Comemoram-se este ano os 30 anos da lei de bases do sistema
educativo (Lei n.º 46/86) publicado no Diário da Republica de 14 de Outubro de
1986 (I Série n.º 237). Esta foi alterada pelas Leis n.º 115/97, de 19 de
Setembro, 49/2005, de 30 de Agosto, e 85/2009, de 27 de Agosto, mantendo
contudo as suas características essenciais. E dentro destas características
essenciais uma das dimensões que percorre todo o articulado, do pré-escolar ao
ensino superior, está relacionada com as artes, com a cultura, com a estética e
com a criatividade.
Contudo ao longo de todos estes anos a relação entre
as artes, a cultura e a educação, apesar de toda a retórica política, sempre
foi uma relação problemática. Relação problemática assente num paradoxo entre a
afirmação da sua importância na formação das crianças, jovens e adultos, bem
como no desenvolvimento comunitário, e as dificuldades de elaboração de
políticas e de meios para a sua efectiva implementação. Veja-se por exemplo o
fato de, desde 1973, terem existido mais de 20 grupos de trabalho que se
debruçaram sobre esta relação. Dentro destes grupos, e dos relatórios
produzidos, desde grupos ligados ao Ministério da Educação, ao Conselho
Nacional de Educação e outros ligados a determinadas instituições, o que
ressalta de todo este trabalho é a o acentuar permanente da relevância (a) da
articulação entre as políticas de educação e da cultura; (b) da educação artística
e da educação estética na formação das crianças, jovens e adultos e (c) de se
encontrarem formulações políticas e estruturais que contribuam para que as
artes na educação sejam um realidade.
Neste contexto, não deixa de ser significante que no
Relatório do grupo de contacto entre os Ministérios da Cultura e da Educação, coordenado
por Augusto Santos Silva e intitulado “A Educação Artística e a Promoção das Artes
na Perspetiva das Políticas Públicas”, publicado em 2000, se escreve logo no
ponto 1 que “o objectivo central deve ser garantir a realização do determinado na
Lei de Bases do Sistema Educativo, no sentido de que as artes constituam uma
dimensão necessária da educação básica para todos. É preciso, pois, criar as
condições indispensáveis para que todas as crianças disponham de oportunidades
de uma iniciação artística, na sua escolaridade básica” (p. 17).
Passados todos estes anos o panorama desta relação artes-cultura-educação,
continua muito preocupante, mantendo-se praticamente inalterado no que diz
respeito à escolaridade obrigatória bem como no que se refere às artes no
ensino superior, em particular a sua inserção nos cursos que não sejam de
natureza artística. A este panorama contrapõe-se o desenvolvimento das práticas
artísticas em todo o país, incluindo Açores e Madeira, e a importância
que cada vez mais a nível local se dá à dimensão artística e cultural. Veja-se
por exemplo o incremento dos designados “quarteirões das artes” ou do trabalho
em Idanha-a-Nova como membro da UNESCO nas “Creative
Cities Network of Music”.
Ao
procurar encontrar razões que ajudem a compreender este aparente paradoxo entre
a afirmação da importância das artes na formação e a dificuldade na sua implementação,
e de um modo sintético, um duplo e interdependente factor parece estar subjacente
a esta dificuldade política e de políticas: (a) a contaminação das políticas
públicas por organizações internacionais e (b) as dificuldades internas do
campo artístico-educativo.
No
primeiro caso, desde o 25 de Abril que as organizações internacionais, desde o
FMI à OCDE e depois a União Europeia desempenham um papel relevante na
influência política e de políticas. E esta influência, que se traduz não só na disponibilização
de financiamentos mas também de aconselhamento técnico, tem sido nefasta pra as
artes na educação, veja-se as políticas da troika
nos últimos 4 anos, para além da subserviência dos diferentes governos. E isto
tem-se traduzido, com raríssimas excepções, no que se tem designado “back to
basics”, do ler, escrever e contar, da excessiva funcionalização e utilitarismo
da formação, em qualquer nível em que se exerça, de modo a que se possa dar
respostas ao tal mercado de trabalho e ao desenvolvimento da economia.
No
segundo caso, as diferentes visões existentes acerca do papel das artes na
educação e do papel dos artistas, muitas vezes alicerçados em paradigmas
bastante afastados dos campos criativos, dos vários mecanismos do poder
existentes no interior do campo e da luta por visibilidade social, cultural e
outras, dos egos excessivos que se traduzem muitas vezes na dificuldade de ver
outros mundos, das práticas pedagógicas no interior das escolas, burocratizadas,
academizada, “manualizadas” e muito pouco criativas, e com pouca relação com os
mundos das artes, apesar das excepções que existem e felizmente começam a ter
um dimensão significativa, afigura-se como outra dimensão desta problemática. Não
basta afirmar da importância das artes na educação quando as práticas
formativas estão assentes em determinados modelos e “conteúdos” que pouco dignificam
o que é estruturante nas aprendizagens artísticas: a criatividade, o
desconhecido.
Deste
modo importa, reolhar para esta relação artes-cultura-educação, de modo a
cumprir o que de inovador ainda se mantém na Lei de Bases do Sistema Educativo,
utilizando as palavras de Alexandre Quintanilha, em relação à ciência mas que
se pode transpor para a educação artística:
"[...] temos
de nos sentir insatisfeitos com o conhecimento atual. sentir profundamente que
as explicações que existem para uma determinada pergunta não nos satisfazem.
que essas explicações se contradizem e parecem invocar muitas mais perguntas.
sem
imaginação também ninguém pode ser cientista [ser pessoa, ser artista]. temos
de ter a coragem para pensar em respostas "fora da caixa". imaginar
soluções, muitas vezes até mesmo contraintuitivas. não ter medo de mergulhar no
escuro, de nos sentirmos confusos e até um pouco perdidos à procura de algo que
não sabemos ainda muito bem o que pode ser.
e sem muita paixão e muito trabalho também
ninguém lá chega. conseguir ir além das fronteiras do conhecimento não é fácil,
mas a recompensa é enorme. [...] treinar
a curiosidade, a imaginação a paixão é fundamental [...] e nunca se esqueçam que as certezas são o pior
inimigo de qualquer cientista" (Público, 29 de outubro, p. 13)
Esta afirmação
é todo um programa que poderá contribuir para este reolhar. Assim, pensar a educação
artística como espaço de construção de criatividades e de liberdade e, por mais
paradoxal que possa parecer, não serve para nada, como defendo há muito tempo.
O não servir para nada significa que a educação artística está para além da perspectiva
funcionalista que domina as diferentes teses sobre a sua importância. O não
servir para nada significa que a educação artística é uma maneira de construir
a liberdade individual e coletiva fora das múltiplas competividades e
empreendedorismos que dominam o discurso e a ação da política e de algum
discurso educativo. O não servir para nada significa a assunção de um outro
tipo de caminho em que o saber, o conhecimento, em que o processo acerca
entendimento do mundo, dos mundos, está para além da superficialidade e da
espuma dos dias. E esta sua aparente ambiguidade é o seu ponto forte que
importa desenvolver. Esta aparente ambiguidade é uma dimensão essencial da
educação artística como educação para a criatividade. Para se ser livre.
Talvez
libertando-nos de alguns dos constrangimentos do passado e estando atentos à
polifacetada criação artística, nos seus vários domínios, se possa encontrar
outros caminhos nesta relação tensa e difícil entre as artes-cultura-educação.
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