Com
efeito, vinte e seis anos depois do encontro, “Educação Artística Especializada”, realizado na Maia em 1991,
organizado pelo Gabinete de Educação Tecnológica Artística e Profissional
(GETAP), dezanove anos depois da realização do Encontro Nacional do Ensino Especializado de Música, realizado no
Teatro da Trindade em 20 e 21 de Janeiro de 1998, organizado pelo Núcleo do
Ensino Artístico do Departamento do Ensino Secundário, realizou-se o designado
1.º Congresso do Ensino Artístico Especializado – Teoria e Prática (entre 3 e 5
de Fevereiro de 2017) na Fundação Calouste Gulbenkian, organizado pela
Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP) em
colaboração com diferentes instituições de ensino particular e cooperativo e
com instituições do ensino superior.
Para
além destes encontros, e das dezenas de outros encontros, seminários e debates,
realizados de norte a sul do país e ilhas em que a problemática do ensino
especializado esteve presente, importa salientar, pelo envolvimento de
diferentes tipos de atores e discussões, mais três: (a) Encontro-Debate “Música
Erudita – Música Ligeira”, Fundação Calouste Gulbenkian 17 e 23 de Outubro de
1972; (b) o 1.º Congresso de Música, realizado na Amadora em 1987; (c) O 2.º
Congresso de Música, realizado em 1991. Estes dois últimos congressos
procuravam não separar o ensino das outras problemáticas relacionadas com a
música em Portugal, desde a discussão de uma proposta de lei e bases da música,
passando por questões relacionados com a música amadora (coros e bandas
filarmónicas), questões relacionadas com as orquestras bem como discussões em
termos de legislação que interligasse as várias dimensões relacionadas com a
música, a vida musical e o seu ensino. Existiram também uns congressos sobre a
profissão de músico realizados na FIL, dois se não me engano, mas sobre os
quais ainda não tenho documentação suficiente.
Cada
um destes encontros, com características e contextos políticos, sociais e
culturais diferenciados, merece um estudo e reflexão aprofundada não só pelas
temáticas abordadas como também pelos efeitos que tiveram, ou não, na
construção das políticas para este sector, nas tomada de decisão política, nos
modos como entraram ou não na agenda política e dos políticos. Isto para além
dos seus reflexos e impactos que tiveram na vida das escolas, dos professores e
dos estudantes, dos reflexos e impactos em termos sociais e culturais. Contudo,
neste texto, vou procurar identificar, sintetizar e problematizar alguns
aspectos destes encontros, algumas linhas comuns. Linhas comuns que se podem
aglutinar em torno de cinco grandes temáticas: (1) a relevância dos encontros e
as dificuldades da sua regularidade; (2) os encontros e as ambiguidades: entre
a legitimação de políticas e as dimensões científicas, artísticas e formativas;
(3) a recorrência dos temas em discussão: entre diferentes referenciais; (4)
das ausências e das permanências e (5) dos caminhos a percorrer: por uma política, políticas, da singularidade.
(1) A relevância dos encontros e as
dificuldades da sua regularidade
Os
encontros relacionados com o ensino artístico especializado, e em particular
sobre o ensino de música, têm tido duas percepções importantes. Por um lado
serem considerados relevantes não só pelo encontro dos vários atores envolvidos
neste tipo de formação como também pela partilha de ideias e, por outro, a
intermitência das suas realizações.
No
primeiro caso, a relevância da realização de encontros alargados manifesta-se
pelo fato de este ser um tipo de ensino muito atomizado e fragmentado em que
existe uma história de pouca discussão colectiva em torno de diferentes tipos
de questões e problemáticas que percorrem a formação artística e musical de
modo a que se partilhem e discutam ideias, projectos e perspectivas de futuro e
que, por outro lado, se contribuam para o incremento da visibilidade nacional de
um sector dinâmico mas que tem pouca repercussão em termos de comunicação
social. Esta relevância manifesta-se também pela vontade de poder contribuir
para influenciar o poder político na tomada de decisões para um sector de
ensino que desde sempre se considerou de certo modo marginalizado no contexto
das políticas públicas.
No
segundo caso, e apesar da sua importância, a regularidade dos encontros
realizados desde 1972 (e embora o de 1972 tivesse uma temática muito
específica, como referi anteriormente) é manifestamente insuficiente atendendo
às diferentes transformações sociais, culturais, artísticas, atendendo ao
número crescente dos atores individuais e colectivos envolvidos, atendendo aos
desenvolvimentos da investigação e da produção do conhecimento, particularmente
em termos internacionais. Das várias razões para estão não regularidade dos
debates, existem pelo menos três que me parecem relevantes. Uma centrada na
dificuldade de auto-organização deste sector de ensino, outra, relacionada com
a entrada tardia no sistema de ensino superior. Uma terceira razão, mais
ideológica, mas que entretanto começa a ficar esbatida, centra-se numa dupla
ideia: (a) de que “os músicos querem-se para tocar não para discutir” e (b) a
questão de que o ensino, sendo algo muito relevante, é um “parente pobre” no
contexto das práticas artístico-musicais.
(2) Os encontros e as ambiguidades:
entre a legitimação de políticas e as dimensões científicas, artísticas e
formativas
Em
1972, nas conclusões do Encontro-Debate “Música Erudita – Música Ligeira,
realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, José Niza escreve “Soluções de
resultados a longo prazo - sendo evidente que só se conseguirão resultados em
profundidade [inscrição da designada música ligeira no sistema de ensino]
mediante uma reforma total do ensino da música e dado que está em curso uma
reforma oficial deste tipo, resta-nos quanto a este ponto, aguardar os
respectivos efeitos, que, de qualquer forma, só poderão manifestar-se a longo
prazo”. [Dos documentos que consultei e alguns dos quais tenho cópia a
introdução de outras tipologias musicais era algo que esteve presente mas que
por diferentes tipos de resistências acabaram por não ser contempladas. Na
proposta de reforma que resultou num documento de 1973 (que o José Sasportes me
cedeu, e a ser aprovado teria colocado o ensino de música num outro patamar
semelhante ao que se passava na altura em termos internacionais mas que não foi
aprovado pelo Ministro Veiga Simão e depois com o 25 de Abril as prioridades
forma outras, a ideia era alargar a aprendizagem a diferentes estéticas e
géneros musicais e artísticos]
Em
1991, Joaquim Azevedo, no livro Educação
Artística Especializada. Preparar as mudanças qualitativas, escreve que “após
meses de intenso labor e de alargados debates, O Ministério da Educação,
através do Gabinete de Educação Tecnológica, Artística e Profissional – GETAP,
apresenta à comunidade educativa nacional uma reflexão sobre a educação artística
especializada […] Serão tempos de diálogo e d tomada de decisões, na
pluralidade e na liberdade de posicionamentos. Nas escolas, nas colectividades artísticas,
nas autarquias, entre os professores, os alunos e os pais que o debate seja
sempre livre e fecundo”. [Este encontro realizou-se num contexto de grande
turbulência com as propostas avançadas por Miguel Graça Moura para o ensino
artístico especializado, decorrentes da aprovação do Decreto-Lei 344/90 de 2 de
Novembro, a que o GETAP se opôs e que procurou encontrar e dar uma outra
perspectiva].
Em
1997, Domingos Fernandes, no livro Encontros
no Secundário – Documentos de apoio ao debate.2. Ensino Especializado de Música,
escreve “do ponto de vista da administração, é clara a intenção de prosseguir o
trabalho realizado para que outras medidas reguladoras e integradoras possam
ser tomadas. A realização deste encontro é um momento particularmente
importante deste processo. Na verdade, participarão representantes das escolas
públicas, de escolas do ensino particular e cooperativo, de escolas
profissionais e ainda de instituições do ensino superior […]”. Também no outro
livro que resultou da análise de diferentes materiais produzidos, O Ensino Secundário em Debate – Ensino
Especializado da Música. Reflexões de Escolas e de Professores, lê-se que “esta
iniciativa é reveladora da atitude da administração que pretende resolver os
problemas com que este ensino se defronta. De fato, depois da realização do Encontro,
já foram objecto de intervenção legislativa as habilitações para a docência no
ensino especializado de música, a criação dos quadros das escolas públicas, as
condições de contratação de pessoal docente para as escolas públicas e para as
escolas particulares e cooperativas e a profissionalização em serviço”.
Em
relação ao último encontro, 2017, Rodrigo Queiroz e Melo, director executivo da
Associação de Estabelecimentos do Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), disse
à Lusa, e noticiado no jornal Observador de 4 de Fevereiro de 2017 que “o Livro
Branco do EAE, que a associação quer ter concluído antes do verão, vai ser
apresentado no domingo, último dia do 1.º Congresso do EAE, promovido pela
AEEP” e que “o objetivo do projeto, referiu o responsável, é um conhecimento
aprofundado da rede de EAE, que é maioritariamente privada — em 137
estabelecimentos 128 são privados, de acordo com os dados da AEEP — por forma a
aumentar a rede com uma base sustentada. “Queremos acreditar que este Governo,
daqui a um ano, também estará disponível para um salto quantitativo importante
para garantir que mais portugueses têm acesso a esta oferta educativa. O nosso
objetivo é dizer: o que existe é isto, comparar com o número de alunos em cada
nível de escolaridade em cada região do país, para podermos fazer um maior
equilíbrio na distribuição da oferta e para percebermos onde há zonas de
carência que precisam claramente de um investimento maior”. O Jornal acrescenta que “até domingo o congresso vai discutir “o ensino
no ensino artístico especializado”, focando-se nos currículos e na forma de
ensinar nestas escolas, deixando a “discussão política” sobre a rede de escolas
fora da iniciativa.”
Estes
quatro exemplos evidenciam claramente que este tipo de encontros se situa entre
a construção de políticas, ou melhor a legitimação de determinadas opções e decisões
políticas e as dimensões mais reflexivas e científicas, baseadas em diferentes
tipos de conhecimentos e de estudos.
(3) A recorrência dos temas em
discussão: entre diferentes referenciais
Ao percorrer as temáticas e alguma produção escrita dos diferentes
encontros podem ser encontrados um conjunto de temas que têm sido recorrentes e
que, de um modo muito sucinto – atendendo à riqueza de alguns debates, englobo
em cinco grandes conceitos tensionais que percorrem diferentes tipos de
problemáticas políticas, pedagógico-artísticas e organizacionais.
Singularidade vs Homogeneidade. A história do ensino especializado de música tem sido caracterizada,
particularmente desde 1972, no âmbito da Comissão Orientadora da Reforma de
Madalena Perdigão, pelo confronto entre perspectivas mais uniformizadora e
perspectivas mais singulares (daí o nome de ensino especializado que só existe
a partir dos anos 90 com o GETAP). Este confronto está alicerçado na ideia de
um sistema educativo unificado e coerente e na centralidade da escola do
designado ensino genérico como modelo de organização e de administração. Daí o
confronto entre o que se pode designar por considerar-se os conservatórios e
academias por “escolas de música”. O relatório de 2007 coordenado por Domingo
Fernandes é um bom exemplo disso, ao contrário do relatório de 2000 coordenado
por Santos Silva, que apesar de tudo ainda perspectivava alguma diferenciação
deste tipo de ensino com outros.
E
este tipo de tensão abarca não só os modelos de pensar e de organizar a escola
como também outras dimensões como a produção legislativa, os modos de
regulação, os modos de conceber e organizar o currículo, os modos de conceber o
exercício da actividade docente e as articulações entre subsistemas e entre
diferentes instâncias governamentais e não-governamentais.
Público vs Privado. O pensar a
rede pública do ensino especializado de música, a incapacidade, ou melhor a não
vontade por parte dos políticos de a reformular, de estruturar um rede de
escolas com sentido, tem conduzido, e ainda bem, a uma proliferação de
conservatórios e academias um pouco por tudo o país e ilhas que se cifra em
mais de uma centena. Embora desde o trabalho de Madalena Perdigão se olhasse
para a rede pública em que existisse pelo menos um conservatório público por
cada distrito, a proliferação das escolas particulares, em particular na zona
litoral do país, conduziu a que muitas das discussões políticas e financeiras
se procurasse, por um lado, acentuar que o ensino particular e cooperativo
desempenhava uma função pública e, por outro, que este não era um ensino para
todos atendendo ao pagamento de propinas o caso do ensino particular. Esta
tensão, em que dominou muito uma “cultura de acusação”, envolveu, na década de
90, a discussão entre a relevância do ensino profissional e a inoperância do
ensino público.
Sendo
uma discussão ainda presente importa salientar três coias. A primeira é a
urgente necessidade de reconfiguração da rede de escolas através de estudos e
de avaliações que permitam valorizar os projectos que existem no terreno há
vários anos, nalguns casos décadas, mas que são a apoiados do mesmo modos que
outros mais recentes e procurar encontrar equilíbrios estatutários, legais e
financeiros adequados. A segunda, é que, de fato, as escolas particulares e
cooperativas desempenham e deverão continuar a desempenhar um serviço público
atendendo aos financiamentos por parte do Estado. A terceira é que a questão
que deverá ser colocada é nos modos como o público e o privado se complementam
e se articulam bem como procurar encontrar modalidades que potenciem a
individualidade dos projetos de formação. A questão do ensino profissional de
música (por questões de vária ordem e em particular pela sua disseminação
política e afastada do modelo original dos finais dos anos 80, e por questões
relacionadas com o incremento, felizmente interessante, da formação de
estudantes que podem “competir” em qualquer parte do mundo)
Hierarquias vs Heterarquias. Se
o conceito de hierarquia envolve questões relacionadas com o poder,
unidireccional e verticalizado que quase não permite interacções, e modos de
ordenar o mundo, os mundos, determinadas áreas são mais importantes do que
outras, o que envolve exclusões, a heterarquia rompe com este tipo de modelo e
onde todos os componentes de um determinado sistema são, por um lado, interdependentes,
em que o poder é horizontal e, por outro, em que os modos de ordenar o mundo,
os mundos, são inclusivos. Neste contexto, pode-se observar a existência de um
conjunto de tensões que têm atravessado os encontros e que, pela economia do
texto, sintetizo em duas: escola de músicos vs
escola de música e erudito vs popular.
No
primeiro caso, escola de músicos vs escola de música, e que decorre do que
escrevi no primeiro ponto, é uma discussão que também vem dos anos 70. Com
efeito, os conservatórios e as academias, em particular na década de 70 e de 80
dado o designado ensino vertical (em que o estudante percorria todos os graus
de formação – do básico ao superior- na mesma instituição sempre se olharam, por
serem quase únicas como escolas de formação de músicos profissionais. Aliás nos
anos oitenta a direcção do Conservatório Nacional, bem como do Conservatório de
Música do Porto, nos textos que enviavam para o Ministério e na luta que
travaram contra o Decreto-Lei 310/83 de 1 de Julho, salientavam preto no branco
que estas eram escolas profissionais (muito antes da existência deste tipo de
escolas).
Aliás
o próprio Decreto-Lei n.º 310/83 de 1 de Julho no seu preâmbulo refere
expressamente que “o presente diploma visa
estruturar o ensino das várias artes - música, dança, teatro e cinema - que tem
vindo a ser ministrado no Conservatório Nacional e em escolas afins, e tendo
como objectivos a formação profissional dos respectivos artistas. || A educação
artística que a todos deve ser proporcionada nos domínios da música e do
movimento e drama não é objecto deste diploma, uma vez que a sua definição se
situa no âmbito mais geral dos planos de estudos e programas dos ensinos básico
e secundário.”
Também
o Decreto-Lei n.º 344/90, de 2 de Novembro, faz a diferenciação entre a
educação artística genérica e a educação artística vocacional, em que no
primeiro caso, é um tipo de educação “que se destina a todos os cidadãos,
independentemente das suas aptidões ou talentos específicos nalguma área, sendo
considerada parte integrante indispensável da educação geral” e a segunda a educação artística vocacional é “a que consiste numa formação
especializada, destinada a indivíduos com comprovadas aptidões ou talentos em
alguma área artística específica.”
Nesta
questão o trabalho desenvolvido pelo GETAP vem introduzir um conceito novo,
ensino especializado de música, não só para se diferenciar doutro tipo de
educação designado por genérica, mas também acentuar não só a sua
especificidade no interior do sistema educativo como também acentuar que este
tipo de ensino era para formar profissionais.
A tendência
normalizadora das políticas públicas, de que o estudo coordenado por Domingos
Fernandes em 2007 é um exemplo, vem acentuar o fato de os Conservatórios e
academias serem Escolas e como tal teriam de reger-se como as outras escolas.
Contudo,
existem outras tendências que não questionando o fato de que estas escolas
sejam de músicas estão abertas a outras possibilidades formativas, até por
causa da ideia generalizada da falência completa da formação artístico-musical
do designado ensino genérico, apesar de alguns trabalhos muito interessantes.
Outras formações que contemplem os percursos de estudantes que querendo estudar
um instrumento provavelmente seguiram outras profissões que não da área
artística. É dentro deste enquadramento que se centra também a discussão em
torno da formação de profissionais vs formação
de amadores.
O
segundo tipo de tensão situa-se entre o erudito vs popular com diferentes tipos de consequências em termos da
inclusão no currículo de outras músicas que não a música erudita ocidental. Com
efeito, uma das correntes dominantes situa-se no que se pode nomear por “imaginação
ao centro”, mobilizando a expressão de Boaventura Sousa Santos. Isto é, e como
escrevi no trabalho sobre os Conservatórios em 2002, a origem dos
conservatórios, por um lado, e, por outro, a ligação simbólica, e também
formativa, ao centro europeu, num primeiro momento principalmente França e
Alemanha e mais tarde Holanda, Inglaterra e Estados Unidos, tem conduzido a que
a centralidade musical se situe na tradição da música erudita europeia,
excluindo praticamente todas as outras músicas e mesmo a música que se escreveu
no século XX e a que se escreve no século XXI. Embora como saibamos noutros
países os Conservatórios abrangem vários tipos e géneros musicais. Uma outra
tendência, não renegando a tradição da música erudita ocidental como foco do trabalho
principal, está aberta a outras tipologias musicais, de que não só o Jazz é
exemplo (e como foi difícil em 2002 conseguir que se integrasse no currículo e
não se consegui) mas também a guitarra portuguesa e alguns projectos que
envolvem a formação no âmbito da música portuguesa de tradição oral.
(4) Ausências vs Permanências
Uma
outra temática recorrente situa-se na tensão entre o que pode designar por
ausências e permanências. No caso das ausências elas manifestam-se em dois
domínios principais: ausência de políticas e ausência de estudos, de
conhecimento. No quadro das permanências elas contemplam o registo opinativo, a
vontade de se ser ouvido pelo poder político, o não aproveitamento da reflexão
já existente e um certo sentido de marginalidade.
No
que se refere à ausência de políticas sempre existiu a percepção generalizada
que o Estado e a Administração Central não têm desenvolvido trabalho, em
articulação com os diferentes atores, que dê conta das particularidades deste
tipo de ensino o que conduz a que, por regra, as escolas e os docentes se rejam
pela legislação geral que aplica a todo o sistema educativo, apesar de pequenas
excepções. Por outro lado, esta ausência manifesta-se em relação a questões
relacionadas com a carreira do corpo docente, as dificuldades de se
reestruturar a rede de ensino, as dificuldades de se articularem as politicas
educativas e as políticas culturais, apesar de não existir nenhum programa de
governo, desde o 1.º Governo Constitucional, onde tal não seja referido, as
dificuldades do exercício da profissão de músico, as dificuldades de
financiamento e de adequação desse financiamento às características deste
ensino, às dificuldades de regular o preço dos instrumentos musicais,
dificuldade da existência de editoras e de partituras e gravação de música
portuguesa (por exemplo), dificuldade de … Com efeito, a intervenção do Estado,
no mínimo, tem sido, negligente em relação ao ensino especializado de música o
que incrementa a percepção de ausência de políticas. Embora, elas existam e
estejam presentes no quotidiano das escolas, dos professores, dos estudantes e
das famílias.
Em
relação à ausência de estudos, do conhecimento, refere-se a trabalhos
resultantes da investigação, estudos, relatórios, textos enquadradores que sirvam
de base às discussões e a partir das quais se reelaborem as reflexões de modo a
que os diferentes atores se reconheçam no que é desenvolvido. Com efeito nem
sempre as discussões que irão originar decisões políticas tem por base
determinados tipos de documentos e/ou de dados, por exemplo estatísticos, que
permitam fazer diagnósticos mais sustentados. Embora, e num aparte diria, que o
que não faltam são diagnósticos, o que falta mesmo é decisão política.
E
esta ausência de trabalhos de investigação, de estudos, relatórios, de textos
enquadradores diferenciados, na verdade só existiu um encontro que teve por
base um texto, tem conduzido a uma permanência estruturante nos encontros. Essa
permanência, para além da vontade de mudar e/ou reajustar as políticas para
este sector, nos vários domínios em que está envolvido, para além da crítica do
papel do Estado, e da maioria das temáticas, está relacionada com o
enquadramento das discussões em que tem predominado perspectivas “opinativas”
alicerçadas nos saberes experienciais e muitas vezes pouco sustentadas
empiricamente e teoricamente. Não deixa de ser curioso verificar a afirmação do
Estado, no preâmbulo do Decreto-Lei 344/90 de 2 de Novembro, quando escreve que
“acresce que a margem de subjectividade inerente à apreciação das práticas
artísticas não facilita uma visão desapaixonada dos problemas e das
metodologias mais correctas e eficazes para os abordar e resolver. Não é por
acaso que, nesta matéria, as polémicas e as divergências, se não mesmo
oposições radicais de opinião, têm sido tão frequentes e parecem tão
inconciliáveis.”
Neste
último encontro, não se pode deixar de salientar, que estas “subjectividades
apaixonadas”, e ainda bem, já foram mediadas não só pelo saber experiencial mas
também pela pesquisa e reflexividade articulando as observações no terreno e o
que já existe escrito e pensado sobre muitos dos assuntos abordados.
Três
outros tipos de permanência têm percorrido as discussões. Uma, e também
estruturante, a vontade manifestada da existência deste tipo de encontros e de
os principais atores do sistema serem ouvidos na construção e nas tomadas de
decisão política. E este serem ouvidos passa em larga medida pela necessidade
sentida de serem co-construtores das políticas e não meros agentes
transmissores das políticas emanadas do Estado e da Administração Central.
Outra, está relacionada com o “estado da arte”, da reflexão e dos trabalho já
produzidos, e são muitos, em que de um modo geral existe como que uma espécie
de esquecimento sobre o que já foi reflectido, escrito e desenvolvido,
parecendo que se está sempre a recomeçar do novo. E não está. Outra ainda, a de
que o Estado e os Políticos, apesar de toda a retórica, tem relegado este tipo
de ensino e os seus profissionais para um lugar subalterno no quadro do sistema
educativo português e, consequentemente, as decisões políticas e a legislação
enquadradora não contarem com as particularidades e singularidades deste tipo
de formação artística.
(5) Dos caminhos a percorrer: por uma política, políticas,
da singularidade
Perante tudo o que escrevi anteriormente e das diferentes temáticas
envolvidas nos encontros, em que a perspectiva de futuro esteve sempre
presente, recupero algumas ideias e apresento algumas possibilidades de futuras
discussões e de desenvolvimento de políticas públicas centrais e regionais, bem
como as políticas das instituições de formação para este sector. Políticas que
se centram que designo por políticas da singularidade.
De um modo geral as políticas são processos e acções de imaginar o futuro e
os modos como se operacionalizam no presente. Políticas que não apenas emanadas
do Estado central ou da administração local mas também políticas que se
desenvolvem no interior das escolas. Políticas que são desenvolvidas no que se
designa por “ação pública”. Isto é, a construção de políticas, como escreve Delvaux,
integra “múltiplos actores que se localizam e
se movem em escalas diversas (transnacionais, nacionais, regionais, locais) e
assim, nele relativizando, não minimizando nem apagando o papel do Estado”. Por
outro lado, “induz novas regras para o modo de olhar esse cenário, substituindo
os princípios de verticalidade e de linearidade (a decisão no topo da
organização Estado e o seu movimento aplicativo no território social sobre o
qual a política pode intervir) pela horizontalidade e da circularidade das
interacções múltiplas e interdependentes dos diversos actores que mostram
capacidade de intervir nos processos que constroem a política”.
Nesta concepção as tradicionais dicotomias entre
público e privado implicam um outro reolhar e, por esta via, um outro tipo de
acção na prossecução das políticas públicas. Com efeito, as escolas particulares e cooperativas do
ensino especializado de música desempenham um papel fundamental na formação de
novas gerações de pessoas, de músicos. Embora o seu estatuto seja de natureza
privada e/ou associativa, elas constituem-se como um dos pilares do serviço
público no âmbito do ensino da música em Portugal, atendendo a que existem apenas
seis escolas de natureza pública. Apenas seis porque o Estado, e os diferentes
governos, desde os anos 70 do século passado, não têm conseguido, não têm tido
interesse em alargar a dimensão da rede das escolas públicas delegando nas
escolas particulares e cooperativas esse papel através de contratos que
estabelecem com as entidades proprietárias.
Deste modo, ao considerar a política da educação artístico-musical numa perspetiva multi-nível e multi-situada assenta no pressuposto de um quadro no âmbito de “comunidades políticas alargadas”, um conjunto de processos de ajustamentos de ideias, valores, estratégias, normativos institucionais induzidos pelas dinâmicas construção-impulsionamento-implementação e receção da política. Isto significa a pertinência no acentuar da dimensão interaccionista da política, procedimentos de construção, difusão e institucionalização de regras de jogo formais e informais, visões, modos de fazer e a convergência e divergência de valores e de normas que são definidas e consolidados em diferentes planos e contextos
Ora as políticas da singularidade que defendo
assentam no que designo por “singularidades diferentemente articuladas”, e jogo
de complexidades inerentes, de têm subjacente um conjunto de políticas também
elas singulares alicerçadas em redes de geometrias variáveis que se
inter-relacionam com a cena da governação e a cena artística e musical. Políticas
com diferentes tipos de configurações de interdependências, como por exemplo, entre
(a) as escolas, o estado e a administração; (b) instituições formativas e
formações; (c) formações e políticas culturais e musicais; (d)
profissionalidades docentes diferenciadas; (e) o local e o transnacional; (f) o
caracter compósito e intermitente do trabalho artístico; (g) exercício da
profissão de músico; (h) as formações e a vida musical e (i) a investigação
artística e a investigação artística.
Configurações de interdependências em que se
cruzam e confrontam por um lado, diferentes tipos de dominantes, situadas entre
perspetivas funcionalistas, homegeneizadoras, voluntaristas e colaborativas, e,
por outro, modos de coordenação das políticas curriculares e organizacionais
que se situam entre dois polos tensionais entre referencialidades canónicas e
referencialidades mais contemporâneas e interdependentes.
E
nestas políticas da singularidade existem algumas temáticas que considero
fundamentais atender e que, curiosamente, as três primeiras estavam inscritas
no Encontro Nacional de 1998, que depois foi traduzido na publicação de um
livro - Ensino Especializado de Música –
Reflexões de Escolas e de Professores, e que, infelizmente, se encontram
actualizadas. Temáticas que precisam de ser reolhadas, estudadas, pensadas e
que se podem sintetizar em torno dos seguintes grandes aspetos: (1) Identidade
e Estrutura do ensino especializado (finalidades deste tipo de ensino e papel,
papéis, dos conservatórios e academias); (2) Currículo, Aprendizagens e Avaliação
(currículo – da rigidez à diversidade e flexibilidade; programas dos atuais
constrangimentos às perspectivas de reestruturação; avaliação das aprendizagens
artísticas); (3) Sistema, Modelos e Articulações (construção, implementação e
regulação das políticas públicas; rede de escolas e modalidades de
financiamento, avaliação, autonomias, parcerias, recursos e modelos de gestão
das escolas; articulação entre a formação não superior e superior; ensino não
especializado de música; professores – formação e carreiras); (4) Ensino Superior
(complementaridades e modelos de formação de músicos, professores,
investigadores, animadores, técnicos); (5) As formações e a vida musical
(profissional e amadora); (6) A profissão de músico (carreiras, entidades
empregadoras, novas e/ou reconfiguradas práticas artísticas); (7) Os artistas e
as escolas; (8) As práticas artísticas e criativas contemporâneas e as
diferentes tipologias musicais; (9) A dimensão nacional e transnacional da
formação especializada; (10) O ensino especializado e o desenvolvimento local;
(11) A investigação, produção e transferência de conhecimento (nas várias áreas
onde as formações se exercem e, em particular, numa área ainda muito
incipiente: o ensino).
Concluo salientando três aspectos.
O primeiro, no âmbito do poder político, qualquer
que tenha sido o quadro partidário envolvido pós 25 de Abril e dos diferentes
tipos de intervenções, o que é determinante é que, apesar da retórica da
afirmação da importância da formação artística na construção de um sociedade
mais culta e plural, apesar de se mobilizar o ensino artístico especializado
para determinados eventos e agendas políticas, apesar de reafirmar a sua pertinência
na formação das crianças, dos jovens, dos adultos e das comunidades, apesar de
reafirmar a relevância deste tipo de formação para a cultura portuguesa, apesar
de …., o ensino artístico e o ensino especializado de música, apesar de em
alguns casos fazer parte da agenda política e se ter desenvolvido algum
trabalho, não tem sido uma prioridade, ou pelo menos este tipo de ensino estar
situado num plano equivalente no âmbito das políticas públicas para o sector da
educação e da cultura. Às escolas, aos professores, às crianças e jovens, às
famílias e às comunidades se deve o esforço do incremento da qualidade do
trabalho formativo-artístico.
O segundo, e de uma outra natureza mas que é
transversal aos diferentes tipos de atores (políticos, professores, directores,
músicos), é que tem existido demasiado “verdades”, demasiadas certezas,
demasiados egos e egocentrismos em todas as discussões. Dependendo do quadro de
referências e do ponto de vista em que se desenrola a discussão nem sempre se
consegue “ouvir” o que o outro tem para dizer, quando o que é dito se afasta
dessas verdades fundamentadas muitas vezes mais no “achismo”, na incorporação
de influências sem que se percebam que elas lá estão. Com efeito, este é um dos
aspectos que me têm chamado mais a atenção nos encontros por onde tenho passado
e, confesso, que tenho cada vez menos paciência para ouvir banalidades acerca
de um conjunto alargado de questões relacionadas com o ensino especializado de
música. Quanto menos se investiga, se estuda, se pensa mais “verdades” se vão
instalando e afirmando como se o conhecimento produzido, em termos nacionais e
internacionais, e sobre vários tipos de problemáticas, não interessasse para
coisa alguma.
O terceiro aspecto, é que os referentes que
hoje temos em relação a este tipo de educação e de ensino são histórica e
culturalmente construídas, assentes numa determinada representação do que é a
arte, os artistas, a formação confrontada entre os paradigmas de
tradição-clássico romântica, paradigmas funcionalistas e a pressão da
globalização e das indústrias culturais em particular no que se refere à
uniformização do gosto e à visibilidade mediática das grandes realizações. Daí
a pertinência das escolas artísticas como centros e laboratórios de cultura e
de cidadania, onde diferentes gerações aprendem a arte do encontro com os
saberes, as técnicas, as estéticas e, principalmente, a arte do encontro com os
outros na co-construção e reconfiguração dos mundos pessoais e colectivos. O
trabalho constrói-se alicerçado na história, nas memórias e em determinadas
visões do futuro mas, fundamentalmente, nas vivências do presente. Uma educação
e uma escola artística que ajude a pensar criticamente, que incentive o desejo
de aprender, que incentive e promova uma sociedade democrática mais culta e
cosmopolita.
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