Introdução [1]
Como sabemos um coro
apresenta diversos níveis de ação, desde um nível micro até o macro,
proporcionando que o indivíduo se integre às dimensões pessoal (motivação),
grupal (relações interpessoais), comunitária (melhora da qualidade de vida),
social (inclusão) e política (participação democrática nas ações públicas),
(Mathias, 2001), bem numa comunidade de praticas e de aprendizagens que
contribuem não só para o desenvolvimento pessoal mas também para o
desenvolvimento comunitário.Por outro lado, “O canto em conjunto talvez seja uma das mais antigas expressões artísticas e comunicativas do ser humano, tendo historicamente revelado um imenso potencial social. Permite integrar pessoas de diferentes condições socioeconômicas e culturais e dar a conhecer uma nova forma de expressão ao mesmo tempo individual e coletiva. Informa noções essenciais para a manutenção de uma saúde vocal em longo prazo, estabelece, na convivência, uma nova concepção de possibilidade de lazer e cria um compromisso de união do grupo com responsabilidade, respeito e dedicação, independentemente de origem socioeconômica, faixas etárias e de dificuldades de aprendizado que possam surgir. Cantar em um coro é relevante na perspectiva da manutenção de um corpo saudável e apto para a prática do canto, quer seja profissional, quer seja como meio de expressão, integração, motivação ou lazer” como escreve Rita de Cássia Fucci Amato.
Por
outro lado, ainda, Matilde Chaves de Tobar, directora do coro arte música
“Cantar en coro: Una maravillosa experiencia musical”, escreveu em 2016 que “A
pessoas que procura pertencer a um coro tem em mente antes de tudo um objetivo:
cantar com os outros, participando em atividades que permitam expressar-se
musicalmente, num contexto de sociabilização e de encontro”.
Neste contexto, nesta intervenção, e partindo da minha experiencia pesooalenquanto coralista, vou defender três tipos de ideias: o coro como espaço (a) de comunidades de práticas e de aprendizagens, (b) de convivialidade entre diferentes e (c) de desenvolvimento pessoal e comunitário.
A intervenção que está dividida em três momentos. Num primeiro vou partilhar convosco um pouco da minha história pessoal como membro de um coro amador, primeiramente masculino e depois misto, e que serve para ilustrar algumas das dimensões que considero relevantes quando falamos do cantar em coro, segundo momento. E por último, quando se comemora um aniversário existem sempre projeções acera do futuro, apresento de um modo muito sintético três desafios que do meu ponto de vista se colocam neste momento aos grupos amadores.
1. Cantar num coro amador: aprender a lidar com a música e com as pessoas
Tinha cerca de 16-17 anos quando entrei para o Orfeão de Vagos, grupo coral inicialmente masculino que tinha sido fundado nos finais da década de 60 e que este ano comemora 50 anos . O entrar para este coro deveu-se a três razões principais o gostar de cantar, o gostar de viajar e o renome do Orfeão.
Sendo o coralista mais novo, os outros colegas andavam na, sua maioria, casa do 40, 50, 60 anos, não só fui recebido com todo o carinho, no grupo dos tenores, passando por uma série de peripécias e de brincadeiras que me foram integrando num grupo que, na altura todos poderiam ser todos meus pais e avós. Este grupo, para além de diferentes idades incluía pessoas de todas as atividades profissionais: desde operários a professores, de funcionários municipais a trabalhadores nas obras e alguns pequenos empresários, advogados e médicos, bem como alguns reformados numa mistura socioprofissional de grande variedade. Variedade que envolvia também diferentes quadrantes ideológicos e políticos.
Contudo, apesar da toda esta diversidade, e das diferenças entre todos, mesmo na maneira de cantar, o que sobressaía era a importância do trabalho de grupo, o nome do orfeão, e onde o ensaio de naipes era realizado por alguns dos membros do grupo que eram músicos na banda filarmónica e que ajudavam o maestro. O reportório que e cantava variava entre algumas adaptações de músicas tradicionais até arranjos de música do Verdi, Coro dos escravos hebreus (Va, pensiero) da Ópera Nabucco, a Adaptações do Aleluia do Haendel, a alguma música de carater mais religioso.
Como a maioria não sabia música todas as peças eram cantadas de memória, até que um dia um dos coralistas, advogado, faz um trabalho notável de transcrever todas as músicas e, pela primeira vez na vida tive partituras à minha frente. Foi uma descoberta procurar decifrar tudo aquilo, eu que até ali fica perto de um músico que catava muito bem para seguir as melodias e cantar o mais afinado possível. Nalgumas peças, existia um solista, um operário, que nos encantava a todos. Pela sua voz pela sua expressividade.
Nos anos em que fiz parte cantava-se me pequenos concertos, em algumas cerimónias religiosas, em encontro de coros, numa atividade diversificada que levava o coro a vários locais da região e do país. Na altura a internacionalização era muito difícil. Isto para não falar de alguns concertos em que se juntaram uma Banda Filarmónica, Banda da Amizade e vários coros numa peça que enchei várias vezes o Teatro Aveirense. Nunca mais me esqueci desta imersão musical alargada, como se fizesse parte de um outro mundo. Todos os arranjos eram realizados pelo maestro. Maestro que que todos admiravam, mas que, por vezes, era difícil de aguentar, passe a expressão, atendendo ao seu feitio e ao seu grau de exigência.
O que é certo é que o trabalho artístico que se realizava era de grande qualidade e trazia à vila, e aos outros locais onde atuávamos, uma lufada de ar fresco cultural atendendo ao desenvolvimento embrionário quer em termos de educação quer da cultura das diversas regiões.
E esta componente de democratização cultural, i.e., possibilitar o acesso a peças e obras musicais que normalmente não se ouviam na rádio, nem faziam parte do quotidiano das populações, contribuiu decisivamente não só para o nosso desenvolvimento cultural e artístico enquanto indivíduos, mas também contribuíram para o desenvolvimento local.
Claro que nem tudo era um mar de rosas, como se costuma dizer. Quer do ponto de vista da pontualidade aos ensaios, da disponibilidade das pessoas participarem no grupo, de se gostar mais ou menos do reportório, de se questionar o maestro, de se questionar a estética e/ou a dificuldade das peças, da dificuldade de se arranjar financiamento para se poder ir atuar em diferentes espaços, entre outros. Contudo, apesar das diferentes dificuldades o Orfeão era, na altura, um ex-libris da vila, um motivo de orgulho identitário, o qual todos os orfeonistas procuram manter, porque ao engrandecerem o nome da vila engrandeciam também o seu próprio nome e identidade.
Como escreveu Jorge Castro Ribeiro a propósito de um estudo sobre os coros amadores na Madeira, e que que de algum modo sintetiza a minha motivação e presença no coro entre as quais “algumas das oportunidades que se abrem por este tipo de participação incluem: sociabilizar, participar em encontros, aprender música, aprender novas línguas, viajar por causa de concertos e intercâmbios, representar a própria comunidade e o local de residência em outros lugares, cantar, além de outras. Estas possibilidades são atractivas porque não requerem competências técnicas de performance profissional e se não oferecem contrapartidas financeiras imediatas, oferecem oportunidades ao nível individual e social. […] Muitas vezes é feita uma refeição convívio após a performance durante a qual os coralistas, organizadores e figuras locais socializam em ambiente descontraído”
Desta breve descrição importa perguntar quais as dimensões relevantes se podem retirar de ter cantado num coro amador? É o que procurarei responder no ponto seguinte a que dei o título “Mundos em diálogo” aprendizagens, vivências e partilhas”
2. Mundos em
diálogo: aprendizagens, vivências e partilhas
Desta breve descrição que apresentei, cinco grandes aspetos merecem ser
realçados e que percorrem dimensões individuais e coletivas; dimensões
relacionais; dimensões artísticas; dimensões relacionadas com as aprendizagens
e dimensões relacionadas com o desenvolvimento comunitário. Isto tem
presente que “as artes performativas são
frequentemente fulcros de identidade, permitindo que as pessoas se sintam
intimamente parte da comunidade através da realização de conhecimento e estilo
cultural compartilhado e através do próprio ato de participar juntos da
performance”(Turino 2008, p. 2).
(1)
Dimensões individuais e coletivas
No que se refere às dimensões individuais e coletivas,
e em particularTambém Matilde Chaves de Tobar chama a atenção para que o cantar em coro “articula uma consciência comum e um desenvolvimento harmonioso da personalidade do coralista, onde a par da sua vivência artística, se adquirem bases de um comportamento social de profundas conotações humanística. Sentimentos de companheirismo, responsabilidade, solidariedade, respeito pelo semelhante, tolerância e o incentivo relacionado com hábitos de ordem, da disciplina de conjunto e a permanência, são alguns dos valores que se encontram no trabalho coral”
Por seu lado, Carlos Alberto Figueiredo (2006) afirma que “Cantar em coro deveria ser sempre uma experiência de desenvolvimento e crescimento, individual e coletivo: o desenvolvimento da musicalidade e da capacidade de se expressar através de sua voz; a possibilidade de vir a executar obras que tocam tanto no coletivo quanto no coração, ensejando o crescimento intelectual e afetivo do cantor e de outros agentes envolvidos; o desenvolvimento da sociabilidade e da capacidade de exercer uma atividade em conjunto, onde existem os momentos certos para se projetar e se recolher, para dar e receber.” (p.4)
(2) Dimensões
relacionais: a convivialidade entre diferentes gerações, profissões e pessoas
Pelo exemplo que dei, e que existe também aqui no
Coral Luía Todi, existe uma diversidade de pessoas, mais letradas, menos
letradas, com vários tipos de ocupações profissionais e/ou reformados, o que
configura este tipo de grupos uma vivência democrática na qual as diferentes
diferenças são um fator de enriquecimento.Num artigo publicado no Jornal público do dia 19 de outubro a propósito dos concertos dos Tribalistas, grupo brasileiro constituído por Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que gravaram apenas dois discos, a Marisa diz o seguinte “ […] Nós somos diferentes, de cidades diferentes, somos dois homens e uma mulher, fazemos música mas cada um tem a sua particularidade num todo integrado, unido, amoroso, complementar, fazendo com que as nossas qualidade tenham um resultado maior do que teríamos nas nossas individualidades” (Ípsilon, 19 outubro 2018, p. 17). Arnaldo Antunes por sua vez diz que “o próprio facto de sermos muito diferentes, mas sermos complementares é já uma resposta a essa realidade mais intolerante que estamos vivendo, mostrado que as diferenças sã uma riqueza e não apenas toleráveis” (Idem)
Neste contexto, importa salientar, que cantar em coro é também a aprender a conviver com pessoas diferentes, em que, como salienta de Masi (2003), “as relações interpessoais são predominantemente horizontais, calorosas, informais, solidárias e centradas na emotividade. Para o indivíduo ou para o grupo no conjunto contam, principalmente o reconhecimento e a gratificação moral. […] Prevalece uma liderança carismática. Cada um está atento àquilo que deve dar aos outros; atribui muita importância ao empenho; tende a aprender o mais possível, para melhorar a qualidade de suas próprias contribuições; sente-se responsável; sabe para que ele serve; sabe para que serve a sua contribuição pessoal; não tende a descarregar sobre os outros as suas próprias responsabilidades. A disciplina provém do empenho pessoal, da atração exercida pelo líder, da adesão à missão, da dedicação ao trabalho, da fé, da generosidade, da participação na “brincadeira””. (p. 675-6)
Ora esta ideia de diferença como fator positivo e de
complementaridade entre as diferenças constituiu-se com um elemento central do
viver em democracia e do viver em conjunto. O que nos tempos que correm é uma
dimensão estruturante no contributo que se dá para a compreensão do outro.
(3) Dimensões
artísticas: entre diferentes tipologias musicais e o fazer bem feitoUma das componentes também muito relevantes, na maioria dos coros, onde o Coral Luísa Todi também se inscreve, centra-se na diversidade de tipologias musicais que são cantadas em que não existe uma hierarquização do que se designa por alta e baixa cultura. A primeira associada a grandes obras do reportório dito erudito e as segundas associadas às práticas musicais tradicionais. O que remete para uma dimensão muito interessante acerca do que é a cultura.
Paulo Freire, na concepção que faz de cultura, não faz distinção entre cultura popular e cultura erudita, entre alta e baixa cultura. A cultura compreendida em todas as interfaces, no plural, resulta da intersecção entre o trabalho humano e os diferentes tipos de comunidades. Como escreveu em 1983: “com as discussões sobre o conceito de cultura, o analfabeto descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande místico, ou de um pensador. Cultura é a poesia dos poetas letrados de seu país, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Cultura é toda criação humana. (FREIRE, 1983, p. 109).
Por outro lado, existe a questão da artisticidade. Este conceito, de acordo com Eisner (2003), “relaciona-se com tudo o que faz bem feito. Objetos bem-feitos, processos e ideias, sejam de natureza prática ou teórica, necessitam de julgamentos estéticos, dependem competências técnicas, prestam atenção à proporção e dependem da imaginação.” (p. 373) Escreve este autor que o fazer bem feito significa fazer com sentido de proporção construído com respeito pelas possibilidades imaginativas, construído tendo em conta a sensibilidade, construído em torno da excelência, mobilizando as competências adquiridas. A artisticidade fornece uma visão das possibilidades humanas” (Idem, 2004). O esforço pela excelência faz com que o artista profissional, e o artista amador permaneça em estado de procura, nunca satisfeito completamente com os resultados obtidos, revendo o processo de construção de uma obra, das imagens mentais ao trabalho finalizado o que o pode conduzir ao desenvolvimento de novas poéticas artísticas.
(4) Dimensões
relacionadas com as aprendizagens: comunidades de aprendizagens
Na sua
investigação “O canto coral como prática sócio-cultural e educativo-musical”,
Rita Amato defende que o coro é um espaço constituído por “complexas relações
interpessoais e de ensino-aprendizagem”, exigindo do regente “um conjunto de
habilidades inter-relacionadas referentes não somente à preparação
técnico-musical, mas também à gestão e condução de um conjunto de pessoas que
buscam motivação, educação musical e convivência em um grupo social” (Amato
2007, 15).
As aprendizagens,
musicais e outras, inscrevem-se naquilo que designo por “comunidades de
práticas artísticas” e em particular “as comunidades de prática musical” que
caracterizam o cantar em coro. Wenger, no caso particular da música, salienta
que “A música é uma prática interessante. Ela está ancorada nas tradições
culturais e ainda convida a interpretações, à inovação e em muitos géneros, à
improvisação. É intensamente social. Ela une as pessoas, seja para a realizar
ou apreciar. E é intensamente individual. As competências musicais requerem
horas de prática exigente e a inspiração musical resulta de emoções muito
pessoais. Mesmo em performances de grupos, cada músico dá o seu um contributo
individual” (Weger, 2016).
Por sua vez, como
escreve Kenny (2016) “Estas comunidades são criadas através de práticas, de
regras, sentidos de pertença, papéis, identidades e aprendizagens que são
simultaneamente “partilhadas” através do esforço musical coletivo e “situadas”
no interior de determinado contexto sociocultural” (p. 1)
(5) Dimensões
relacionadas com o desenvolvimento comunitário
Como referi na “minha história” de coralista, uma das
questões que se colocava, e coloca, é a afirmação de que o trabalho do coro
tinha também como consequência o desenvolvimento local, quer de um modo
simbólico, quer através da mobiliadade e da mobilização das pessoas que, de
diferentes modos, participavam na economia local, no que se pode designar por
um “fenómeno territorialização das atividades culturais. Neste fenómeno é
importante ter em conta uma relação de dupla dependência, isto é, a
territorialidade da criação e do consumo culturais torna-os essenciais para o
desenvolvimento territorial ao mesmo tempo que faz do território elemento
essencial para o dinamismo cultural”. (Pereira, 2016,p. 28)
Neste contexto, numa das suas abordagens Currid (2009:
372-374) encara a arte e a cultura em si mesmas como uma parte central das
estratégias de desenvolvimento. Estas estratégias podem ser divididas em dois
tipos: uma baseia-se em projetos de grande dimensão, frequentemente importados
do exterior, assentes em centros de consumo de bens culturais numa escala
massiva com capacidade gerar grande visibilidade e receitas; outra, oposta à
anterior, apoiada no desenvolvimento cultural de pequena escala, assente na
autenticidade da cultura própria dos locais. O primeiro tipo depende em larga
medida da atração de turistas e é frequentemente criticada pela disneyficação
dos locais. Em contraste, o segundo, por seu lado, “concentra-se em atrair e
reter residentes” (Currid, 2009:374).
Também como refere Pereira (2016) A capacidade da
cultura dar uma marca a um lugar […] prende-se com o facto de a cultivação
ativa da cultura criar associações entre os lugares e os produtos culturais
oferecidos” (p. 32) Como refere Santos (2007: 3): “A cultura começa a ser
reconhecida como dimensão indispensável para se ultrapassar uma concepção
economicista de desenvolvimento”. Neste cenário, apesar de reconhecido o
importante contributo positivo do sector cultural para a “economia do
conhecimento” e para o desenvolvimento económico e social dos territórios.
Daí a importância das políticas centrais e em
particular das políticas locais criarem mecanismos potenciadores deste tipo de
trabalho, o que, infelizmente nem sempre acontece.
3. Dos
desafios: a assunção das particularidades, daquilo que é único
Tendo
em consideração a realidade existente e o trabalho muito interessante que é
realizado pelos coros em geral e pelo Luisa Todi em particular, partilho
convosco três desafios que me parecem pertinentes para pensar o futuro que fomente
“o gosto pela aventura do espirito” e a “liberdade de mover-nos de
ariscar-nos” como refere Freire, 1997 ou 2011, numa
“ relação estreita entre saberes e fazeres, entre individual e coletivo, entre
política e práticas cotidianas [numa] rede que interconecta saberes cotidianos,
saberes artísticos e saberes experienciais.Um dos desafios é continuar a aliar o que designo por “tradição e a modernidade”.
A música como construção social e humana, como cultura e forma de conhecimento do mundo (Marti,2000) é enformada por diferentes contextos socializadores de determinados procedimentos e técnicas de acordo com os universos de referência. Mudando estes universos socioculturais, alteram-se as significações e culturas artísticas. As memórias e as convenções podem ser utilizadas também para superar o dilema entre o conhecido e o desconhecido, entre a reprodução de modelos existentes ou a criação de novos numa dialéctica entre herança e inovação, estabilidade e mudança, algumas das faces caracterizadoras das complexidades, das precariedades e das forças deste tipo de arte.
Como assinalou Jordi Savall “a música serve para muitas coisas, mas sobretudo para alimentar o espírito e conservar a vontade de viver, da paz, de recordar a nossa história, e que noutras épocas havia gente maravilhosa que fazia coisas muito boas e que se não as recordarmos se perderão para sempre”
Assim, importa olhar para tudo o que constitui a memória e a herança deste tipo de associações culturais e ao mesmo tempo perspetivar o presente e o futuro abrindo-se aos diferentes tipos de reportório e potenciando a sua renovação através de, por exemplo, encomenda de obras a compositores português, explorando diferentes tipos de culturas e tipologias musicais na afirmação da singularidade de um projeto artístico, como é o Coral Luís Todi.
Um
outro desafio, que se liga com o anterior é o que designo pela “criatividade: potenciando os imaginários e a imaginação dialógica”
A atividade artística “não é una; ela não é a actividade de um
artista. Ela é sempre plural. E por detrás dessa pluralidade se descobre a
diversidade, as disciplinas, as notoriedades, as sensibilidades, os estatutos
[…]”. Mesmo que “a actividade seja única – a unicidade de uma criação ou de um
espectáculo – isso não a impede de existir como multiplicidade, de associar
competências, de misturar os géneros, de desconstruir as suas próprias
referências, de organizar os estilos, de transgredir o seu espaço.” (Nicolas-Le
Strat, 2002: 38-39).
Com efeito, os mundos das artes pelas suas
características estão no cruzamento de mestiçagens, de trocas várias num quadro
de convivencialidade de referentes múltiplos situados entre diferentes tempos,
escalas, geografias culturais, artísticas, técnicas, estéticas e valores diferenciados,
como referi anteriormente.
Esta convivialidade implica uma “imaginação dialógica”, de que
fala Ulrich Beck (2002). Ito é a capacidade que se constrói de lidar com aquilo
que é diferente não no sentido de sr melhor mas no sentido da construção e da
assunção das particularidades
Neste sentido, a criatividade afigura-se um aspeto relevante uma
vez que sendo um processo complexo que envolve o processamento de informações e
saberes diferenciados, ideias, acções, sentidos e estruturas e modos de fazer presentes
num determinado momento e espaço conceptual, social e cultural de que podem
resultar múltiplas possibilidades de articulações significativas (Odena, 2012;
Thomas & Chan, 2013). E neste processo importa estar-se atento e potenciar
“um quadro alargado de traços de personalidade” que incluem “orientação
estética, tolerância para lidar com a ambiguidade, abertura para a
experimentação e para lidar com o risco” (Baer & Kaufman, 2006:18)
Por
último um desafio a que dou o nome de “localismos
cosmopolitas”. E o que é que isto quer dizer? “Localismos
cosmopolitas” significa olhar a partir do local que contrarie a
desterritorialização do trabalho e contribua para a afirmação das
singularidades.Dquilo qie é particular e único que nos distingue dos outros. E
nestes “localismos cosmopolitas” as comunidades apresentam-se como um elemento
determinante no desenvolvimento dos projectos colectivos e individuais. Como
salienta John Holden, os projectos de natureza mais comunitária estão também no
fortalecimento da consciência de que se pertence à comunidade. Diz este autor
que “o que cria um grupo é a cultura e as formas de expressão partilhadas, os
lugares de encontro, os lugares onde estamos habituados a ir – tanto em teatros
e concertos, como nas ruas e bares” (Público, 15 Fevereiro 2015, p. 33).
Se
são desafios difíceis, ou mesmo quase utópicos. Talvez. Mas como escreveu o
poeta brasileiro Mário Quintana “Se as coisas são inatingíveis... ora!|| Não é
motivo para não querê-las...||Que tristes os caminhos, se não fora||A presença
distante das estrelas!
4. Considerações
finais
Para terminar duas ideias principais.
Como
abemos, as artes e a cultura, são territórios do imaginário e da criatividade
que envolvem diferentes tipos de acções e de sujeitos e que mobilizam recursos
diferenciados muitas vezes afastados dos campos específicos em que se
desenvolve o trabalho criativo, num processo através do qual se projectam e se
realizam os objectos artísticos.
Neste
contexto, a primeira ideia é a de que o cantar em conjunto revela-se uma
ferramenta extraordinária “para estabelecer uma densa rede de configurações socioculturais
com os elos da valorização da própria individualidade, da individualidade do
outro e do respeito das relações interpessoais, em um comprometimento de
solidariedade e cooperação” (FUCCI AMATO, 2007, p. 81). Também Seixas, num
estudo de 2014, salienta que “a prática coral contribui para o desenvolvimento
cognitivo e musical dos participantes, para o seu desenvolvimento/integração
social e para perpetuar o património cultural”
A segunda ideia tem a ver com o facto de que “as pessoas cantam
em coros por muitas razões, incluindo o puro prazer de cantar, o
rejuvenescimento mental e físico, a conexão social e a busca da excelência
musical. Esse espectro de motivação para a participação no coral está presente
na maioria dos corais comunitários, assim como uma ampla gama de experiências
musicais e de canto. Embora muitos membros tenham cantado suas vidas inteiras,
outros estão apenas começando, e é essa composição diversificada da maioria dos
coros comunitários que os torna numa fonte particularmente rica de
discernimento sobre a natureza da participação musical adulta” (Rensink-Roff
2011, 1 2011, 1).. Também, Ana Maria da
Costa Veloso Seixas, UCP, 2014 “Cantar em coro : estudo de caso de uma área do
Norte Litoral de Portugal” conclui que
“que a prática coral contribui para o desenvolvimento cognitivo e
musical dos participantes, para o seu
desenvolvimento/integração social e para perpetuar o património
cultural”.
Ora, o aprender a viver em conjunto e a convivialidade
entre diferentes, o desenvolvimento comunitário e o perpetuar e partilhar o
património musical e artístico, são alguns dos aspetos que compõem o trabalho
de cantar em coro, na construção de uma
sociedade mais democrática, feliz e culta, potenciando a arte do espanto e dos
reencantamentos com os mundos. Os nossos mundos e os mundos dos outros
[1]
Conferência apresentada nas comemorações do 57.º aniversário do Coral Luisa
Todi. Setúbal, 25 de outubro de 2018
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