sábado, 1 de outubro de 2011

Ensino de Música numa era de convergências e de colisões culturais: dos cânones à ecologia[1]

Music (...) mirrors the world
Robert P.Morgan
Music may be what we think it is; it may not be.
Philip V. Bohlman
I hear all sounds running together, combined,
fused or following,
Sounds of the city and sounds out of the city, sounds
of the day and night...
Walt Whitman, Songs of Myself
The times, they are changing
Bob Dylan



Introdução

A música é uma rede diferenciada de intersecções que cruza por um lado, sons, sentidos, saberes, emoções, ideias, valores e estruturas (Kingsbury,1988) e, por outro, criadores, interpretes, técnicos, investigadores, professores, críticos, agentes, comunidades e públicos (Becker,1984; Crane,1992). De acordo com um contexto social e cultural particular existe uma combinação de factores, tecnológicos, económicos, ideológicos, estéticos, entre outros, que contribuem para determinar os modos como se concebe a música, como é que ela soa, como se aprende e se ensina, quais os cânones predominantes.

A pluralidade existente nas culturas, práticas e consumos musicais contemporâneas compreendem problemáticas estéticas (associadas a diferentes estilos e tipologias musicais), geográficas (englobando várias partes do mundo) e histórico-sociais, englobando diferentes épocas, etnias e contextos. Com os seus valores, hierarquias, códigos, convenções, usos e funções.

O contacto entre diferentes mundos sonoros (Schaeffer,1993; Schafer,1997) desenvolve dois movimentos aparentemente paradoxais entre uma homogeneização dos saberes e práticas artístico-musicais e a procura do que é único (Menger,1983, 1996). Os efeitos desses contactos têm amplitudes diferenciadas variando entre ajustamentos relativamente pequenos entre diferentes estilos e géneros musicais até uma “creative transformation of the world styles and of the ideological and music-organizing principles on which they are based” (Kartomi,1994:ix). Podem conduzir à produção de novas ideias musicais, modos composicionais, novos reportórios, outros discursos sobre a música ou novos métodos de ensino “and even the way a group dresses or behaves at musical events may change as a result of convergences in contact situations” (Idem).

 Por outro lado, este contacto pode criar rupturas e colisões entre diferentes mundos, quando determinadas comunidades rejeitam músicas que lhe são estranhas; quando as práticas hegemónicas dão prioridade a determinados tipos de música em detrimento de outras. Estas colisões podem conduzir também à perca e ao abandono de géneros e conceitos, ao empobrecimento da música nas comunidades, à perda de determinados instrumentos e outros bens culturais e identitários.

Neste contexto, o ensino da música é interpolado por um conjunto de problemáticas onde: (1) existem múltiplas vozes e polifonias sonoras e musicais e um espaço e um tempo escasso para as acomodar a todas; (2) cada uma destas vozes e polifonias contém pressupostos e ideologias muitas vezes contraditórias e conflituais entre si; (3) os cânones dominantes e hegemónicos criam universos de exclusão, mesmo quando se afirmam inclusivos e diferenciados; (4) os cânones estão a mudar ou mesmo a desintegrar-se nas proliferação de outros olhares e práticas artístico-pedagógicas; (5) ao longo do percurso formativo as diferentes experiências de socialização contribuem para alargar ou diminuir quadros de referência.

Com efeito nas sociedades contemporâneas o ensino e a aprendizagem da música é um domínio complexo, plural e paradoxal. A par da apropriação de determinados códigos e convenções (todos eles diferentes conforme a sua historicidade e contextos), procura-se e fomenta-se a criação de subjectividades que se distingam pela sua originalidade e competência. Neste sentido colocam-se algumas interrogações: como é que os diferentes mundos sonoros convergem ou colidem uns com os outros no âmbito da educação e do ensino? Será que as hierarquias musicais existentes no ensino da música reflectem as hegemonias de relações de pode existentes na sociedade? Como conciliar e traduzir diferentes mundos sonoros para além das lógicas de poder e de lógicas hegemónicas? De que modos é que o ensino de música pode contribuir para o reconhecimento dos diferentes saberes inerentes às práticas musicais? Como lidar com os conflitos existentes entre diferentes culturas e tipologias musicais assim como as práticas sociais e culturais que lhe estão associadas? Como potenciar o conhecimento e o pensamento musical em todas as suas vertentes?

 O presente texto  é uma reflexão que cruza várias disciplinas: da musicologia à etnomusicologia, dos estudos da educação aos estudos da cultura. Pretende por um lado, questionar os cânones predominantes e hegemónicos existentes no ensino de música e na relação cultura-educação-sociedade e, por outro, dar voz a outros discursos e práticas existentes nos processos de construção política, de ensino, de aprendizagem, de experienciação sonora. Discursos e práticas que se enquadram no que designei por ecologia dos mundos sonoros.

 Inserido numa perspectiva de uma “razão cosmopolita” (Santos,2002), este trabalho não pretende identificar novas totalidades, ou grandes narrativas (Foucault, ). Pelo contrário, a proliferação de mundos sonoros e das culturas e subculturas musicais “requires an intensification of critical reflection and historical consciousness” (Blum,1994:268) que interpele o ensino de música nas suas várias vertentes e valências. Que interpele o ensino da música a repensar-se quer sob o ponto de vista do que inclui e do que exclui nas aprendizagens, nas metodologias utilizadas, nas investigações que realiza.


Música, educação e cânones
Alan P. Merriam caracterizou a música como um fenómeno tripartido composto pelo som, pelos comportamentos e pelas concepções e ideias. Cada um destes itens está interrelacionado e desempenha um papel relevante na configuração da natureza dos outros dois. Nettl (2001) por sua vez refere que ”the ideas about music, what it does for human society, how it relates to other components of culture such as religion, economic life, class structure, relationship of genders, that determine in the end the quality of a society’s musical life. The ideas about music determine what the context for music will be and how the music will sound” (p. 8). Por outro lado, como diz Morgan (1991) as músicas do nosso tempo reflectem o carácter fragmentado do mundo em que vivemos.

 De facto, os mundos da música têm formas diferenciadas de se relacionarem com este fenómeno tripartido: do concertista de citar, ao pianista na tradição erudita ocidental, do concerto de música sinfónica ao Rap e Hip Hop, da música Sufi aos serviços religiosos ocidentais, da música das cerimónias rituais em África aos rituais associados aos concertos de Marylin Mason.

Disto resulta que a música pode ser entendida e olhada de diferentes perspectivas. Como refere Bohlman (2002) a música pode ser o que pensamos que ela é, pode ser que não. “Music may be feeling or sensuality, but may also have nothing to do with emotion or physical sensation. Music may be that to which some dance or pray or make love; but it’s not necessarily the case. In some cultures there are complex categories for thinking about music; in others there seems to be no need whatsoever to complate music. What music is remains open to question at all times and in all places” (p. 17).

A que nos é mais habitual é ela ser considerada como uma arte tentando percebê-la através de terminologias estéticas e correntes estilísticas ao longo do processo histórico. Contudo, se a pensarmos sobre o ponto de vista dos usos e funções ela é muito mais do que uma arte e que explica a sua importância social. Isto é, a música contribui para a construção social da realidade (Berger & Luckman,1985) e para a construção identitária através de práticas artísticas e concepções, que remetem para determinados mundos, que marcam determinadas épocas e que caracterizam determinados espaços territoriais (Blacking, 1995, DeNora, 2000; Martí, 2000).

Apesar de todas estas polifonias (Ó Súilleabháin, 2002), existe um conjunto de cânones (Bergeron, 1992; Weber, 2001) que estabelecem normas, standards e determinados modos de regular as ideias, as práticas musicais e o seu ensino. Os diferentes tipos de cânones e as suas estruturas profundas vieram a complexificar-se com a globalização, as “indústrias culturais” e a proliferação de géneros, hierarquias, homogeneizações e diferenciações.

Contudo, a criação de um cânone não é em si um problema. Qualquer grupo social, étnico, artístico cria os seus próprios códigos, convenções e cânones (Becker, 1984; Martin, 1996). O problema está na canonização na “institutionalization of certain works over others trough the imposition of hierarchies of self-invested value upon other people and their music” (Koskoff, 2001:547)

Nesta institucionalização e perpetuação de cânones, os modos de ensino representam um papel determinante. No que é incluído e no que é excluído (Blum, 1994; Hennion, 1988; Nettl, 1994, 1995; Kingsbury, 1988, Small, 1980, Vasconcelos, 2002). “The curricula of music departments depends on the scaffolding afforded by the essential repertoires and pedagogical pigeonholes – which is to say, the canons necessary for graduation and degree-granting. Entrance into the field demands familiarity with a central set of canons” (Bohlman, 1992:210).

 O trabalho de investigação realizado até ao momento permitiu distinguir quatro grandes tipos de cânones que caracterizam as racionalidades dominantes no ensino da música em Portugal: cânone da monocultura do saber, cânone de classificação, cânone do produto e cânone do mosaico.

Cânone da monocultura do saber. Este cânone assenta na concepção da ciência e da alta cultura como critérios “únicos de verdade e de qualidade estética”. Cada uma destas culturas arroga-se ser cânones exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística. Tudo o que não se ajuste ao cânone ou o que ele não legitima ou reconhece são formas menores, embora algumas vezes toleradas por força das circunstâncias sociais e culturais.

Neste tipo de cânone a racionalização do ensino apresenta-se como um dos elementos estruturantes. Este esforço de racionalização conduziu a que o ensino da música e a pedagogia artística passasse a utilizar expressões como objectivos, eficácia, eficiência, entre outros, importados do universo empresarial. Se esta racionalização se saldou por alguns ganhos significativos caiu-se contudo, “na tentação de reduzir o trabalho pedagógico a uma dimensão exclusivamente racional, como se o acto educativo se inscrevesse necessariamente no prolongamento do raciocínio científico. Como se fosse possível (e desejável) instaurar uma qualquer razão educativa limitando do ensino os factores aleatórios do quotidiano escolar” (Nóvoa,2002:33).

Este tipo de cânone manifesta-se em todos os tipos de ensino (superior e não superior) através dos repertórios estudados, enquadramentos teóricos dominantes, tecnologias e metodologias de ensino e modos de investigação e produção de conhecimento (Folhadela et all,1999, Ribeiro,2000; Santos,1998; Vasconcelos,2001).

Cânone de classificação. A ideologia canónica criou lógicas classificatórias de géneros e “has often been manipulated for the purposes of snobbery and social élitism” (Weber,2001:354). A distribuição das várias tipologias artístico-musicais por categorias que naturalizam as hierarquias e as diferenças, reforçam diferentes tipos de poderes. É por causa de isto que se olha para a música erudita ocidental como a “grande música”, mais dinâmica e complexa do que outros tipos de música.

Por outro lado, neste cânone existe “a ideia de que a história tem sentido e direcção únicos e conhecidos” (Santos, 2002:247) que caminha do mais simples para o mais complexo, do menos desenvolvido para o mais desenvolvido. Esse sentido e direcção tem sido formulado com conceitos como progresso, modernização, desenvolvimento, crescimento, globalização. Esta perspectiva classificatória caracteriza-se também por um pensamento dicotómico com os seus centros e periferias.

Este cânone conduziu a políticas públicas e a políticas pedagógico-artísticas alicerçadas em separações de modalidades de ensino: ensino especializado versus ensino de amadores, ensino profissional versus ensino genérico, o ensino de jazz versus ensino das bandas filarmónicas. Separações que impediram a existência de outras práticas no ensino superior, no ensino dos conservatórios e de academias de música e no ensino não especializado bem como no desenvolvimento de actividades amadoras (Nogueira,1987; Nogueira et alli,1991).

Cânone do produto. O conceito de produto é dominante em diferentes tipos de conceptualizações existentes no ensino e na profissionalidade dos docentes de música (Small,1980; Vasconcelos,2002). Neste tipo de cânone é-se o produto de determinada escola, professor, técnica, estética. Assenta na reprodução de determinados modelos, numa lógica de mercadorização da formação e do acto artístico e cultural.

A formação e as escolas são valorizadas mais pelos produtos (estudantes formados e outro tipo de “mercadorias” e bens culturais) que conseguiram introduzir no mercado do que pela e pertinência (social, artística e intelectual) do trabalho desenvolvido. Neste cânone a lógica economicista e tecnocrática predomina sobre qualquer outro tipo de racionalidade e de construção do saber (Attali,1977). É-se avaliado pelo número de actividades artísticas desenvolvidas, pelos papers que se escrevem, apresentam e publicam numa perpetuação de lógicas circulares de poder e de visibilidade.

O cânone do produto assenta na normalização e estandardização dos currículos, na realização de exames para facilitar a escolha e melhorar a competitividade. Exames que produzem rankings entre estudantes, professores, escolas. Flexibilidade curricular, certificação, qualificação são um outro lado do espelho deste tipo de cânone em que as aprendizagens e a formação estão pensadas em função de determinados produtos e de segmentos de mercado.

Cânone do mosaico. Numa perspectiva do “politicamente correcto” o ensino da música tornou-se cada vez mais multicultural. Contudo, a dificuldade de envolvimento em sistemas epistemológicos, cognitivos e societais não cartesianos conduziram a modos de ensino que se caracterizam pela justaposição de culturas musicais, racionalidades e de medidas avulsas. Passou-se de “particularismos contextualizados” para “universalismos sem contextos” (Santos,1994).

Neste tipo de cânone estuda-se Mozart e Beethoven como fazendo parte do período clássico ignorando-se os diferentes mundos a que pertenceram. Como se esses mundos (sociais, artísticos, intelectuais) não influenciassem a música que escreveram. Interpreta-se música jazz como se tocasse um “clássico”, interpreta-se um lied de Schubert como se fosse um fado. Estuda-se uma música da Libéria ou uma canção árabe sem a compreensão das tensões que lhe estão adjacentes. É um cânone assente numa espécie de macdonalização artística e macdonalização da diferença (Ritzer,1996).

Da ecologia e da tradução
Os antigos cânones estão a dar origem a múltiplos cânones. No entanto, como refere Koskoff (2001) “perhaps we should stop looking at this from the perspective of canon, or even from the ‘multiple canons’ with their boundaries and individual entities, and move more toward a new perspective of ‘problem-solving’. This is a two-stage process, the first of which we are in rigt now: becoming comfortable with moving effortlessly from centre to margin and back again – living with likeness and difference simultaneously, and perhaps livening up our journeys with friendly or not-so-friendly engagements betwen centres and margins, between insiders and ousiders” (p. 558)

Assim, e como contraponto aos cânones tradicionais e dominantes identifiquei um conjunto de outros modos de pensar e de fazer que se inserem no que designei por ecologia dos mundos sonoros. A ecologia dos mundos sonoros assenta na interdependência dos saberes, no reconhecimento das diferenças, na valorização do processo, no território de fronteira. Estes elementos constituintes da ecologia têm em comum a ideia de que a realidade não se reduz apenas ao que é visível, na assunção da complementaridade não destrutiva entre diferentes mundos sonoros e contrariam o atomismo e o fechamento disciplinar “responsável pela redução da realidade às realidades hegemónicas ou canónicas” (Santos, 2002:268).

Por outro lado a ecologia dos mundos sonoros assenta no pressuposto de que a cultura não é apenas o que nos une mas também o que nos separa (Ribeiro,2002:204). Lugar de partilhas, conflitos, lutas. Neste sentido procura criar inteligibilidade, articulações e coerência num trabalho de tradução (Callon,1986; Latour,1999) entre o que une e o que separa os diferentes mundos, entre as subjectividades e os diferentes tipos de interesses. Como refer Latour (1999) a tradução refer-se “to all the displacements through other actors whose mediation is indispensable for any action to occur” superando aws rigidas oposições “between context and content, chains of translation refers to the work throug which actors modify, displace and translate their various and contraditory interests” (p. 311).

Este trabalho de tradução parte também da ideia que todas as culturas são incompletas e que elas “podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo confronto com outras culturas”, num exercício daquilo que este autor designa por “hermenêutica diatópica” (Santos,2002).

A interdependência dos saberes. As convergências e colisões entre os saberes são convergências e colisões entre diferentes processos através dos quais as práticas artísticas e educativo-formativas diferentemente incompletas e ignorantes se transformam em práticas inteligíveis e mais “sábias”. Saberes artístico-musicais que não vivem isolados de outros saberes e práticas e que contêm dimensões políticas, sociais, culturais e investigativas. Não existe uma separação entre sujeito e objecto como acontece nas culturas e tradição cartesiana (Damásio,1995).

Esta interdependência permite não só superar o cânone da monocultura do saber como também contrapor à ideia de alternativa (que pressupõe uma determinada norma e relação de poder) a identificação dos contextos e das práticas em que cada uma opera, os modos como superam o que se ignora e o que está incompleto. Por exemplo, o que é que o conceito de Raga ou Makam contém que escapa ao conceito de escala ocidental? O que é que nos modos de organização e conceptualização do mundo sonoro dos Kaluli escapa aos modos de organização dos sons electrónicos? O que é que existe nas músicas populares que escapa à dicotomia erudito/popular? O que é que existe no conhecimento tradicional que escapa à dicotomia conhecimento científico/conhecimento tradicional?

Credibilização das diferenças. Ao cânone classificatório contrapõe-se a assunção das diferenças constituídas por reconhecimentos mútuos. Por exemplo, como não existe um único princípio de transformação musical não é possível determinar em abstracto articulações e hierarquias entre diferentes experiências sonoras e as suas concepções artístico-musicais. “Só através da inteligibilidade recíproca das práticas é possível avaliá-las e definir alianças entre elas” (Santos,2002:265).

O trabalho de tradução procura esclarecer o que as une e o que separa os diferentes modos de conceptualizar, organizar e experienciar os mundos sonoros de forma a compreender as possibilidades e limites de articulação entre eles. Este trabalho de tradução não se resume apenas a questões técnicas que obviamente contêm. É também um trabalho político, intelectual e emocional.

Valorização do processo. A valorização do processo assenta na compreensão do ensino da música como uma mediação colectiva e interactiva baseada numa cultura de colaboração, de partilha, de participação de forma a revalorizar o trabalho sobre os diferentes saberes em presença.

As diferentes práticas artísticas e práticas educativo-formativas, os diferentes quotidianos escolares estão assentes numa pluralidade de valores, crenças e situações artísticas e outras que implicam a gestão das diferentes complexidades e imprevisibilidades. O que de mais decisivo acontece nestas interacções “não é possível de ser previsto, nem de ser medido: em educação o que marca a diferença é o modo de produção e não o produto” (Nóvoa,2002:35). O processo é algo dinâmico porque inacabado.

Território de fronteira. “Todo o acto cultural vive, no essencial, nas fronteiras”, afirma Bakhtine (citado por Ribeiro,2001). Também o ensino de música, como acto cultural, se enquadra num tipo de formação que se situa “no estar entre” (Swanwick,2001). Entre saberes, técnicas, mundos e geografias diversificados, numa rede de interacções entre diferentes tipos de comunidades e de sentidos. Território possibilitador de reconfigurações das tradicionais hierarquias sociais, culturais e identitárias em que a sua centralidade se encontra na assunção das margens (Vasconcelos,2002).

Isto implica a utilização de mapas cognitivos que lidam em simultâneo com diferentes tipos de escalas e de limites. Sempre contingentes e transitórios. Uma “transformative pratice zone” na qual os indivíduos “bring together their various areas of knowledge, experience and beliefs” (Bresler,2002:71)

Independentemente dos procedimentos individuais dos músicos professores e de alguns projectos existentes em diferentes escolas saliento três exemplos desta ecologia dos mundos sonoros. O primeiro diz respeito ao projecto que a Maria João Pires desenvolve no Centro de Estudos das Artes de Belgais (www.belgais.net). O trabalho desenvolvido é um bom exemplo nas relações que estabelece com a natureza e a cultura, entre as diferentes formas de arte, na interligação dos diferentes saberes. Também o trabalho artístico-pedagógico desenvolvido pela Casa da Música do Porto (por exemplo o projecto da Ópera Wozzeck com os habitantes de um Bairro desfavorecido) é paradigmático no diálogo que estabelece na interligação dos saberes, na credibilização das diferenças e na valorização dos processos. Por último, o trabalho desenvolvido em alguns sectores do ensino da composição (Vargas,2002) enquadra-se numa perspectiva de território de fronteira ao redimensionar a apropriação dos diferentes tipos de códigos, convenções, técnicas e tecnologias com as subjectividades em presença, na recriação das memórias e na procura de novos sentidos e de novos limites.

Repensar o ensino da música
Em “Songs of Myself” Walt Whitman escreve: “I hear all sounds running together, combined/ fused or following/Sounds of the city and sounds out of the city/sounds of the day and night (...)”. Esta pluralidade de mundos sonoros e a sua experienciação individual e colectiva nem sempre são reconhecidos e considerados relevantes pela ideologia canónica. A natureza dos diferentes mundos sonoros e as tradições são largamente influenciadas pelos modos de transmissão e pelos modos de ensino e aprendizagem (Nettl,2001).

Para contrariar este desperdício da experiência (Santos,2000) é necessário uma crítica ao modelo de racionalidade dominante e as práticas artísticas, educativas e científicas associadas. Para haver mudanças profundas na estruturação dos conhecimentos é necessário começar a mudar a razão que preside tanto aos conhecimentos como à sua estruturação (Santos,2002). No entanto, como refere este autor, “admitir a relatividade das culturas não implica adoptar sem mais o relativismo como atitude filosófica. Implica, sim, conceber o universalismo como uma particularidade ocidental cuja supremacia como ideia não reside em si mesma, mas antes na supremacia dos interesses que a sustentam” (p. 241).

Neste sentido, a diversificação, diferenciação e multiplicação dos diferentes mundos sonoros e as implicações societais e culturais que lhe estão adjacentes, levantam um conjunto alargado de questões ao ensino da música das quais saliento: (a) a fragmentação e atomização das práticas artísticas e educativas; (b) a dificuldade de conferir sentidos a mundos distantes dos nossos, fora de lógicas hegemónicas e canónicas; (c) a necessidade de construção de um ensino de música pertinente, pluridimensional e dialógico. Este tipo de questões implicam repensar o ensino de música numa tentativa de encontrar respostas aos sentidos de uma ecologia sonora, à tradução das diferenças entre políticas e culturas musicais (Flusser,2000; Mansfield,2002, Nettl,1992; Spencer,1998;.Westerland,1999).

As palavras de Koskoff (2001) dão um contributo ao afirmar, “we should be helping our students discover their own paths trough the maze all possible canons and values, past, present, and to come – with an underlying bedrock philosophy that all values, just like all people and all musics, have equivalent meaning to someone, somewhere (...) teaching them a new set of values that will enable them to know their own music well, but also to become good musical citizens in a world where boundaries of all kinds will become more and more permeable, where identities will become more and more multiple, and where differences between people and their musics will become more and more fuzzy” (pp. 558-559).

Por último, e ao contrário das opiniões dominantes não penso que a música faça parte do currículo do ensino em Portugal apenas para formar músicos, formar públicos, descobrir talentos, aprender a conhecer as obras das diferentes culturas. É muito mais do que isso. A música, e a arte em geral, como cultura e conhecimento pode ajudar na construção de outros possíveis, de outros sentidos nos quotidianos reais e ou imaginários, recuperando e recriando identidades (Fradique,2003). Para isso precisa de outras teorias, novas políticas, novos paradigmas que orientem um novo pensamento e acção estratégica, investigativa e educativo-artística e que contribua para ir encontrando respostas (sempre contingentes e transitórias) aos desafios colocados pelos contextos sociais, culturais e identitários da sociedade contemporânea. Em convergência, em colisão, em mudança.

Daí a necessidade de uma ecologia dos mundos sonoros onde os sons da natureza convivam com os sons electrónicos, onde os sons dos búzios convivam com os violinos, onde os sons dos pássaros convivam com o piano ou a orquestra. Sem hierarquias e hegemonias. Como acto político na construção de uma razão cosmopolita para o ensino da música onde as polifonias ecoem como espaços de liberdade na formação das pessoas que, utilizando as palavras de Nketia (1978), cresçam como cidadãos dos seus respectivos países e cidadãos de um “interacting world comunities”. “Perhaps – como refere Colin Durrant (2003)- we need to understand ourselves, within our own situations, that qualify musical experience is so powerful and cannot always be planned in terms of prescriptive learning outcomes or measured in tests, as we so often expected in more formal educational contexts. That is the nature of the creative act – the divergence, the inexplicable ‘wonderment’. Musical and artistic activity helps us to make sense of our world and make sense of ourselves as human beings with feelings within the world. Let more of it happen” (p.82).

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[1] Comunicação apresentada na XXVI World Conference for Music Education, organizada pela International Society of Music Education, Tenerife, Julho de 2004.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Contributos para a História do Ensino de Música em Portugal (I) - Professores do ensino especializado de música: modos de estar na profissão

Introdução[1]


O ser-se professor de música resulta da interacção e do cruzamento de múltiplos factores individuais, sociais, culturais, estéticos, formativos, profissionais e organizacionais, que têm como pano de fundo determinados pressupostos ideológicos e estéticos existentes nas comunidades artísticas onde se inserem, bem como as concepções do que é ser-se músico e do exercício das profissões artísticas.



Sendo um grupo social relativamente pequeno, no contexto dos professores em geral, o percurso sociohistórico dos docentes de música, os seus modos de aprendizagem, socialização e de inserção socioprofissional, têm conduzido a um certo sentido de diferença em relação aos outros o qual se alicerça na representação dominante e reclamada de “especificidade”. Estas características implicam que o olhar sobre a construção social e individual deste tipo de docentes se situa no cruzamento entre a profissão docente e a profissão do músico, entre a formação pedagógica e a formação artística.



As diferentes redes de relações que se estabelecem, as estratégias diferenciadas que o professor de música desenvolve no contexto das organizações onde desenvolve actividades servem de referencial que suportam os modos de ser e de dizer-se professor e de construir a profissão exercida no cruzamento entre as funções docentes e as funções do músico, entre a educação e a cultura.



Neste contexto, partindo de uma investigação sobre os Conservatórios de Música em Portugal, inserida no âmbito da dissertação de mestrado intitulada O Conservatório de Música: actores, organização e políticas, a comunicação Professores do ensino especializado de música: modos de estar na profissão, pretende dar conta (a) das diferentes formas como os professores de música se vêem e constróem uma imagem de si em relação ao ser-se músico e ao ser-se professor; (b) da maneira como se relacionam com esta questão músico-professor reflecte e influencia a maneira como desempenham as suas funções docentes, em termos monoprofissionais ou pluriprofissionais, bem como a forma de encarar a carreira docente (Vasconcelos,2000).



Pela natureza do objecto de estudo, local e contextualizado, esteve fora dos meus objectivos a produção de teorias generalizáveis a outros contextos.



A presente comunicação está dividida em cinco partes. Na primeira apresento sucintamente a metodologia que utilizei; na segunda faço uma breve problematização; na terceira descrevo os modos de ser e de ver a profissão no que se refere à formação e socialização, sentidos de pertença e prática docente; na quarta apresento as configurações identitárias identificadas e por último, quinta parte, apresento algumas considerações finais.



1. Metodologia

O ponto de partida é que as pessoas e as organizações são entidades complexas, podem ser várias coisas ao mesmo tempo. Assim, procurei construir uma metodologia capaz de olhar de uma forma holística para a realidade a estudar e que envolveu uma abordagem qualitativa e quantitativa (Bodgan & Biklen, 1994; Ferreira, 1986; Giglione & Matalon, 1992; Lessard et al., 1994).



No primeiro caso, incluiu-se a observação participante e não participante com a consequente elaboração de notas de campo, a análise de conteúdo de diferentes tipos de documentos e de entrevistas a um conjunto diversificado de professores (Bardin, 1995; Kaufmann, 1996; L´Écuyer, 1988; Miles & Huberman, 1991; Vala, 1987). No segundo, a aplicação de um inquérito por questionário elaborado para o efeito Na análise de conteúdo foi utilizado o programa informático NUD* IST 4 (Bazeley, 1998; Goméz et al., 1995; Richards, 1998) e na do inquérito o STATISTICA 4.5 para Windows.



Os pressupostos investigativos inscreveram-se numa perspectiva teórica que procurou colocar em conexão problemáticas e conceitos de diferentes quadrantes científicos e ideológicos, muitas vezes contraditórias entre si (Amblard et alli.,1996), alicerçados numa atitude de escuta em relação ao discurso oral e escrito dos actores (Correira, 1998; Friedberg, 1995); numa tentativa da compreensão dos sentidos, num exercício entre a descrição dos factos e a sua interpretação numa interrelação dialéctica entre o estrutural e o subjectivo, entre o global e o local, entre a implicação e o distanciamento teórico (Berthier, 1996; Geetz, 1986; Guba & Lincoln, 1994; Fielding & Fielding, 1986; Velasco & Rada, 1997; Wolcott, 1994; Woods, 1989).



Neste contexto, e numa tentativa de conciliar um estudo de caso mais particular e um estudo extensivo, norteei a metodologia por uma dupla estratégia. Uma mais formal que obedecia ao quadro teórico de partida e outra mais etnográfica com um quadro teórico mais flexível que possibilitaram novas problemáticas e enfoques de que a questão dos públicos é exemplo.



Num primeiro momento incidi (1) na observação (participante e não participante de que resultaram um conjunto de notas de campo) mais centrada nas interacções entre a Comissão Instaladora (CI) e entre a CI e os diferentes actores; diferentes espaços da escola, conversas de corredor em particular no espaço para fumadores; (2) na análise documental analisei as Actas do Conselho Pedagógico (CP), Actas da Reunião Geral de Professores e CI durante um período de cinco anos em que procurei informações em relação à história recente da escola e uma primeira aproximação de como se definia e construía uma acção organizada Isto serviu, depois de um primeiro tratamento dos dados, para enformar algumas questões para o inquérito bem como para o conjunto de entrevistas realizadas. A análise documental compreendeu outro tipo de documentos produzidos pela escola, nomeadamente circulares e ofícios.



Por outro lado, a necessidade de construir procedimentos empíricos controlados para permitir analisar e compreender as diferentes situações fizeram com que estabelecesse um conjunto de critérios e de procedimentos em relação à (1) selecção da escola (território, profissão, artístico-ideológico, empatia); (2) permanência no terreno (tempo - manhã tarde e noite- espaço - todo o sítio); (3) selecção dos entrevistados (profissão, disciplina, formação, hierarquia, tempo de serviço, multiactividade) de forma a ter uma amostra equilibrada.



A metodologia compreendeu, ainda, a triangulação de dados e de métodos, i.é. o cruzamento de várias fontes de informação e técnicas para obtenção dessa informação não para validar ou tornar a teoria mais objectiva mas para permitir obter um retrato mais alargado e aprofundado da realidade que estudei.



2. Problemática: da profissão e das identidades

As profissões (Rodrigues, 1997) como construções históricas e sociais (Lucas,1994) resultam de uma necessidade social e da produção de um determinado saber e de um grupo socioprofissional que vai não só satisfazer essa necessidade como também criá-la e desenvolvê-la (Nóvoa, 1987). O grupo profissional constitui-se num processo dinâmico portador de uma história e uma memória apresentando variações e heterogeneidades segundo os modos de construção, de legitimação e de institucionalização.



O percurso sociohistórico dos músicos (Ehrlich, 1985), os seus modos de aprendizagem (AAVV, 1978), socialização e de inserção profissional (Berger & Luckmann, 1985; Bongrain & Gérard, 1996; Dubar, 1997; Menger,1983) têm conduzido a um certo sentimento de diferenciação em relação aos outros (Becker, 1985). Por outro lado, sendo o mundo da arte uma rede de interacções entre diferentes profissionais (Becker, 1984), com relações de trabalho modificáveis (Vessilier-Ressi, 1995) o desenvolvimento de ocupações secundárias ou complementares, estão, desde à longa data, associadas à prática artística (Freidson,1994; Menger,1996; Moulin,1997).



Desta forma, a construção de uma identidade resulta de interacções onde o tempo e o espaço se cruzam na interrelação dialéctica do indivíduo consigo próprio, com a sociedade, a cultura, a formação, os contextos de trabalho e organizacionais (Lesne & Minvielle, 1990). Esta construção passa por um processo complexo de apropriações dos sentidos da história pessoal (Nóvoa, 1992), pela procura da diferenciação e/ou integração com as comunidades artísticas e sociais a que pertencem (Allonche & Péliat, 1993). A identidade como processo dinâmico contem um referencial social que não é apenas transmitido por uma geração à seguinte, mas ela é construída por cada geração (Gomes, 1993).



Assim, o ser-se professor de música resulta de uma interacção multifactorial, muitas vezes contraditória, que se inscreve numa sociedade policentrada, concorrencial, na qual os diferentes actores se vão adaptando às exigências dos sistemas sociais e culturais onde realizam os seus investimentos, numa pluralidade de lógicas e redefinições estratégicas em associação, alienação ou em oposição aos diferentes contextos socializadores como meios de expansão de autonomia e individualidade (Bellamy,1997; Crozier & Friedberg, 1977; Francq, 1996).



3. Modos de ser e de ver a profissão

Os atributos individuais e colectivos, os diferentes elementos motivacionais constituem-se como processos através dos quais os docentes de música constróem as suas identidades que são influenciadas pela formação, socialização, pelos modelos de ensino predominantes, pelo entendimento e exercício profissional. As diferentes formas como se vêem e constróem uma imagem de si foram agrupados tendo em consideração a dicotomia músico-professor.



No que diz respeito à socialização e a formação dos professores do Ensino Especializado de Música podem ser caracterizados pelos seguintes indicadores: (1) A família como espaço privilegiado de socialização (55,6%); (2) Relativa precocidade da aprendizagem artístico-musical. 65% entre os 6-11anos; 14,8% -5 anos; 7% com mais de 16 anos de idade. Isto dá uma média de 8.4 anos; (3) O gosto, a vocação e o talento como elementos indutores da opção gosto - 77,8%; vocação-59,3%; família - 25,9%; (4) a influência do professor de instrumento (14,8%); (5) a prática musical, em particular a existência de bandas filarmónicas “conservatórios de província” como me referiu um professor.



Ao tentar perceber o sentido de pertença procurei captar os sistemas simbólicos, as estruturas profundas que servem de sustentação, afirmação e justificação das diferentes identidades. A dicotomia músico professor atrás referida serviu de referente nos modos como agrupei os professores. Da análise da diferente documentação, em particular das entrevistas, identifiquei cinco tipos de lógicas: (a) uma identificação forte com a profissão de músico instrumentista; (b) uma identificação forte com a profissão de músico; (c) uma identificação assente na anomia e apatia calculada; (d) uma dissociação entre músico e professor; (e) uma não identificação nem com a actual profissão de professor nem de músico. De um outro modo uma certa marginalidade e desencanto em relação às anteriores.



Na lógica do músico instrumentista tipo de lógica existem dois aspectos essenciais. Por um lado pertence-se aos dois mundos: “Isso de grupo de músicos e grupo de professores eu não alinho nisso (...) Não acho que faço parte de nenhum  em especial. Pelo menos faço força para isso”. Por outro, é-se mais músico do que professor: “Eu? Considero-me mais músico”; “Se calhar sou daqueles professores que estão ligados à orquestra (...) posso-me incluir nesse grupo de professores”.



A identificação com a profissão de músico instrumentista é reforçada pelas imagens de dificuldade e de preenchimento de um espaço interior que não encontraram noutras profissões: “A vida de um músico não é propriamente uma vida fácil. A maior parte das pessoas pensa ‘Ah! é músico’ e se calhar não nos levam muito a sério (...) Mas a música acho que nos preenche um espaço interior (...) E não é só um espaço. Uma pessoa tem uma vida que não é regular, rotineira”.



No que se refere à implicação no trabalho, este sentido de pertença, inscreve-se num modelo assente na persecução de metas profissionais e o culto do nome individual e/ou de uma instituição. O investimento no trabalho colectivo só adquire sentido se se obtiverem dividendos pessoais, simbólicos e/ou financeiros sem os quais o investimento não se realiza.



Na lógica do músico que ensina, identifiquei uma confluência entre o ser-se músico e o ser-se professor, embora o referencial se situe predominantemente no domínio da música. Ou seja, apesar da diferenciação entre ambas é-se mais professor por razões externas motivadas pelas dificuldades da prática artística. Contudo, ao contrário da anterior, a necessidade de transmitir o que se sente e o que se gosta é uma forma potente de ligação simbólica com a actividade docente.



Neste contexto a implicação no trabalho e os modos de investimento não se situam exclusivamente no trabalho em si mas a participação no trabalho colectivo é um aspecto relevante para o desenvolvimento da música, em termos gerais, e o desenvolvimento musical dos alunos: “O que está em causa é o conceito de profissão. Na verdade somos pagos para leccionar e não para tocar ou cantar (...) Simplesmente acho importantíssimo que os alunos assistam a concertos dos seus professores (...) Eu gosto do que faço e faço do que gosto, por isso, independentemente do lugar onde estou, participo”.



Na lógica de anomia e de apatia calculada da anomia e da apatia calculada “O músico quer-se para tocar, mas se não tocar tanto faz. Problema dele”. Neste sentido de pertença foram identificados dois subgrupos. Um que está sempre alheado da escola e onde existe uma reocupação consigo próprio em particular conseguir uma determinada posição no emprego. Outro, que está aparentemente alheado, mas é uma atitude calculista que em qualquer momento se impõe através de múltiplas formas. Este “[Subgrupo] que existe é muito pior. É constituído por aqueles que parecem alheados”.



Na lógica do professor de música o músico e o professor não são actividades que se dissociem uma vez que ambas representam para os docentes um equilíbrio emocional relevante. “Eu escolhi a música porque quero ser músico. Mas também gosto de dar aulas, de ser professor (...) Só músico não conseguia ser. Eu gosto muito de dar aulas mas também gosto muito de fazer coisas, ter projectos”; “Não consigo separar a questão de ser professor e de ser músico. Eu acho que sou as duas coisas simultaneamente. E é isso que me faz feliz (...) Não consigo dissociar uma coisa da outra”.



Nesta lógica existe uma identificação muito forte com o grupo disciplinar /escola: Não eu às tantas tenho que pertencer aquele grupo que vem aqui para a escola. Mesmo não tendo nada que fazer vem para cá (...) porque gosta da escola e tenta fazer coisas”.



A implicação no trabalho consubstancia-se na implicação de projectos de natureza musical: “Eu devia limitar-me à parte musical. Mas não eu tenho de fazer tudo. [O que me dá ânimo] porque vejo que estou a fazer música com eles e mais do que fazer para nós é importante fazer fora da escola. Têm de se arranjar esses contactos e, infelizmente, somos nós professores, alguns professores, que os fazemos”.

 


Na lógica do músico como pessoa é-se professor pelo nível de desempenho: “Profissionalmente sou professor. Porque o meu principal ganha pão é este. [Mas] considero-me mais investigador”. Por outro lado, não se faz essa distinção pela função exercida mas pela maneira como os indivíduos se sentem mais aptos: “Não faço essa distinção. Eu acho que o músico é a capacidade de transmitir (...) através dessa forma de expressão (...) [Uns transmitem] muito melhor de uma forma artística do que de uma forma pedagógica”. A implicação no trabalho situa-se na operacionalização de ideias e de projectos que implicam um modo de estar diferentes.




No que se refere ao exercício da actividade a maioria dos professores (66,7%) exerce a actividade entre 5 a 15 anos; 25,9% entre 16 a 20 anos; 7,4% menos de 5 anos; 66,7% iniciou a actividade enquanto estudante de música. A principal razão pela qual se decidiram ser professor foi pelo prazer de ensinar e de fazer música (70,4%).



Em relação à satisfação no exercício da actividade docente e apesar dos diferentes tipos de obstáculos, 81,5% declaram-se satisfeitos com a actividade. As principais razões identificadas situam-se nos resultados obtidos e no prazer de ensinar. “Cada vez me sinto mais realizado, mais do que aquilo que estava à espera. Há uns anos atrás era uma seca para mim dar aulas, não gostava. Gostava era de tocar. Talvez por me dar agora mais aos alunos, aprendi algumas coisas. Isso também me dá algum prazer e vejo resultados”.



Por outro lado, 18,5% declaram-se insatisfeitos. A principal razão centra-se na falta de condições no exercício da actividade, uma vez que, como referiu um professor, “quando alguém se entrega àquilo que gosta de fazer e de si depende o futuro de muitos alunos, também gostaria de uma certa recompensa”.



No que se refere à formação contínua predomina o investimento em si, centrada em actividades específicas como direcção coral, composição e diferentes cursos de aperfeiçoamento no instrumento.



A actividade docente é exercida num quadro de monoactividade e de pluriactividade. Isto é, os docentes acumulam a docência em noutros estabelecimentos de ensino e/ou com outro tipo de actividades, nomeadamente, música prática; investigação e animação. De acordo com o inquérito realizado, 51,8% dos professores dizem que essas actividades são regulares/ muito regulares. 35,9% irregulares. Normalmente estas actividades, estas são exercidas por convites de instituições, iniciativa pessoal e pela rede de amigos. Os principais problemas detectados são a falta de oportunidades para tocar, o pouco apoio dos serviços públicos e a insegurança profissional.



4. Configurações identitárias: do profissional ao animador

As identidades referidas por Hameline (1985), o prático, o “expert” e o militante, cruzadas com as diferentes tipologias da evolução da profissão docente propostas por Hirschhorn (1993), o magister, o pedagogo e o animador, são “revisitadas” pelos docentes de música a partir da concepção do profissional, do orientador, do tutor e do animador.



A concepção de professor como profissional é adoptada a partir de uma identificação forte com o músico instrumentista, que suporta mal o facto dos colegas não desempenharem uma actividade musical. “É uma atitude demasiado passiva como músico” (A11)[i]. Esta concepção vê no ser-se músico o elemento estruturador da sua vida: “ser música é a razão de ser de tudo o que fiz até hoje (…) Eu nunca pensei em outra coisa a não ser música” (A05).



Se pudesse optar por ser músico ou ser professor o profissional optaria por ser músico. Contudo, a necessidade de transmitir aquilo que sabe impede-o de recusar a docência: “se eu pudesse estar só em cima de um palco, encenando uma ópera ou tocando um baixo continuo eu preferiria estar sempre num palco (…) Mas por outro lado nunca ficaria sem dar aulas. Nem que fosse só para um aluno” (A05). Neste contexto, o “professor [deve] assumir, quanto possível o papel de 'professor artista'” (R16).



Para esta configuração “um músico verdadeiro não quer a música dele fechada em quatro paredes” mas, na impossibilidade de um exercício permanente da actividade de músico, a “música é feita através dos alunos” (A05). Este sentido musical é muitas vezes herdado de uma formação anterior que se perpetua num jogo de espelhos porque o que se aprendeu quer-se “passar para os outros, senão a música acaba morrendo se não se produz outro músico” (Idem). A racionalidade pedagógica predominante centra-se sobretudo na dimensão técnica como elemento estruturador da aprendizagem “que possibilite depois as pessoas fazerem música, realçarem os aspectos musicais” (A01).



O professor como orientador não se revê completamente no papel tradicional do docente: “eu não me sinto tanto professor. Acho que nos músicos ou na música não há professores, há orientadores” (A07). Nesta concepção o ser-se músico difere da anterior pelo facto de ser “um caminho como outro qualquer” (A07), e pela procura de uma individualidade nos modoes de expressão artística e docente.



O modo de racionalidade pedagógica situa-se na relação que se estabelece, na diferenciação em que, não descorando os aspectos técnicos, a ênfase está na musicalidade uma vez que “o músico não é uma máquina” (A10). Neste sentido, necessita de um contexto organizacional que favoreça um ambiente de liberdade, em que a competição não seja um elemento preponderante.



Nesta concepção, o equilíbrio entre a actividade prática e a actividade docente é estruturante na sua projecção de futuro. Assim, não se coloca a hipótese de optar pelo exercício de uma actividade em detrimento da outra, pelo contrário,“gostaria de nivelar” (A10).



A concepção do professor como tutor procura o suporte nas relações pessoais em contraponto a alguma frieza da racionalidade técnica do profissional: “a primeira coisa é ser amigo dos alunos” (A02). O gostar e o prazer de transmitir experiências e conhecimentos resulta no reconhecimento de que “foi benéfico para alguém” (A06).



O ser músico já “não é só aquele que toca” (A02), sendo a disciplina, a sensibilidade e a interligação entre músico e professor aspectos estruturadores na forma de construção de sentidos. A flexibilização dos percursos formativos é recorrente, de forma a possibilitar a“(…) formação cultural dos cidadãos; formação de futuros profissionais; formação de crianças e despertar vocações; formação de ouvintes” (R07).



No que se refere às expectativas e projectos pessoais eles situam-se no plano da docência e do músico. A criação de uma “classe” é um recurso mobilizador da aspiração futura: “quero criar uma classe bem definida. Tentar ver se crio escola” (A02).



A mudança prudente é um factor congregador de vontades porque “a pessoa acaba por estar um bocado viciada (…) vamos transmitir aquilo que os nossos professores nos transmitiram. Só que nós também temos que nos adaptar (…)” (A04). Nesta perspectiva a “lógica de implicação” opõe-se a uma “lógica de externalidade”, no sentido de que se partilha “a ideia de que serão, deverão ser os professores destas escolas, (…) a propor e a revolucionar e encontrar soluções novas” (A06).



Por último, a concepção de professor como animador, em que os valores se centram na pessoa, no estabelecimento de ensino, na comunidade e no desenvolvimento de projectos. “O bom professor já não é aquele que se consagra por inteiro à transmissão do saber, nem aquele que se ocupa dos seus alunos, mas sim o que participa no funcionamento e no desenvolvimento de estabelecimento de ensino” (Hirschhorn, 1993:235).



Esta concepção tem como centro da racionalidade pedagógica o aluno enquanto pessoa, onde se intersectam a interpretação, a musicalidade e a técnica. Tendo consciência dos diferentes problemas que afectam este ensino, as capacidades e motivações dos alunos, procura formas alternativas de aprender e de ensinar.



A crítica ao sistema de valores predominantes é um dos pólos importantes na estratégia identitária uma vez que “os professores do conservatório tem uma certa tradição de cultivar uma certa rudeza. (…) uma tradição de conflitos (…) por questões de divergência de opinião técnica, estética, profissional” (A03).



Nesta configuração existe uma autonomia em relação a uma herança histórica e pessoalizada centrada exclusivamente nos modelos reprodutivos da aprendizagem do instrumento, a par de um campo de investimento pessoal alargado e diversificado na procura de outras formas de equilíbrio emocional e intelectual.



Em síntese, o quadro seguinte permite um olhar global sobre as identidades socioprofissionais identificadas, no que se refere ao perfil do aluno desejado, à racionalidade pedagógica, ao sentido de pertença, à autonomia individual, à autonomia colectiva, à atitude face ao trabalho, aos modos de regulação, aos valores predominantes, à ideologia e às atitudes face à mudança.

Dimensões/Concepção da profissão
O profissional
O orientador
O tutor
O animador
Perfil do aluno desejado

Instrumentista profissional
Músico interprete
Amigo músico
Pessoa músico
Racionalidade pedagógica
Técnica
Interpretação
Musicalidade
A relação
Interacção pessoa/
técnica/arte
Sentido de Pertença
Instrumentistas profissionais
Músicos interpretes
Grupo disciplinar
/escola
Marginalidade
Autonomia individual

Muito valorizada
Muito valorizada
Valorizada
Muito valorizada
Autonomia colectiva

Valorizada
Muito valorizada
Muito valorizada
Muito valorizada
Atitude face ao trabalho
Implicação instrumental
Implicação pessoal
Implicação colectiva
Implicação ideológica

Modos de regulação

O meio musical profissional
Os mestres
O grupo
O indivíduo
Valores predominantes
Herdeiros
Individualidade
A relação/a amizade e a tradição
Inovação
Ideologia
Meritocrática/
individualismo
Individualidade
Defensiva
Diferenciação/
Cidadania
Atitude face à mudança
Instrumental
Pessoal
Prudente
Ruptura

 



5. Comentário final

Como já referi, o professor de música inscreve-se numa rede complexa de interacções, influências e de constrangimentos que advêm da sua formação pessoal, da memória, de conceitos e pré-conceitos que cruzam o mundo da arte, da educação, da cultura e do trabalho (Hennion, 1988; Kingsbury, 1988; Nettl, 1995, Revilla, 1995; Small, 1980). A este quadro à que associar as condições sócio-profissionais dos músicos (UNESCO, 1997) e a situação da música, em termos políticos e do mercado dos bens simbólicos (Blaukopf, 1992; Bourdieu, 1994; Interartes, 1999; Lange, 1996; Ruten, 1996).



Os modos de ser, de olhar e de exercer a profissão, as identidades detectadas, influenciam os processos de trabalho artístico e docente, bem como, os modos como encaram o conservatório enquanto organização (Vasconcelos, 2000), numa polifonia de olhares e sentidos com diferentes tipos de ortodoxias e hetereodoxias, muitas vezes contraditórios, que importa conhecer, compreender e analisar, de forma a que, num contexto cada vez mais incerto e paradoxal (Handy, 1992, 1994; Naisbitt, 1994; Nóvoa, 1989), as exigências que se colocam, a nível educativo e artístico, lhes permitam saber gerir diferentes mundos e realidades (Boltansky & Thevenot, 1991, Demailly, 1987), informações e saberes cada vez mais heterógeneos, sem, contudo, perderem as suas características distintivas.

Neste contexto, afigura-se a necessidade de reconceptualizar a profissão dos docentes de música quer no que se refere à formação inicial e à formação contínua, quer no que diz respeito a uma carreira que articule, entre outras, as dimensões da pessoa-músico; as práticas pedagógicas e artísticas; a rede educação-cultura-trabalho artístico; práticas musicais, investigativas e criativas diferenciadas e regulares.



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 [1] Comunicação apresentada no II ENCONTRO DE HISTÓRIA DO ENSINO DA MÚSICA EM PORTUGAL, realizado em Braga na Universidade do Minho em Julho de 2001
 [i] As siglas apresentadas A11, R16 etc., significam que o material utilizado foi retirado das entrevistas aos professores e dos Relatórios de Escolas elaborados no âmbito da Revisão Participada do Currículo do Ensino Especializado de Música.