quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O Estado e o ensino de música: ambiguidades, mercadorização e irresponsabilidades


As políticas públicas na educação artística em geral e na educação artístico-musical em particular não emanam apenas do poder político nem da sua tradução num quadro legislativo. Os atores locais através de trabalho de transposição, de mediação e de avaliação, desempenham um papel determinante não só na viabilização local da política educativo-artística, do seu impulsionamento e da criação de condições para a sua realização, como também no incremento de novas políticas, nem sempre consignadas pelo poder político, nem articuladas entre si. Por outro lado, a dimensão pública da educação artístico-musical não se situa apenas no contexto das escolas públicas. O ensino particular e cooperativo e diferentes tipos de associações sem fins lucrativos também contribuem para uma noção mais alargada de serviço público no ensino de música.

Neste contexto, o Estado, entendido aqui como as instâncias de governo central bem como as diferentes instâncias administrativas que o compõem, não sendo o único ator, desempenha um papel de grande relevância no enquadramento político-administrativo - em articulação com as instituições de formação e as instituições culturais, em torno do qual os diferentes tipos de projetos educativo-artísticos se desenvolvem. Contudo, este papel central tem apresentado um conjunto de características que, de um modo sucinto, se podem traduzir por ambiguidades políticas, mercadorização da regulação e irresponsabilidades na assunção e no desenvolvimento do contrato social que estabelece entre as instâncias de governo e as instituições de formação, de criação e de produção artística.

Ambiguidades do político e das políticas
Os modos como o Estado se tem relacionado com o ensino de música apresentam uma dimensão retórica paradoxal. A par da afirmação da importância de uma sociedade mais culta, exigente e criativa, assiste-se a uma enorme dificuldade do Estado cumprir os desígnios expressos nesta afirmação. Veja-se por exemplo os discursos dos ministros e outros responsáveis políticos e depois a sua tradução em políticas públicas articuladas entre a formação, a criação, a investigação e a produção e realização de espectáculos.

Com efeito, existe uma espécie de laxismo em relação às questões estruturantes relacionadas com o ensino de música nas valências atrás referidas, em que as diferentes instâncias de governo “preferem ficar” numa certa posição entre o “deixar andar” e a relevância que dão a outro tipo de formações mais assente num contexto imediatista de uma sociedade concorrencial e de consumo, com consequências nefastas quer no presente quer no futuro. Consequências visíveis desta situação.

Da mercadorização dos mecanismos de coordenação
Assiste-se ao confronto entre políticas contraditórias de coordenação “que denotam um impasse caracterizado pela retórica política do Estado Avaliador e pela prática gestionária do Estado Educador”, como refere Natércio Afonso. Ou, no dizer de João Barroso, assiste-se “à tentativa de “criar mercados” (ou quase mercados) educativos transformando a ideia de “serviço público” em “serviço para clientes”, onde o “bem comum educativo” para todos é substituído por “bens” diversos, desigualmente acessíveis. Sob a aparência de um mercado único, funcionam diferentes sub-mercados onde os “consumidores” de educação e formação, socialmente diferenciados, veem-lhes serem propostos produtos de natureza e qualidade desiguais. […] O objectivo central já não é adequar a educação e emprego mas articular o “mercado da educação” com o “mercado de emprego”, nem que para isso seja necessário criar um “mercado de excluídos”.

E isto tem tido consequências profundamente negativas num setor de educação e de formação que apresenta características que não se compadecem com as designadas lógicas de mercado. Não só pelo facto de se estar em presença do longo prazo, em vez do curto, como também os resultados desta formação não são linearmente traduzíveis em bens de consumo imediato, situadas que estão num contexto dos bens simbólicos, que exigem outro tipo de modalidade de ação e de coordenação.

Do respeito e da confiabilidade do contrato social
Ao serem criadas determinadas expetativas, quer através do discurso político quer através de algum quadro legal, espera-se que elas não fiquem no domínio da retórica política mas que tenham consequências práticas na vida das escolas, professores, estudantes, famílias e comunidade. Contudo, verifica-se, que, de um modo geral, o Estado, em particular o poder político, não cumpre com o que ele próprio estabelece. Dois exemplos. O decreto-lei n. 344/90, de 2 de novembro, que estabelece as bases gerais da organização da educação artística, estabelece no seu artigo 43.º que no prazo de dois anos a partir da entrada em vigor do diploma serão publicados os diplomas que regulamentarão as diversas áreas da educação artística. Passados 24 anos, e apesar de todas as transformações existentes, nem o decreto foi revogado, nem se regulamentou o que era suposto.

Um outro exemplo mais recente, do início deste ano letivo, diz respeito aos professores contratados no ensino especializado de música e que, o atual ministro afirmou publicamente que, começariam a auferir o seu salário desde 1 de Setembro de 2014. Só que, nos vários empecilhos administrativo-burocráticos da máquina ministerial, os contratos foram assinados mais tarde e é uma luta e um desgaste muito grande para que se cumpra o que foi afirmado.

Estes dois exemplos separados no tempo, a que se poderiam juntar muitos outros nos setores da educação, são representativos do que se pode designar em última instância da falta de respeito por parte da administração, não só em si própria (mas isso é um outro problema) mas fundamentalmente pela quebra constante de um contrato social, o que contribui decisivamente para as ambiguidades e o incremento da falta de confiança num Estado que deveria ser o garante da responsabilidade, da responsabilização na reconfiguração de uma relação entre o Estado, os indivíduos, as comunidade e as instituições mais exigente, clara e culta, sem a qual a atividade formativo-artística, nas suas várias valências e tipologias, dificilmente consegue alicerçar-se na sociedade portuguesa.

Apesar das ambiguidades, mercadorização e irresponsabilidades do papel do Estado, as instituições de formação têm conseguido, com muito esforço e dedicação, incrementar o número de crianças, jovens e adultos que procuram este tipo de formação, o que é um indicador relevante sob vários pontos de vista, resultante de uma actividade educativa e artística intensa que se afigura, apesar da pouca atenção que lhe é dado pelos media, como um dos setores mais dinâmicos da sociedade portuguesa. Por isso, importa, ser exigente em relação ao Estado, o(s) governo(s), para que cumpra o seu papel e não esteja permanentemente a rasgar os contratos que faz com as pessoas e as instituições. A crise não explica tudo.

in Carta aos Sócios, apemnewsletter, janeiro 2015

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