segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Paradigmas do ensino da música em Portugal: diferentes olhares e sentidos

1. Introdução
O ensino da música, nas suas múltiplas componentes, viveu, nas últimas décadas do século XX, na interacção e no confronto entre diferentes modos de concepção, construção, operacionalização e administração das políticas educativas e culturais e as subjectividades artísticas dos seus agentes. Interacções e confrontos enformados entre contextos de referência globais e locais. Globais pela importação e comparação com modelos oriundos de outros países, locais pela recontextualização dessas referências.

Por outro lado, este tipo de formação enquadra-se numa sobreposição de várias
redes que envolvem, entre outras, a educação, a cultura, as concepções de músico, o papel social da arte na educação, os públicos e os consumos. A estas redes associa-se o papel que é exercido pelas barreiras (materiais e simbólicas) entre os grupos sociais, no que se refere às modalidades de acesso às práticas educativas e culturais e aos respectivos universos de valoração e de descodificação dos códigos e das convenções existentes nas culturas musicais.

 Esta reflexão[1] , que teve como ponto de partida uma das dimensões do trabalho realizado no âmbito da dissertação de mestrado intitulada “O Conservatório de Música: actores, organização e políticas” (cf. Vasconcelos,2000), pretende dar conta de um conjunto de referentes estruturais existentes no ensino da música, situados entre a tradição clássico-romântica e tendências mais contemporâneas, em que se cruzam (a) diferentes  modalidades de ensino, do ensino especializado ao “ensino “regular”, e (b) várias problemáticas políticas, educativas, culturais, artísticas e pedagógicas. Para comodidade de apresentação e discussão, polarizei-a, apesar dos inconvenientes, em duas grandes dimensões: aquilo que designei por paradigmas tradicionais de influência clássico-romântica e paradigmas emergentes. No entanto, e para evitar qualquer interpretação e análise reducionista, estes dois grandes paradigmas consubstanciam múltiplas formas e coexistem no espaço e no tempo.

 Assim, mais do que uma análise aprofundada dos princípios e estratégias pedagógicas existentes no ensino da música em Portugal, interessa-me, sobretudo, analisar e questionar algumas dimensões que me parecem relevantes para a compreensão deste tipo de ensino. Dimensões que têm consequências directas na profissionalidade docente, nos modos de pensar, organizar e agir no que se refere à formação e à escola, bem como na construção e implementação das políticas educativas e culturais. 

O quadro compreensivo e interpretativo em que me situo entende este tipo de ensino numa confluência e na interligação entre a formação, a produção e a fruição, entre a educação e a cultura (Apple,1999; Interartes,1999; Santos,1998; Silva,2000).

 Neste contexto, divido a comunicação em três grandes momentos. No primeiro e de uma forma muito esquemática, apresento algumas das problemáticas que envolvem este tipo de formação; no segundo apresento algumas das características essenciais do ensino da música, detectados até ao momento; por último, algumas considerações finais.

2. Problemática
Nas últimas décadas do século XX o ensino da música em Portugal foi o resultado de um cruzamento onde confluíram múltiplos factores. Factores que resultaram da forma como o músico e a música eram encarados (social, cultural e profissionalmente), do percurso sócio-histórico e sócio-técnico da música e da formação, de um modelo originalmente concebido para a transmissão de uma cultura musical específica (no caso dos conservatórios) ou para a dita “formação integral dos alunos” (no caso do “ensino regular”), do confronto entre diferentes ideologias, pressupostos estéticos e procedimentos.

 Apesar da diversidade e complexidade existentes neste domínio formativo, o ensino da música auto legitimou-se em nome de princípios tidos como universais e naturais, onde as estruturas e tecnologias de ensino pouco ou nada se adaptaram aos diferentes tipos de mudanças sociais e culturais, funcionando mais como um ensino técnico do que como um agente de criação, produção e difusão de cultura. Esta forma de auto-legitimação conduziu a um certo fechamento da formação, nas suas várias componentes; à rejeição de ideias sócio- políticas e pedagógico-artísticas estrangeiras à tradição predominante (mesmo quando estas eram conduzidas por indivíduos inseridos nessa mesma tradição); à apropriação e incorporação (muitas vezes de uma forma acrítica) de modelos oriundos de outros contextos e com princípios e filosofias diversificadas e por vezes contraditórias.

Por outro lado, a democratização e a massificação do ensino, bem como as mudanças operadas no contexto musical e sócio-profissional, nos processos sóciocomunicacionais (Blaukopf,1992; Carvalho,1993), no aparecimento de outras formações académico-musicais e no acesso à profissão de outro tipo de camadas sociais, contribuíram para criar fracturas nos modelos predominantes. De um lado, os “herdeiros” que reproduzem e perpetuam a tradição (ou a representação que têm da tradição); do outro, uma tendência mais inovadora no sistema que abriu rupturas nesta assunção e que procura produzir um outro modo de agir e de pensar a profissão docente, a profissão do músico, o ensino e os modos de organização pedagógica mais consentâneos com a contemporaneidade.

 Estas duas tendências estão na confluência de duas concepções distintas e divergentes. Uma associada ao “mestre” que pretende criar a sua “classe”, a sua “escola” – conceito simbólico associado à forma de perpetuar uma determinada tradição técnica e artística e, fundamentalmente, perpetuar a memória e o prestígio do professor. A outra, com a diluição de diferentes fronteiras e a incorporação de outros modelos, não se centra no professor como “o mestre” mas na música e na pessoa do aluno. Isto é, uma tendência que não renegando a tradição e a cultura musical ocidental, procura reconstruí-la e recontextualizá-la num processo de representação e de simulação (Duve,1992), atendendo aos diferentes contextos socioculturais e artísticos, do passado e do presente, e às diferentes transformações introduzidas nos modos de pensar a arte, o artista e a formação.

 Convém salientar que a socialização e a formação artística (Dubar,1997) confronta-se com duas tensões aparentemente contraditórias. De um lado, uma transmissão de saberes acumulados pela via da tradição e de um conjunto de códigos e convenções (Becker,1984), da memória (Nora,1997), dos “grandes mestres” (Kingsbury,1988). Do outro, a “necessidade” da construção de uma personalidade individual e individualizada que requer, para além da escola, a existência de um talento artístico (Menger,1996).

 A tensão entre o território da formação e o território do indivíduo, com o seu talento, a sua vocação, as suas estratégias e singularidades (Moulin,1997), é um aspecto determinante na forma como o indivíduo se projecta no futuro e se insere num determinado contexto de aprendizagem com o qual estabelece diferentes tipos de pontes, seja por uma assimilação acrítica, de parceria ou de confronto.

 A esta problemática, podem acrescentar-se outros exemplos relacionados com as actividades e profissões artísticas: (a) a diferenciação e a diversidade de percursos musicais; (b) o estatuto de cada disciplina, no que se refere ao lugar que ocupa na orquestra (Lartigot & Sprogis,1991; Nettl,1995) quer no mercado real do trabalho artísticocultural, mercado de bens simbólicos no dizer de Bourdieu (1994); (c) a função e a valorização que cada grupo disciplinar  desempenham no espaço da escola e no espaço sociocultural, consoante diga respeito aos intérpretes, criadores, técnicos e aos outros saberes, são outros aspectos a ter em consideração.

 Por outro lado, a cultura musical tem vindo a incorporar elementos imanados de diferentes contextos que, desde há um século, vêm produzindo extensões do campo musical. Schaeffer (1993) resume-as como (1) a investigação etnomusicológica, (2) a música experimental e electrónica (3) e a contestação, pelos compositores, do sistema musical ocidental. Esta extensão criou, segundo Molino (s.d.:121-126), uma ruptura no que se refere à universalidade e à superioridade da cultura musical "clássica" sobre os outras culturas musicais; à "deslocação interna do sistema musical", isto é, o reconceptuallizar este tipo de música como sistema fechado, numa perspectiva interna (as regras e os procedimentos) e numa perspectiva externa, em que se põe em causa a separação entre a música, no seu sentido estrito, e as condições da sua existência integrando a produção, a percepção, as instituições, regras e hábitos.

 A estes aspectos há que acrescentar as transformações nos domínios das tecnologias de informação, do desenvolvimento dos mass media, das novas formas de produzir e consumir a música e das diferentes tipologias musicais.



3. Dos paradigmas de tradição clássico romântica e dos paradigmas emergentes
Partindo do conceito de paradigma como "um conjunto aberto de asserções, conceitos ou proposições logicamente relacionados e que orientam o pensamento (...)" (Bodgan & Biklen,1994: 52), e de uma forma muito esquemática, só para dar uma ideia dos fundamentos que enformam a minha reflexão, nos paradigmas tradicionais a ciência produz a única forma de conhecimento válido e cumulativo. Esta validade pode ser demonstrada e a verdade a que aspira é intemporal. A racionalidade predominante é cognitiva e instrumental distinta de outras práticas intelectuais como por exemplo a racionalidade do sentimento de que fala Best (1996) ou as recentes teorias ligadas à inteligência emocional (Damásio,1995, Golemann,1995).
Nos novos paradigmas, não há uma única forma de conhecimento válido. As práticas sociais alternativas geram formas de conhecimento também alternativos (como por exemplo o Hip Hop ou o Rap), existindo uma revalorização dos conhecimentos e das práticas não hegemónicas de que são exemplos os estudos pós-coloniais. O conhecimento não é validável por princípios demonstrativos de verdades intemporais, mas antes assume-se a modificabiidade e a temporalidade do conhecimento. Como refere Santos (1987:37) no denominado "paradigma emergente" o conhecimento é contextual, auto-questionável, relativista, construído, subjectivado. Este paradigma pode ser caracterizado por quatro grandes postulados: (a) todo o conhecimento cientifico é cientifico-social; (b) é total e local; (c) é autoconhecimento; (d) visa constituir-se como senso comum. Estes postulados apoiam-se num conjunto de noções como a criatividade, a contingência, desordem e processo, auto-organização, historicidade, reversibilidade (Idem:28).
A acrescentar a tudo isto, e se se pensar que a música é - ao contrário dos pressupostos da “autonomia estética” e da “arte pela arte” (cf. Fubini,1994:325-333;Hanslick,1994) - “um sistema cultural, uma intercontextualizada teia de representações conceptuais, acções e reacções, ideias e sensações, sons e sentidos, valores e estruturas” e que “nenhum destes elementos pode por si só ser considerado como o principal ou como a essência da música” (Kinsbury,1988:179), compreende-se a complexidade deste universo formativo, nas múltiplas olhares e procedimentos possíveis.
A História da Arte e a História da Música Ocidental são processos ricos nestas diferenciações paradigmáticas: da Ars Antiqua à Ars Nova do século XIV, da Prima Pratica à Seconda Pratica do século XVII (cf. Fubini,1994:149; Strunk,1981, pp. 33-63, as sinfonias de Beethoven e os modos de recepção do público (Massin,1973), do Serialismo à Música Electrónica e por Computador. De facto, na história da arte em geral e da música em particular, existiu sempre numa dialéctica entre a estandardização e a rigidez das convenções e a sua transformação, no que respeita quer às técnicas quer às estéticas e às suas relações com o público. É celebre o confronto que existiu na primeira apresentação pública da “Sagração da Primavera” de Igor Stravinsky em 29 de Maio de 1913 em Paris.
Para comodidade da reflexão, e de discussão, dividi os dois paradigmas em cinco grandes domínios: político; saberes; aprendizagens; profissão professor e escola.
3.1. Do político: da homogeneidade à diversidade
Entedendo político no sentido que é atribuído por autores como Charlot (1995) e Friedberg (1995), por exemplo, este domínio está dividido em dois grandes planos: um de caracter mais macro (a nível de administração central) e outro mais micro (a nível das escolas e dos professores). Esta divisão enquadra-se na perspectiva de que não é só o poder central e regional que tem políticas. Também a escola e os professores constróem e desenvolvem um trabalho político quer pelo que fazem quer pelo que não fazem (cf. por exemplo Giroux, 1993).
Neste contexto, um aspecto essencial caracterizador deste tipo de ensino tem a ver com a rede “educação, cultura e mercado”. Com efeito, o mundo da arte, de acordo com Becker (1984), é uma rede de interacções entre diferentes tipos de profissionais em que as suas actividades concorrem para a produção de determinadas obras, existindo tantos mundos da arte que artes: cinema, música, pintura por exemplo. Dentro das artes do espectáculo o caso da música é um caso particular, em que o mercado se divide em espaços tão diferenciados que não se fala da mesma coisa quando se está no universo da música erudita ocidental ou da música massificada (Vessilier-Ressi,1995).
 
Cada um destes mundos está organizado em função de uma determinada divisão do trabalho. Para uma orquestra sinfónica dar um concerto, por exemplo, é necessário inventar os instrumentos, fabricá-los, conservá-los em bom estado, é necessário utilizar e/ou inventar uma notação e compor a música utilizando esta notação, os indivíduos devem ter aprendido a tocar os respectivos instrumentos de acordo com a partitura, é necessário encontrar o tempo necessário para os ensaios, anunciar o programa de concerto, organizar a publicidade, vender os bilhetes para o concerto e atrair um público capaz de escutar, de compreender e de apreciar o espectáculo (Becker, 1984).
 Esta diferenciação do trabalho apresentada por Becker remete por um lado, para uma rede de interacção de diferentes actores (os intérpretes, os criadores, os técnicos, os críticos, os públicos e os agentes) e por outro, para a diferenciação dos processos e dos produtos, onde cada experiência de trabalho é diferentes, cada obra ou espectáculo é único, as relações de colaboração são modificáveis e a avaliação de competências pode ser interminável.
 Ora, um dos problemas políticos que tem atravessado este subsistema de ensino nos modos de conceptualização e de operacionalização, é, por um lado, não atender a estes aspectos fundamentais e, por outro, reduzir a complexidade do fenómeno artístico e das suas aprendizagens, organizando-se como se fosse um só e duplicando o mesmo no mesmo, apesar da diversidade geográfica, organizacional, cultural, estética e pedagógica (cf. Barroso,1999).
 Nos paradigmas tradicionais existe uma desarticulação entre, por exemplo, (a) subsistemas - o ensino especializado, o ensino não especializado, o ensino profissional, o ensino de amadores, o Jazz; (b) entre políticas da educação, cultura e emprego; (c) a separação entre formal e não formal. Por outro lado, e uma vez que um dos princípios de referência é o da homogeneidade existem dificuldades de adaptação às diferenças e especificidades. Dois exemplos acerca da carreira dos docentes. No caso do Ensino Especializado de Música a carreira tem assentado no modelo dos professores do secundário. No entanto, as características deste tipo de ensino aproxima-se muito mais da “forma universitária” de que fala Lise Demailly (1992), do que de uma forma escolar predominante no Ensino Secundário. No que se refere às antigas formações veja-se a dificuldade dos professores do “ensino regular” de aceder a determinadas formações académicas uma vez que os diplomas que serviram de base à sua formação ( Lei n.º 18:881 de 1930 e Experiência Pedagógica de 1971 ) não lhes dado equivalência, nem em termos de formação académica e de prosseguimento de estudos, nem a bacharelato nem a licenciatura.
 Num plano mais micro, valoriza-se um determinado tipo e modo de formação, com os seus centros e periferias. Por exemplo o conceito de disciplinas anexas que aparece na Lei n.º 18:881 de 25 de Setembro de 1930, que se mantém na reforma de 1971 e se prolonga até à ultima década, bem como nas práticas de algumas escolas e professores. Centros e periferias que existem também no designado “ensino regular”, com a predominância de determinados tipos, modos (e modas) de formação.
No que se refere aos novos paradigmas existe a preocupação de articular subsistemas, de articular o formal, o não formal e o saber experiencial (Dubet,1996), atendendo aos diferentes tipos de objectivos e particularidades. Procura-se também um funcionamento em rede entre criação, produção, interpretação e formação. Como acontece no Dec-Lei n.º. 344/90 de 2 de Novembro onde se procura articular várias dimensões (apesar de não ter sido regulamentado e de conter um conjunto de problemas) e em alguns festivais de música (como por exemplo o Festival de Guitarra de Trofa).
3.2. Dos saberes: da hierarquização à complementaridade
As imagens do solista e da orquestra têm sido elementos recorrentes na configuração social, simbólica e na organização pedagógica do ensino especializado, através do nível de formalização, de organização, de estandardização, da divisão do trabalho e das representações sociais. No que se refere ao “ensino regular” a imagem e a metáfora dominante é a da “flauta de bisel de plástico” e o instrumental Orff.
 No primeiro caso, a imagem do solista tem sido quase como um deus ex maquina na configuração deste subsistema de ensino e no imaginário de diferentes professores e alunos, alimentados em grande medida pelos media e pela indústria cultural. Em relação à orquestra, a sua estandardização e expansão, assim como a sua organização interna, está relacionada com o desenvolvimento da industrialização europeia (Nettl,1995:34) das tecnologias, a nível dos diferentes instrumentos e do reportório que lhes corresponde. À medida que o processo de industrialização se desenvolve, o conjunto instrumental característico da orquestra reforça-se com a introdução de outro tipo de instrumentos e com as necessárias adaptações técnicas e artisticas.
 Estas modificações tecnológicas e artísticas têm diferentes tipos de implicações, entre as quais o desenvolvimento de uma estrutura hierarquizada, com os seus centros e periferias. Como refere Atalli (1977), “a constituição da orquestra e a sua organização são também figuras de poder na economia industrial (…) Os músicos, anónimos e hierarquizados, em geral assalariados,  trabalhadores produtivos, executam um algoritmo exterior, ‘a partitura’ (…). Eles são a imagem de um trabalho programado na nossa sociedade, cada um deles não produz que um elemento do todo, sem valor em si” (p. 132).
 Nesta hierarquia social e artística, os instrumentistas de corda, por exemplo, desempenham um papel de maior relevância e os instrumentistas de sopro (em particular dos metais) e de percussão papéis mais subalternos. O primeiro violino é suposto ser um músico com melhores qualidades e competências do que os colegas que se sentam a seu lado ou atrás de si.
Em segundo lugar, a divisão do trabalho característico da orquestra encontra-se na forma como as diferentes aprendizagens se organizaram: diferentes tipos de instrumentos, diferentes tipos de professores, diferentes tipos de repertórios, diferentes espaços. Nesta divisão, o conceito de “disciplinas anexas”, como já foi referido anteriormente, é um dos elementos relevantes. “Disciplinas anexas” que se podem caracterizar como um conjunto de cadeiras de âmbito teórico, como por exemplo História da Música, ou teórico-prático, por exemplo Formação Musical e Composição, que são consideradas subsidiárias, senão mesmo subservientes à formação central que é o instrumento ou o canto.
 Contudo, as diferentes transformações ocorridas ao longo do século XX, em particular na segunda metade do século, no que se refere aos modos de pensar a música, às diferentes estéticas entretanto desenvolvidas, às tecnologias, aos modos de produção, de reprodução e fruição musicais e às características do mercado artístico, vieram contribuir para algumas rupturas neste paradigma.
 Tal sucedeu, em primeiro lugar, pelo facto de que a actividade profissional solística representa não só uma percentagem ínfima de todos aqueles que exercem uma actividade profissional como também está dependente de um conjunto de outros factores que ultrapassam a formação em si, nomeadamente factores que se prendem com a economia de mercado, a globalização e as indústrias culturais. Em segundo lugar, pelo facto de que a centralidade da orquestra se disseminou por um conjunto de efectivos instrumentais diferenciados, o que envolve um outro tipo de combinações instrumentais relativamente acêntricas em relação ao modelo do século XIX. Em terceiro, com os estudos da música antiga, por exemplo, outro tipo de instrumentos que tinham um papel marginal ou inexistente na orquestra do século XIX vieram reocupar um lugar de cidadania, nomeadamente a flauta de bisel. Por fim, com a mestiçagem das diferentes tipologias musicais, instrumentos como o saxofone, por exemplo, vieram ocupar uma outra centralidade na formação.
Apesar destas transformações o currículo do ensino especializado foi pensado e organizado em torno de um reportório central que percorre uma faixa relativamente restrita da produção musical ocidental. Esta faixa está situada, grosso modo, entre a música e os compositores do século XVIII e dos primeiros anos do século XX (Folhadela et alli, 1999;Nettl, 1995; Small, 1980). Toda a música que se situe fora destas fronteiras, mais cronológicas do que estéticas, têm tido um papel pouco relevante no contexto da formação, do ensino e da organização pedagógica: da música antiga (medieval, renascentista e início do barroco) à música contemporânea, do Jazz às músicas populares e étnicas. Mesmo dentro destas fronteiras, os elementos oriundos da investigação musicológica, etnomusicológica e da sociologia das artes não eram e não são, numa perspectiva global, incorporados. O referencial predominantemente tecnicista tem reservado um papel marginal às características diferenciadoras (estéticas, sociais, culturais, sociais) dos universos das diferentes obras, compositores e saberes.
 Esta concepção “unimusical” (Nettl,1995:86) ou “monocultural” (Small,1980) manteve-se inquestionada durante décadas. Sugestões para a introdução de outras músicas e outros compositores no currículo e nos diferentes recitais e concertos que estivessem fora desta centralidade “clássica”, mas dentro da cultura musical ocidental, eram recebidas com desdém, senão mesmo com atitudes de grande violência, à semelhança, por exemplo, do confronto entre Giovanni Artusi e Claudio Monteverdi a propósito da Prima Pratica e da Seconda Pratica.
 Contudo, a par deste modelo predominante, alicerçada na tradição clássico-romântica, existem outras correntes que têm por base outro tipo de paradigmas que salientam e valorizam a  polimusicalidade na formação de um músico e que, não renegando os diferentes períodos da História da Música Ocidental, estão abertas a outras tipologias e culturas musicais, a outras correntes estéticas, numa perspectiva enquadradora dos diferentes saberes artísticos, científicos e musicais, da musicologia à etnomusicologia, do Pop ao Jazz e à Música Electrónica (cf. entre outros, Folhadela et alli,1999).
Dito de um outro modo, procura-se a complementaridade e articulação entre os saberes (técnicos, teóricos, práticos, estéticos e outros) na promoção da autonomia e do dissenço, tendo por base a perspectiva de “música como cultura” (Martí,2000;Swanwick,1998). A ênfase centra-se nas pessoas, nos saberes e na experimentação (e não nos conteúdos meramente escolares e muitas vezes descontextualizados) o que conduz a uma “cultura de proximidade” aberta à modificabilidade e à contextualização, aberta à incorporação dos interesses e dos saberes locais.
 No segundo caso (“ensino regular”), independentemente da música como cultura e arte, independentemente das apetências diferenciadas dos alunos de aprenderem a tocar instrumentos, institucionalizou-se um tipo de formação em que o centro está sobretudo numa mescla indefinida de conceitos e pré-conceitos que dificilmente se descortina um trabalho verdadeiramente artístico. Um dos problemas parece ter sido o tentar transformar o ensino artístico-musical, nas suas múltiplas componentes, numa disciplina em que predominam conteúdos e “saberes de plástico” (cf. Fernandes et alli, 1998; Pais,1994).
 Contudo, convém salientar, a existência de outro tipo de abordagens e posturas artísticas, estéticas e operacionais que rompem com este modelo predominante e que existem em escolas de norte a sul do país, onde a centralidade da formação se encontra num tipo de pensamento e acção mais consentâneo com as complexidades dos mundos da arte, dos mundos da música, dos mundos da educação e cultura .
3.3. Das aprendizagens: da exterioridade às pessoas
A problemática das aprendizagens remete para uma questão que se pode resumir na pergunta: como é que se processa a “transmissão” da música? Questão de resposta complexa e divergente consoante as posturas estéticas, culturais, territoriais e pedagógicas (cf. Campbel,1991; Gordon,1993; Hennion,1988; Howe & Sloboda,1991a e 1991b; Sloboda,1990; Swanwick,1979,1988).
Se se olhar sob o ponto de vista das tecnologias, no contexto da música ocidental, podem distinguir-se, segundo Nettl (1995:37), quatro formas diferentes de transmissão. A primeira realiza-se numa perspectiva auditiva, em que a aprendizagem se efectua a partir da recepção ao vivo, em concertos. A segunda, através da notação escrita: isto é, pode-se aprender a partir de uma única versão notada pelo compositor ou pelo intérprete e que pode ser diferente de outras cópias existentes, o que significa que cada indivíduo pode aprender através de cópias com ligeiras diferenças. O outro modo é através da música impressa, estandardizada. Neste caso, todos os indivíduos aprendem uma determinada obra a partir de uma mesma notação. Por último, pode-se aprender através da gravação, áudio e/ou vídeo, embora neste caso, a recepção possa ser igual ou idêntica.
 Contudo, os diferentes tipos de culturas musicais e estéticas têm uma variedade muito grande nos modos como abordam esta problemática e, qualquer que seja o suporte utilizado, o modo de transmissão é sempre variável e contextual (cf Campbel, 1991).
A “estrutura da transmissão” pode centrar-se em três pólos: técnico, teórico e estético. O pólo técnico pelo facto de que o “mestre” mostra como se faz e o aluno imita, reproduz uma determinada aprendizagem, do mesmo no mesmo, visando a continuidade de uma tradição (real e/ou imaginária). Este modo de transmissão, de alguma forma associado à tradição das corporações, ao incidir sobre a experiência, pouco se questiona, a não ser nos modos de autoregulação e de regulação inter-pares. No pólo teórico comunicam-se os princípios e as regras de aplicação e a tradição repousa basicamente na autoridade do professor, sustentada pelos seus próprios contextos de referência. Por último, o pólo estético, que se faz através do julgamento e do gosto, assenta numa confluência entre a jurisprudência dos mestres, o julgamento e o gosto do professor e a sensibilidade do aluno.
 No entanto, o gosto, o “progresso” e o poder da interpretação, a compreensão e a apreciação, a familiaridade com o repertório, o conhecimento da harmonia e do contraponto bem como os princípios das formas musicais, não são em si “educação”. A educação deve envolver não só a habilidade para ler música mas a compreensão de como é que ela funciona, não o tocar escalas mas a compreensão do conceito de som e de nota musical e as diferentes possibilidades combinatórias em que os sons, as escalas e os diferentes modos de organização do material sonoro podem ser gerados e justificados no âmbito socio-técnico, sociohistórico, estético e comunicacional (cf. Sparshott,1995:54-58).
Ou seja, a perspectiva assente na modelagem, na imitação e na repetição, tem criado outro tipo de tensões existe uma outra tendência em contraponto ao modelo “mestre-aluno” em que o aluno não é considerado como “um mero consumidor de dum determinado produto”. Tendo em consideração a necessidade do desenvolvimento da sua autonomia e da sua personalidade artística, esta diferença enquadra-se numa corrente pedagógica e estética que se pode designar pelo “estabelecimento de pontes entre a pedagogia individual e a pedagogia colectiva” (Lartigot & Sprogis, 1991:90), em que o modo de racionalidade não está na relação de dependência “mestre-aluno”, mas sim numa racionalidade tutorial e de parceria.
 Isto é, a formação não se estabelece apenas num único sentido, professor-aluno, nem numa única vertente, essencialmente técnica e mimética, mas pelo contrário, apresenta-se como uma forma privilegiada da construção de uma individualidade artístico-musical e pessoal, em que a  aprendizagem tem múltiplos sentidos e valências numa relação dialéctica em que convergem o compositor e a obra em estudo, o tempo sócio-cultural, os paradigmas de referência em que a obra foi escrita, a pessoa do professor e a pessoa do aluno, o confronto com as memórias e os públicos.
 Este entendimento tem por base um outro paradigma em que a aprendizagem musical procura englobar um conhecimento de todos os aspectos inerentes à música e a outras áreas do  conhecimento artístico-cultural-científico, de forma a contribuir para que o aluno utilize consciente e autonomamente as suas competências na determinação das diferentes opções que se colocam em qualquer domínio da sua actividade musical e da sua relação com as outras artes e saberes.
 Neste tipo de racionalidade, a dinâmica colectiva em todos os níveis da formação parte do pressuposto que o centro se situa na confluência entre diferentes culturas musicais, a pessoa do aluno e que as fronteiras entre a interpretação e a técnica, a reprodução e a imitação, o trabalho e o prazer, o ensino especializado e não especializado, são menos dogmáticas e imperativas, abrindo-se àquilo que Lartigot & Sprogis (1991) designam por “pedagogia de escuta” (p.97). Ou seja, um tipo de pedagogia que se situa no cruzamento entre diferentes caminhos e complexidades, que advêm da técnica, do imaginário, da imitação, da cultura, da invenção e da produção em que o aluno não é apenas um consumidor mas um produtor e em que a ênfase se situa no processo (Novoa,1989;Smal,1980), na compreensão global da obra, na adequação das tecnologias aos indivíduos, na formação ao longo da vida e em que as normas, códigos e as convenções são devidamente enquadradas nos diferentes contextos sociotécnicos e socioculturais.

3.4. Da profissão professor: de elo de transmissão ao animador e orientador
O professor de música inscreve-se numa rede de interacções, influências e de constrangimentos que advêm da sua formação pessoal, de uma herança histórica, do conjunto de ideias, conceitos e pré-conceitos que cruzam o mundo da arte, da música, da educação, da cultura e do trabalho. A este quadro à que associar as condições socioprofissionais dos músicos e a situação da música, em termos políticos e do mercado dos bens simbólicos bem como a formação e inserção nos contextos de trabalho (Folhadela et alli, 1999; Hargreaves, 1998; Henriques, 1991; 1996; Menger,1983; Pais,1995;UNESCO,1997).
Neste contexto, as dimensões simbólicas, a tradição histórica, os papéis, os contextos e a estrutura profissional no domínio da música são simultaneamente um elemento fundador e legitimador da concepção, construção e formação dos percursos identitários, a par dos diferentes tipos de organizações onde foram socializados e formados e onde exercem actividades profissionais, no domínio de diferentes escolas e de diferentes agrupamentos musicais.
Por outro lado, existiu um confronto de paradigmas entre a especificidade do exercício desta actividade e o contexto geral da profissão docente, como já referi anteriormente. A criação de instituições para a formação de professores de música é recente no sistema educativo português. Só nos finais da década de 80 e princípios da de 90, começaram a aparecer no sistema cursos de formação de professores (apesar das debilidades conceptuais, artísticas, cientificas e pedagógicas) e disciplinas de caracter científico no domínio da educação, em particular, no que se refere às didácticas do instrumento.
A relação "mestre-aluno" predominante na formação (Campbel,1991 Menger,1983; Kingsbury,1988; Netl,1995), pela qual estes docentes passaram e construíram as suas identidades, a diversidade de contextos de trabalho onde desempenham a actividade, a diversidade sociohistórica do entendimento das diferentes tipologias musicais, dos diferentes instrumentos, do acesso ao mercado cultural, potenciaram e potenciam a relação música-formação-interpretação-criação-públicos-mercados, valorizando ou desvalorizando determinados modos de exercício profissional, mais abertos ou fechados às mudanças.
A subjectividade, individualidade, carisma e as diferentes comunidades artisticas musicais, sociais, organizacionais que atravessam o percurso vivencial e profissional dos docentes de música, contribuem para uma afirmação crescente de uma identidade própria ou, pelo contrário, alimentarem crises identitárias pelos diferentes tipos de vocações existentes, por alguma instabilidade emocional, pela procura de novos pólos identitários (Vessilier-Ressi,1995).
 A própria "noção de modelo vivo" (Lartigot & Sprogis,1991:92), em que o professor  poderia ser o melhor músico que o aluno ouvia, possivelmente durante anos, e em que o princípio de imitação poderia funcionar, hoje, pelo contrário, com a proliferação dos diferentes media, com a formação de proximidade e policentrada (formal e não formal) as funções e os papeis dos professores adquirem outros contornos, outros sentidos, novas complexidades, em que a centralidade está, sobretudo, na capacidade de mediação entre diferentes territórios e heterogeneidades.
 De facto, o debate em torno profissão de professor de música e a sua operacionalização, decorreu, ao longo das últimas décadas do século XX, numa encruzilhada paradigmática que tem afectado o desenvolvimento da formação e da profissionalidade destes profissionais. Encruzilhada que resulta, por um lado, de uma “crise de ideias” e da ausência de um projecto social e cultural acerca do papel das artes na educação, acerca dos papéis deste tipo docentes e, por outro, da predominância de paradigmas assentes (a) numa perspectiva positivista da formação, em que a formação deve inculcar os meios através dos quais se pode ensinar música e (b) numa perspectiva reprodutora em que os professores tendem a ensinar como aprenderam.
Ora, num contexto cada vez mais incerto e paradoxal, mais local e global, mais descentralizado (Handy,1994; Nóvoa, 1989;), exige-se aos docentes de música, a nível educativo e artístico, uma diversidade funções e de competências que lhes permitam saber gerir diferentes mundos e realidades (Boltansky & Thevenot,1991), informações e saberes cada vez mais diferenciados.
De um outro modo, os professores não se limitam a imitar outros professores de música, que não se limitam a reproduzir determinadas técnicas e modos de pensar a arte, a música e os saberes, não sejam apenas técnicos mas também criadores, capazes de reflectir (Schon,1992) e em que a prática é um meio privilegiado na produção e no desenvolvimento de um pensamento crítico e de acções qualificantes como professores reflexivos e criativos (Woods, 1995).
 Em resumo, nos paradigmas tradicionais a profissão do professor assenta na transmissão dos conhecimentos, num modo de trabalho pedagógico assente na rotina e nas tecnologias pré-determinadas onde predomina a redução da complexidade, uma estrutura hierarquizada, quer na perspectiva da relação prof-aluno, quer na perspectiva da produção e fruição, na desarticulação entre os desempenhos artísticos e pedagógicos.
No outro pólo o professor é entendido como animador e orientador. Como referiu um professor, “eu acho que na música não há professores. Existem orientadores” (Vasconcelos,2000). Neste sentido, o modo de trabalho é mais complexo assente entre a mudança e a permanência, rotina e inovação com uma estrutura mais horizontal (a relação professor-aluno não é de sentido unívoco mas biunívoco), onde existe uma atitude mais colaborativa e menos burocrática e em que a articulação entre os desempenhos (o compositor, o investigador, o músico prático, por exemplo) intersectam e retroalimentam a profissão docente.
3.5. Da escola: do isolacionismo a pólo de desenvolvimento
A escola, como “microcosmos social complexo” (Munoz,1992:320) resulta de um combinação múltipla de factores que resultam, num plano interno, dos modos como os diferentes actores produzem uma acção organizada, pelas racionalidades predominantes, pelos jogos de poder existentes, pelo sistema de acção histórico. Por outro lado, ela é também o resultado das influências diversificadas que advêm do ambiente externo com o qual estabelecem relações de concorrência, parceria ou de isolamento. Tudo isto contribui para a construção identitárias das escolas como organizações.
 De acordo com Greenfield (1985:5248-5249) pode afirmar-se que primeiro a escola é formada por pessoas, está nas pessoas; segundo é uma invenção social ou seja, não é um sistema, uma estrutura, mas sim uma realidade construída socialmente ou uma ilusão construída pelos individuos e por eles mantida; terceiro, o poder organizacional nasce do envolvimento e da participação individual em confronto com os pressupostos do outro; quarto, o mundo dos valores está no interior de nós próprios e é um realidade subjectiva, isto é, a escola está repleta de valores e também eles são inevitavelmente e irredutivelmente subjectivos.
Estas assunções remetem para o entendimento da escola como instituição multiforme, onde a multiplicidade de procedimentos e de sentidos que os indivíduos atribuem à escola e à sua acção colectiva, contribuem para que ela seja uma entidade singular que resulta da coexistência “de várias coisas ao mesmo tempo” (Morgan,1993), sendo encarada como pólo de desenvolvimento em que a participação e o envolvimento da comunidade é fomentada e valorizada numa rede de interdependências e trocas, numa perspectiva de sustentabilidade social e cultural.
 Contudo, nem sempre existiu este tipo de entendimento acerca da escola. Com efeito, nos paradigmas tradicionais a escola perspectivada de uma forma elitista e fechada às diferentes estéticas, às diferentes tipologias musicais, às diferentes apetências dos alunos e públicos. O seu funcionamento é predominantemente burocrático, hierarquizado e de fronteiras bem definidas (cf. Vasconcelos,2000, pp. 174 e ss.) existindo uma desarticulação entre a escola e as diferentes tipos de comunidades, locais, regionais, artísticas.
 Nos novos paradigmas a escola é mais democrática e contextualizada (nas diferentes dimensões e valências em que desenvolve a sua actividade) e a sua construção e funcionamento enquadra-se numa perspectiva pós burocrática, um tipo de organização “em que cada um assume a responsabilidade pelo sucesso do todo” (Heckscher,1994:24), na partilha de metas e não na base de um poder estabelecido de uma forma hierárquica. Por exemplo, não só as diferentes tipologias e estéticas musicas têm lugar como são encorajadas numa rede de sentidos e de lideranças diferenciadas, utilizando diferentes tipos de recursos internos e externos através de um esforço de colaboração em que se ligam diferentes unidades que tradicionalmente funcionavam separadamente e com poucas relações entre si.
Em síntese. Numa primeira aproximação a esta problemática, o quadro seguinte, pretende dar conta das principais diferenças que, do meu ponto de vista, caracterizam as polaridades identificadas.

4. Considerações finais
Esta breve e primeira caracterização de algumas das dimensões existentes do ensino da música em Portugal nas últimas décadas do século XX, pretende realçar a polaridade divergente nos modos de pensar a formação e a escola, as profissões e actividades musicais e a cultura. Significa isto que no ensino de música têm coexistido tendências opostas situadas no confronto entre uma tradição paradigmática oriunda da tradição clássico-romântica e um outro paradigma em que a centralidade se encontra no entendimento mais global da formação de um músico tendo em conta os diferentes contextos sócio-técnicos, sócio-históricos (AAV, 1992; Cabral, 1997; CDE, 1973; Castro,1997; Fragateiro et alli., 1995; Franco, 1992; GETAP,1991; Nogueira, 1987; Nogueira et alli.,1991; Perdigão,1981).
 Dentro da primeira tendência, algumas das suas características conduzem, parafraseando Nettl (1995), a que a organização formativa, social e sócio-musical do ensino da música resulte de uma combinação de factores dos quais se destacam: (1) a transferência do modelo industrial da corporação e do mercado para um ambiente educativo; (2) o papel da música na cultura ocidental; (3) os papéis simbólicos desempenhados pelos diferentes instrumentos, pelo canto, pela direcção, e a sua interrelação com o papel dos vários grupos na sociedade; (4) a hegemonia dos grandes grupos de conjunto como metáfora musical de uma organização de “sucesso”; (5) a imposição de uma taxonomia de raças e géneros na esfera musical e educacional; (6) o conceito de talento; (7) o conceito de génio associado ao panteão dos compositores não vivos.
 Dentro da segunda tendência, a formação deve passar de um paradigma “estritamente técnico-musical”, positivista, para um paradigma de “sustentabilidade social e artística”. Isto é, este universo formativo, faz parte de um determinado território cultural, formativo e geográfico em que a sua acção se inscreve. E é na sua relação de parceria com os diferentes tipos de territórios que o modo de construir a acção educativo-artística (bem como a escola e os modos de organização) se alimenta e se projecta como pólo de desenvolvimento.
Contudo, a predominância da primeira tendência, com as suas polaridades e confrontos com outros paradigmas, tem criado aquilo que Hennion (1988) designa por uma “cultura de acusação e de incompreensão”, em que o trabalho desenvolvido se centra num modelo de escola e formação técnica, alicerçada num eixo exclusão/indiferença, pouco adaptado às necessidades sociais, culturais e individuais.
Nos "mundos da arte" (Becker,1984 ) as diferentes transformações e os ritmos com que os diferentes sistemas se fecham (Bourdieu,1994) e se adaptam às transformações são muito diferentes. O sistema de ensino "simboliza geralmente a inércia institucional, expressão de uma decalage estrutural entre a evolução da produção e da reprodução dos produtores e consumidores" (Menger, 1989:53). De todos os sistemas de ensino artístico o ensino da música "(…) é certamente o único a sofrer profundamente as contradições que governam a existência pública da disciplina” (Idem).
 De acordo com este último autor, apesar da multiplicidade dos públicos, em termos de idade, condições sociais e culturais, condições de origem, a multiplicidade de empregos socio-culturais-artisticos-pedagógicos, "a formação para estes papéis pedagógicos, novos ou remodelados” (Idem:31-32), não é nem controlada pelas entidades públicas ou científicas reconhecidas, nem clarificada nas suas heterogeneidades, quando a formação é reconhecida e sancionada por um determinado diploma.
 Num tempo de reconfigurações paradigmáticas e no sentido de se constituir e se construir “alternativas à deseducação artística das escolas e do ensino” (Ribeiro,2000), de romper alguns ciclos viciados e viciosos que servem de justificação (Boltanski & Thévenot,1991) a algumas operacionalizações, devemos estar atentos às estruturas profundas que enformam os modos de pensar e agir, à polifonia das vozes e dos olhares, de forma a podermos não só questionar as nossas práticas e modos de ensino, como também reconceptualizar o ensino da música (nas suas valências diversificadas) adequando-o aos saberes e complexidades contemporâneas. Como refere António Pinho Vargas, numa entrevista ao DNA em Agosto de 1998, “quando muda um paradigma as pessoas que olham a realidade à luz do paradigma antigo pura e simplesmente não conseguem ler, compreender e interpretar aquilo que é novo. A questão musical desencadeia questões específicas mas não pode ser desligada do contexto".
Para terminar, as características de fronteira do ensino da música, o estar entre a educação e cultura, as convenções e os indivíduos, o passado e o presente, o trabalho e o lazer, tem sido, por um lado, a sua fraqueza (atendendo às ideias dominantes em termos sociais, culturais e políticos) mas, por outro, a sua força na configuração e reconfiguração de futuros individuais e colectivos.
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[1] Comunicação apresentada no II Encontro de História do Ensino da Música em Portugal, Braga, realizado em Maio de 2001 no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho

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