecto. Isso é algo que não é muito fácil de se fazer num contexto, daí a
razão burocrática no contexto deste tipo de trabalho (o entrevistado referiu
uma escola que já não existe, a Escola Profissional de Música de Almada, onde
acontecia este tipo de projectos). Há escolas que ainda vão conseguindo fazer
isso, não sendo profissionais, mas através de um grande esforço. Até porque
depois há outra dimensão também de natureza burocrática e política que tem a
ver com a própria relação que os professores estabelecem com as escolas, e isto
tem sido uma coisa muito problemática desde sempre, e ainda agora não está
resolvido o quadro das escolas. E, portanto, havendo uma grande instabilidade
em termos do trabalho dos professores, é claro que eles vão ter de trabalhar em
mais que um sítio para poderem ter algum vencimento razoável ao fim do mês, o
que nem sempre estão disponíveis para desenvolver esse trabalho que implica de
facto um trabalho de 6 ou 7 horas ali com as crianças ou jovens. Há aqui uma
mistura de questões de natureza política, burocrática, académica, profissional
que muitas vezes também são impeditivos. No entanto, eu diria o seguinte:
quando se quer fazer uma coisa, faz-se! E eu penso que o problema maior está no
modelo que ainda existe que é um modelo que não é centrado em projectos, nem no
desenvolvimento e na articulação dos diferentes saberes que estão inerentes ao
trabalho artístico e à formação e à aprendizagem musical no seu sentido mais
alargado. A partir do momento em que as escolas se unem torno da realização de
um ou dois projectos grandes por ano, o próprio ME vai ter de encontrar
formulações para poder adequar, porque normalmente o que acontece é que a
legislação vem sempre depois do que acontece nas escolas. Aí as escolas e os
professores têm um poder muito grande de modo a poderem, se assim o entenderem,
de possibilitar e engendrar projectos que articulem esses vários saberes. Vai
havendo, felizmente, onde nos últimos 10, 15 anos há uma mudança completa, e
felizmente para melhor nas diferentes escolas do EEM, mas ainda não se
conseguiu (do meu ponto de vista) construir um espaço que os conservatórios
sejam um território, um laboratório de cultura e de experimentação, sejam
laboratórios que as crianças e jovens vão de facto ali viver artisticamente (cita
João Freitas Branco, 1976), porque não é possível de outra maneira. Há aqui uma
outra questão que é paradoxal, e quem me tem ouvido dizer isso manda-me logo
para Marraquexe: temos aqui um equívoco muito grande neste tipo de escolas, no
meu ponto de vista, que é pensar que formam artistas. Não formam. E isso já não
sou só eu que o digo: há um trabalho engraçado já antigo, de 1976, de uma
pianista americana que fez um artigo que diz como é que a pianista se tornou
professora e fez uma reflexão muito aprofundada sobre esse lado de ser
professora, e uma das coisas que ela diz, o que é muito curioso, é que nas
escolas de facto ensinam-se as técnicas, ensinam-se as histórias mas não se
formam artistas: formam-se pessoas. E enquanto as escolas estiverem centradas em
formar músicos, que nós não sabemos muito bem o que é que é, e depois há aqui
os outros problemas complexos que é, de cem crianças que entram no primeiro
ano, saem dez ou nove, ou cinco ou seis, que é uma coisa terrível porque depois
o que se faz aos outros? Enquanto não houver esta mudança e nos centrarmos na
cultura, nas artes, no fazer artístico, na criatividade, no desenvolver
projectos... Claro que isso depois implica a aprendizagem técnica, histórica,
da análise, da FM, mas de uma maneira completamente diferente: a partir de um
projecto eu posso estudar tudo durante um, dois ou três anos. Imagina alguém
que é convidado para fazer um teatro musical pode ser um ano a andar em volta
daquilo e todos os conteúdos podem ser dados em volta desse trabalho.
Considera
que a interdisciplinaridade pode ser utilizada como instrumento para a eficácia
do ensino e da aprendizagem no ensino especializado da música? De que maneira?
Na possibilidade de haver uma reconfiguração do currículo do ensino
especializado da música, considera que o novo modelo deveria ter uma vertente
mais interdisciplinar do que o actual? Porquê?
A resposta é sim, por aquilo tudo
que eu tenha dito até agora não vejo outra maneira. Uma das dificuldades,
estando há alguma tenho envolvido na questão do pensar o currículo, uma das
dificuldades é conseguir-se quebrar os paradigmas que estamos habituados a
viver. O António Pinho Vargas tem uma expressão muito curiosa que é: quando
muda um paradigma e nós continuamos a ver da mesma maneira, não é possível. Ora
bem, neste momento, quer o exercício da profissão de músico, quer a questão da
formação artística em geral e formação musical no sentido lato em geral, é uma
coisa muito complexa, ambígua, policentrada, há gente que toca na orquestra
sinfónica mas que também acompanha músicos populares, faz música para spots
publicitários, ou seja, há aqui uma grande diversidade de modalidades de
trabalho que existem neste momento em relação ao exercício da actividade de
músico, possibilidades essas que cruzam áreas, tipologias musicais, modos de
organização, tanto instituições públicas como privadas. Digamos que, este lado
de pensar uma carreira relativamente estável, não há nenhuma. Pode-se pensar
mesmo num músico ou numa banda militar, que há tantas no caso dos sopros, ou os
músicos de uma orquestra sinfónica, não há nenhum que não seja professor, que
não tenha os seus quartetos, ou seja, há aqui aquilo que o Pierre-Michel Menger
fala de uma das características das actividades profissionais das artes de
espectáculo que é a sua multi-actividade: são vários tipos de actividades.
Portanto, perante isto como é que não se consegue pensar e organizar um
trabalho de formação que permitisse desde que as crianças entram uma
perspectiva alargada dos mundos das músicas, das técnicas. No caso do ensino do
instrumento, aquilo é um ensino mais um ensino técnico que um ensino artístico.
Aliás, não deixa de ser curioso nas entrevistas que eu fiz quando fiz o
trabalho sobre os conservatórios, houve um dos professores que diziam: bem,
aqui ensinam-se as técnicas, a musicalidade é para outros níveis de ensino. Ou,
mais recentemente no trabalho, da Clarissa Floreto e que foi feita em Inglaterra, uma das
dimensões quase que central que os professores de violino faziam era ensinar os
meninos a técnica. Ora bem, essa questão nunca foi muito simples ao longo da
história do ensino da música, mas a questão que se coloca é: estamos centrados
nisto ou estamos numa perspectiva mais artística? Se estamos numa perspectiva
de facto mais artística, há um conjunto de coisas que são mais relativizadas e,
portanto, o que significa que nesta fase em que se está de facto a discutir o
perfil das crianças e dos jovens e como é que a escola pode responder às
questões de natureza social, económica, cultural que existem nas sociedades
contemporâneas, é fundamental que estas escolas também do ensino artístico
façam esta reflexão e dentro da organização curricular haja a possibilidade, eu
não diria em todo o currículo, mas que haja um foco muito centrado na questão
dos projectos. Há alguns anos atrás, havia a ideia dessa questão dos projectos
mas que depois se terminou com ela na altura do Ministro Crato e que agora se
está um pouco a retomar. E as escolas artísticas são um centro privilegiado
para fazer essas experiências, para montar e demonstrar. Portanto, o currículo
nunca pode ser uma coisa separada por disciplinas estanques em que o professor
de instrumento acusa o professor de formação musical, de história da música, de
ATC que não ensinam as coisas que ele precisa depois para a compreensão da
música. E o que é curioso é que temos andando um pouco nisto. Embora haja
algumas experiências muito interessantes, mas o que ainda é dominante é um
determinado paradigma que já está completamente desactualizado pela força que
as questões contemporâneas se colocam. Um bom exemplo, há algumas semanas, foi
que os estudantes de ATC do secundário do Conservatório de Música de Aveiro
apresentaram as suas composições: olha que coisa mais fantástica. Porque que
isso não é uma prática corrente? E porque isso não se interliga, se integra com
o instrumento, com a FM, com a história da música, com outras coisas. Isso para
dizer que neste momento tem havido uma tensão muito grande entre os modelos
tradicionais, até porque são mais fáceis. E o próprio ME, por razões
diferenciadas, também não percebeu isto. Há aqui um controlo grande do poder às
diferentes peças que existem no sistema educativo, esquecendo que, qualquer que
seja a formação que se tenha, é uma formação que se confronta sempre entre dois
pólos que são paradoxais: por um lado, entre aquilo que se conhece, da
história, das técnicas, etc., mas também em relação àquilo que não se conhece.
O currículo tem que se centrar, no meu ponto de vista, dentro dessa ideia de
que isto é para aprender coisas que nós não conhecemos. Isto tem a ver com as
crianças e jovens mas também tem a ver com os professores, porque senão nós
estamos sempre a repetir a mesma coisa num tempo em que é preciso ter um rigor
muito grande entre a tal tradição, fundamental, mas, ao mesmo tempo, preciso
criar pontes para aquilo que não se conhece. Ora, o ensino artístico seria em
geral, e no campo da música em particular, seria um campo privilegiado para
isso, mas estamos muito mais centrados naquilo que se conhece do que aquilo que
não se conhece. Portanto, desse ponto de vista, de facto, é fundamental pensar
se organizar o currículo quanto mais não seja numa determinada fase do
currículo, imagino iniciações e ensino básico numa maneira, e o ensino
secundário terá aqui outras características, mas também ter uma forte
componente de desenvolvimento de projectos, porque aí, provavelmente, a criança
e o jovem vai ter de estudar muito mais para poder tocar uma parte difícil que
foi criada numa peça teatral ou num jogo, e por outro lado é preciso que o
currículo se abra à criação artística contemporânea. Está-se fechado ainda, não
tanto direi no século XIX, mas ainda se pergunta: ok! Onde é que estão as obras
dos compositores contemporâneos no contexto da aprendizagem musical dos
conservatórios? Tenho dificuldade em dizer que estão lá presentes
continuamente, para já não falar em onde está a música portuguesa no contexto
da formação dos conservatórios. Também está aí uma dificuldade em perceber.
Outra coisa que tem a ver com o currículo é: onde estão as partituras nos
conservatórios? Ainda continuamos a funcionar à base da fotocópia, isso
significa que os autores não vão receber dinheiro pelo seu trabalho, significa
que os direitos conexos também vão estar ausentes, significa que andamos aqui
num certo jogo que as actividades musicais e as suas implicações acabam por
ficar muito fora daquilo que depois as crianças e os jovens vão encontrar no
contexto concreto da sua prática artística nas sociedades contemporâneas, quer as
mais urbanas ou outras maneiras.
Considera
que a disciplina de Formação Musical é um terreno fértil para experiências
interdisciplinares? Porquê? Na sua opinião, quais são as principais falhas e o
que pode ser melhorado para que a Formação Musical proporcione uma formação
mais sólida e abrangente das competências próprias do "ser músico"?
Estamos numa outra dimensão que,
de um modo geral, na prática posso afirmar isso: se há esta preocupação de se
pensar uma forma articulada os diferentes saberes que existem nas práticas
artísticas, qualquer área disciplinar tem a sua dimensão que se liga com os
diferentes saberes. No caso da FM, o que se coloca aqui também é um problema de
natureza política e de currículo, porque ainda se está a pensar o currículo em
que a centralidade está no instrumento. Felizmente já se deixou um pouco
algumas das designações dos anos 70 em que falavam da história da música, do
coro, da FM e da composição como disciplinas anexas, mas ainda, embora isso não
esteja expresso na legislação (a legislação é uma coisa, o terreno e a prática
são outra), está muito expresso num determinado paradigma em que, se eu vou
estudar um instrumento, porque é que eu vou estudar as outras coisas. Ora bem,
isso significa que não se percebe bem o que é estudar um instrumento, porque eu
não posso tocar uma peça de quem quer que seja só lendo as notas que lá estão,
só tocando o que lá está: isso não é música, pois podemos pôr um computador a
fazer isso. A música é muito mais do que isso, e portanto há aqui este primeiro
problema, que traduz-se em coisas que eu vou ouvindo no sentido que: “pois
(entre colegas), ele não sabe fazer esta passagem porque na FM está a falhar
porque ele não sabe ler esta parta da música e aqui há um problema que eu tenho
de fazer o trabalho de FM”. Isso tem a ver com esta ideia da subsidiariedade das
disciplinas em função do centro que é a aprendizagem do instrumento e não a
aprendizagem da música, que são coisas de natureza diferente. Isso significa
que, por um lado, a história do ensino desta disciplina tem demonstrado que
este lado de subsidiariedade existiu sempre, embora tenha havido alguns
momentos em que se procurou quebrar algumas dessas dimensões. Por exemplo, na
reforma de 1971, com a Constança Capdeville que introduziu modificações no
antigo Solfejo incluindo as peças que eram trabalhadas (a música que se fazia).
Eu lembro que quando andava lá no conservatório em Aveiro que uma das coisas
fantásticas que apareceram na altura que era denominado o Solfejo Contemporâneo
(nome em francês), com uma linguagem mais próxima da linguagem contemporânea,
em vez do Fontaine que tínhamos de andar ali para trás e para frente. O que era
mais curioso era que já andávamos na lição não sei das quantas do Fontaine na
Educação Musical (antigo Solfejo), mas chegava ao instrumento e falhava a tocar
aquilo, aquele mesmo problema de natureza rítmica ou de natureza de leitura. E
já nesta altura se perguntava: mas porque eu estou a estudar Fontaine? E dentro
desta discussão, de facto, houve um trabalho muito interessante a partir do
momento em que João Pinheiro veio de França e que vem introduzir algumas
modificações do ponto de vista de trabalhar a FM mais centrada nas obras
musicais, não tanto no intervalo a, b, c ou d, ou na identificação do acorde x
ou y de uma forma isolada, mas trabalhar a música no contexto. Ou seja,
aprender os acordes ou a cadência ouvindo uma música, olhando para uma
determinada peça, etc. Mas, não deixa de ser curioso que há aqui um elemento
que falha nisto completamente que é a questão da criatividade quer na FM quer
nas outras áreas. O caso do instrumento: eu quando estou a tocar um
instrumento, eu tenho de estar a ouvir o que estou a tocar. Eu não posso só
estar ai a ter um desempenho maquinal e robótico do trabalho. Eu quando estou a
compor, eu tenho de estar a pensar musicalmente, eu tenho de procurar estar a
ouvir os sons. Deste ponto de vista, está aqui um trabalho colectivo em relação
a cada uma das áreas, embora a área da FM esteja mais centrada para determinado
tipo de trabalho de natureza mais auditiva. Mas, o que é curioso e móvito de
reflexão é que não se fomenta o tocar de ouvido, não se articula o tocar de
ouvido com a leitura. As coisas estão mais centradas na dimensão da leitura do
que da audição e depois obriga-se a que a criança e o jovem faça ditados de
ouvido, o que é uma coisa também muito paradoxal. Seria muito interessante, no
meu ponto de vista, quando houver alguma vez alguma modificação nos programas
mais globais da FM que esta dimensão da criatividade, do tocar de ouvido fosse
um elemento fundamental da aprendizagem do ritmo, das texturas, da harmonia,
dos intervalos, da progressão dos acordes, e isso é uma coisa que não está
presente e que é uma coisa que me perturba profundamente porque a pessoa tem de
fazer um ditado, a pessoa tem que estar a ouvir. Ora, eu para estar a ouvir,
tenho que aperceber como é aquele fenómeno, e eu para perceber aquele fenómeno
não é o fenómeno que vou percebê-lo, que não tenho lá a partitura à frente
exclusivamente para fazer este ditado. Se eu não faço este ditado, se eu não
desenvolvo as competências de tirar músicas, tocar músicas como se faz no jazz
e nas músicas tradicionais ou pop, muito dificilmente isso se consegue. Isso já
para não falar de uma outra coisa que também é muito importante e que também
não está muito claro, quer na FM ou nas outras disciplinas, que é a
aprendizagem entre pares, que fala a Lucy Green. Estamos muito centrados ainda
na figura do professor que ensina e da criança que aprende, e isso já não é bem
assim. Embora, por cada vez mais, as crianças podem aprender de formas muito
diferentes: temos o youtube que, para as questões de natureza mais técnica, as
crianças e os jovens não precisam do professor para nada, pois há um conjunto
de coisas disponíveis que se pode aprender fora da escola. Embora, o professor
cada vez tenha um papel mais importante precisamente para poder ajudar a
compreender e a manejar aquela informação que nunca no youtube ou onde quer que
seja se pode aprender. E desse lado, esse trabalho mais colaborativo, o
trabalho mais inter-pares, em que eu levo a peça que estou a estudar no
instrumento e peço os meus colegas para tocarem de ouvido, que eu faça ali um
arranjo mobilizando os saberes que vem ali da ATC, ou que faça uns arranjos com
uma progressão relativamente simples e que eu mobilize o ciclo das quintas como
mobilizava o Bach ou o Mozart, e ter de pensar: agora vamos ter cantar, tocar e
inventar uma música a partir daí, ainda são práticas que não são rotineiras,
comuns, depende muito daquilo que o professor acaba por fazer. Há aqui esta
necessidade de re-olhar para isso tudo e colocar a centralidade nas questões
dum ensino mais criativo, dum ensino menos ligado à questão dos métodos, dos
manuais. É certo que já não estamos mais no tempo em que, para se tocar
saxofone na banda tinha de chegar na lição não sei quantas do Artur Fão, embora
o Artur Fão na altura em que eu estava a estudar também fosse um dos modelos,
mas isso tem muito a ver com este lado da racionalização, isto é, obriga-se que
algumas crianças e jovens tenha um pensamento ou façam uma leitura abstracta de
um determinado tipo de realidades artísticas que ainda não conseguem. Portanto,
este lado de trabalhar contextualmente é feito através da música, e da música
que existe, e não tanto em começar do mais simples e ir para o mais complexo.
Isso foi uma determinada filosofia que, no meu ponto de vista, neste momento a
realidade não é bem assim, porque nós aprendemos de múltiplas maneiras. Às
vezes estamos a fazer coisas complexas do ponto de vista artístico e são
simples do ponto de vista técnico, ou estamos a fazer coisas complexas do ponto
de vista técnico que do ponto de cista artístico aquilo não interessa para
coisa nenhuma. Portanto, esta articulação e este pensar é, do meu ponto de
vista, uma das falhas que existe precisamente para poder que a FM, dentro do
seu lado e importância mais particular, que é a questão de conhecer música,
conhecer repertório, compreender e analisar a música dentro do contexto de
repertório, ajudar em formar ou ter um ouvido artisticamente informado para poder
compreender uma música, não só do ponto de vista da “pele” (o superficial), mas
perceber como é que aquela música funciona, é fundamental que se voltasse
novamente para as questões artísticas, e a FM não é uma disciplina técnica,
também é uma disciplina artística, e penso que por isso poderia ajudar a
limitar algumas falhas, até porque não deixa de ser curioso a existência da FM
e nem sempre alunos que são bons a FM são bons a instrumento, e vice-versa. Há
aqui qualquer coisa que não funciona, e é preciso perceber o que é que não
funciona, e não é, naturalmente, a criança e o jovem. Também pode ser, mas a
maior parte das coisas não funcionam porque os modelos não estão adequados às
pessoas e concreto, nem ao trabalho em concreto. No caso da educação artística,
também há uma tendência muito grande de uniformização e deveria ser ao
contrário: devia se fomentar e a FM aí tem um papel importante de fomentar a
individualidade, fomentar aquilo que é particular de cada pessoa em concreto.
Há crianças e jovens que têm uma capacidade auditiva fantástica em que se toca
uma melodia e eles captam logo, mas têm dificuldades depois do ponto de vista
técnico, de pensar conceptualmente o que é aquilo, ou de ler, e portanto para
estes o trabalho terá de ser naturalmente diferente daqueles que têm mais
facilidade de ler, mas têm dificuldade em ouvir e a compreender o que se passa
numa análise musical auditiva. Esses equilíbrios são preciso encontra-los e
que, do meu ponto de vista, de uma maneira geral, não é uma coisa comum porque
lá voltamos à questão dos conteúdos (ritmo, harmonia, acordes, etc.) e acaba-se
de certa maneira por ficar também muito dependente de uma certa funcionalização
em relação às outras áreas, particularmente em relação ao instrumento, e muito
dependente ainda daquilo que virtualmente se pensa que é o programa que é
preciso cumprir e dos exames que é preciso fazer.
Entrevista realizada por Nathanael Júnior, no âmbito do trabalho de mestrado intitulado"A disciplina de Formação Musical e a sua componente interdisciplinar: uma reflexão". Universidade de Aveiro
Entrevista realizada por Nathanael Júnior, no âmbito do trabalho de mestrado intitulado"A disciplina de Formação Musical e a sua componente interdisciplinar: uma reflexão". Universidade de Aveiro
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