sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Contributos para a História do Ensino de Música em Portugal (I) - Professores do ensino especializado de música: modos de estar na profissão

Introdução[1]


O ser-se professor de música resulta da interacção e do cruzamento de múltiplos factores individuais, sociais, culturais, estéticos, formativos, profissionais e organizacionais, que têm como pano de fundo determinados pressupostos ideológicos e estéticos existentes nas comunidades artísticas onde se inserem, bem como as concepções do que é ser-se músico e do exercício das profissões artísticas.



Sendo um grupo social relativamente pequeno, no contexto dos professores em geral, o percurso sociohistórico dos docentes de música, os seus modos de aprendizagem, socialização e de inserção socioprofissional, têm conduzido a um certo sentido de diferença em relação aos outros o qual se alicerça na representação dominante e reclamada de “especificidade”. Estas características implicam que o olhar sobre a construção social e individual deste tipo de docentes se situa no cruzamento entre a profissão docente e a profissão do músico, entre a formação pedagógica e a formação artística.



As diferentes redes de relações que se estabelecem, as estratégias diferenciadas que o professor de música desenvolve no contexto das organizações onde desenvolve actividades servem de referencial que suportam os modos de ser e de dizer-se professor e de construir a profissão exercida no cruzamento entre as funções docentes e as funções do músico, entre a educação e a cultura.



Neste contexto, partindo de uma investigação sobre os Conservatórios de Música em Portugal, inserida no âmbito da dissertação de mestrado intitulada O Conservatório de Música: actores, organização e políticas, a comunicação Professores do ensino especializado de música: modos de estar na profissão, pretende dar conta (a) das diferentes formas como os professores de música se vêem e constróem uma imagem de si em relação ao ser-se músico e ao ser-se professor; (b) da maneira como se relacionam com esta questão músico-professor reflecte e influencia a maneira como desempenham as suas funções docentes, em termos monoprofissionais ou pluriprofissionais, bem como a forma de encarar a carreira docente (Vasconcelos,2000).



Pela natureza do objecto de estudo, local e contextualizado, esteve fora dos meus objectivos a produção de teorias generalizáveis a outros contextos.



A presente comunicação está dividida em cinco partes. Na primeira apresento sucintamente a metodologia que utilizei; na segunda faço uma breve problematização; na terceira descrevo os modos de ser e de ver a profissão no que se refere à formação e socialização, sentidos de pertença e prática docente; na quarta apresento as configurações identitárias identificadas e por último, quinta parte, apresento algumas considerações finais.



1. Metodologia

O ponto de partida é que as pessoas e as organizações são entidades complexas, podem ser várias coisas ao mesmo tempo. Assim, procurei construir uma metodologia capaz de olhar de uma forma holística para a realidade a estudar e que envolveu uma abordagem qualitativa e quantitativa (Bodgan & Biklen, 1994; Ferreira, 1986; Giglione & Matalon, 1992; Lessard et al., 1994).



No primeiro caso, incluiu-se a observação participante e não participante com a consequente elaboração de notas de campo, a análise de conteúdo de diferentes tipos de documentos e de entrevistas a um conjunto diversificado de professores (Bardin, 1995; Kaufmann, 1996; L´Écuyer, 1988; Miles & Huberman, 1991; Vala, 1987). No segundo, a aplicação de um inquérito por questionário elaborado para o efeito Na análise de conteúdo foi utilizado o programa informático NUD* IST 4 (Bazeley, 1998; Goméz et al., 1995; Richards, 1998) e na do inquérito o STATISTICA 4.5 para Windows.



Os pressupostos investigativos inscreveram-se numa perspectiva teórica que procurou colocar em conexão problemáticas e conceitos de diferentes quadrantes científicos e ideológicos, muitas vezes contraditórias entre si (Amblard et alli.,1996), alicerçados numa atitude de escuta em relação ao discurso oral e escrito dos actores (Correira, 1998; Friedberg, 1995); numa tentativa da compreensão dos sentidos, num exercício entre a descrição dos factos e a sua interpretação numa interrelação dialéctica entre o estrutural e o subjectivo, entre o global e o local, entre a implicação e o distanciamento teórico (Berthier, 1996; Geetz, 1986; Guba & Lincoln, 1994; Fielding & Fielding, 1986; Velasco & Rada, 1997; Wolcott, 1994; Woods, 1989).



Neste contexto, e numa tentativa de conciliar um estudo de caso mais particular e um estudo extensivo, norteei a metodologia por uma dupla estratégia. Uma mais formal que obedecia ao quadro teórico de partida e outra mais etnográfica com um quadro teórico mais flexível que possibilitaram novas problemáticas e enfoques de que a questão dos públicos é exemplo.



Num primeiro momento incidi (1) na observação (participante e não participante de que resultaram um conjunto de notas de campo) mais centrada nas interacções entre a Comissão Instaladora (CI) e entre a CI e os diferentes actores; diferentes espaços da escola, conversas de corredor em particular no espaço para fumadores; (2) na análise documental analisei as Actas do Conselho Pedagógico (CP), Actas da Reunião Geral de Professores e CI durante um período de cinco anos em que procurei informações em relação à história recente da escola e uma primeira aproximação de como se definia e construía uma acção organizada Isto serviu, depois de um primeiro tratamento dos dados, para enformar algumas questões para o inquérito bem como para o conjunto de entrevistas realizadas. A análise documental compreendeu outro tipo de documentos produzidos pela escola, nomeadamente circulares e ofícios.



Por outro lado, a necessidade de construir procedimentos empíricos controlados para permitir analisar e compreender as diferentes situações fizeram com que estabelecesse um conjunto de critérios e de procedimentos em relação à (1) selecção da escola (território, profissão, artístico-ideológico, empatia); (2) permanência no terreno (tempo - manhã tarde e noite- espaço - todo o sítio); (3) selecção dos entrevistados (profissão, disciplina, formação, hierarquia, tempo de serviço, multiactividade) de forma a ter uma amostra equilibrada.



A metodologia compreendeu, ainda, a triangulação de dados e de métodos, i.é. o cruzamento de várias fontes de informação e técnicas para obtenção dessa informação não para validar ou tornar a teoria mais objectiva mas para permitir obter um retrato mais alargado e aprofundado da realidade que estudei.



2. Problemática: da profissão e das identidades

As profissões (Rodrigues, 1997) como construções históricas e sociais (Lucas,1994) resultam de uma necessidade social e da produção de um determinado saber e de um grupo socioprofissional que vai não só satisfazer essa necessidade como também criá-la e desenvolvê-la (Nóvoa, 1987). O grupo profissional constitui-se num processo dinâmico portador de uma história e uma memória apresentando variações e heterogeneidades segundo os modos de construção, de legitimação e de institucionalização.



O percurso sociohistórico dos músicos (Ehrlich, 1985), os seus modos de aprendizagem (AAVV, 1978), socialização e de inserção profissional (Berger & Luckmann, 1985; Bongrain & Gérard, 1996; Dubar, 1997; Menger,1983) têm conduzido a um certo sentimento de diferenciação em relação aos outros (Becker, 1985). Por outro lado, sendo o mundo da arte uma rede de interacções entre diferentes profissionais (Becker, 1984), com relações de trabalho modificáveis (Vessilier-Ressi, 1995) o desenvolvimento de ocupações secundárias ou complementares, estão, desde à longa data, associadas à prática artística (Freidson,1994; Menger,1996; Moulin,1997).



Desta forma, a construção de uma identidade resulta de interacções onde o tempo e o espaço se cruzam na interrelação dialéctica do indivíduo consigo próprio, com a sociedade, a cultura, a formação, os contextos de trabalho e organizacionais (Lesne & Minvielle, 1990). Esta construção passa por um processo complexo de apropriações dos sentidos da história pessoal (Nóvoa, 1992), pela procura da diferenciação e/ou integração com as comunidades artísticas e sociais a que pertencem (Allonche & Péliat, 1993). A identidade como processo dinâmico contem um referencial social que não é apenas transmitido por uma geração à seguinte, mas ela é construída por cada geração (Gomes, 1993).



Assim, o ser-se professor de música resulta de uma interacção multifactorial, muitas vezes contraditória, que se inscreve numa sociedade policentrada, concorrencial, na qual os diferentes actores se vão adaptando às exigências dos sistemas sociais e culturais onde realizam os seus investimentos, numa pluralidade de lógicas e redefinições estratégicas em associação, alienação ou em oposição aos diferentes contextos socializadores como meios de expansão de autonomia e individualidade (Bellamy,1997; Crozier & Friedberg, 1977; Francq, 1996).



3. Modos de ser e de ver a profissão

Os atributos individuais e colectivos, os diferentes elementos motivacionais constituem-se como processos através dos quais os docentes de música constróem as suas identidades que são influenciadas pela formação, socialização, pelos modelos de ensino predominantes, pelo entendimento e exercício profissional. As diferentes formas como se vêem e constróem uma imagem de si foram agrupados tendo em consideração a dicotomia músico-professor.



No que diz respeito à socialização e a formação dos professores do Ensino Especializado de Música podem ser caracterizados pelos seguintes indicadores: (1) A família como espaço privilegiado de socialização (55,6%); (2) Relativa precocidade da aprendizagem artístico-musical. 65% entre os 6-11anos; 14,8% -5 anos; 7% com mais de 16 anos de idade. Isto dá uma média de 8.4 anos; (3) O gosto, a vocação e o talento como elementos indutores da opção gosto - 77,8%; vocação-59,3%; família - 25,9%; (4) a influência do professor de instrumento (14,8%); (5) a prática musical, em particular a existência de bandas filarmónicas “conservatórios de província” como me referiu um professor.



Ao tentar perceber o sentido de pertença procurei captar os sistemas simbólicos, as estruturas profundas que servem de sustentação, afirmação e justificação das diferentes identidades. A dicotomia músico professor atrás referida serviu de referente nos modos como agrupei os professores. Da análise da diferente documentação, em particular das entrevistas, identifiquei cinco tipos de lógicas: (a) uma identificação forte com a profissão de músico instrumentista; (b) uma identificação forte com a profissão de músico; (c) uma identificação assente na anomia e apatia calculada; (d) uma dissociação entre músico e professor; (e) uma não identificação nem com a actual profissão de professor nem de músico. De um outro modo uma certa marginalidade e desencanto em relação às anteriores.



Na lógica do músico instrumentista tipo de lógica existem dois aspectos essenciais. Por um lado pertence-se aos dois mundos: “Isso de grupo de músicos e grupo de professores eu não alinho nisso (...) Não acho que faço parte de nenhum  em especial. Pelo menos faço força para isso”. Por outro, é-se mais músico do que professor: “Eu? Considero-me mais músico”; “Se calhar sou daqueles professores que estão ligados à orquestra (...) posso-me incluir nesse grupo de professores”.



A identificação com a profissão de músico instrumentista é reforçada pelas imagens de dificuldade e de preenchimento de um espaço interior que não encontraram noutras profissões: “A vida de um músico não é propriamente uma vida fácil. A maior parte das pessoas pensa ‘Ah! é músico’ e se calhar não nos levam muito a sério (...) Mas a música acho que nos preenche um espaço interior (...) E não é só um espaço. Uma pessoa tem uma vida que não é regular, rotineira”.



No que se refere à implicação no trabalho, este sentido de pertença, inscreve-se num modelo assente na persecução de metas profissionais e o culto do nome individual e/ou de uma instituição. O investimento no trabalho colectivo só adquire sentido se se obtiverem dividendos pessoais, simbólicos e/ou financeiros sem os quais o investimento não se realiza.



Na lógica do músico que ensina, identifiquei uma confluência entre o ser-se músico e o ser-se professor, embora o referencial se situe predominantemente no domínio da música. Ou seja, apesar da diferenciação entre ambas é-se mais professor por razões externas motivadas pelas dificuldades da prática artística. Contudo, ao contrário da anterior, a necessidade de transmitir o que se sente e o que se gosta é uma forma potente de ligação simbólica com a actividade docente.



Neste contexto a implicação no trabalho e os modos de investimento não se situam exclusivamente no trabalho em si mas a participação no trabalho colectivo é um aspecto relevante para o desenvolvimento da música, em termos gerais, e o desenvolvimento musical dos alunos: “O que está em causa é o conceito de profissão. Na verdade somos pagos para leccionar e não para tocar ou cantar (...) Simplesmente acho importantíssimo que os alunos assistam a concertos dos seus professores (...) Eu gosto do que faço e faço do que gosto, por isso, independentemente do lugar onde estou, participo”.



Na lógica de anomia e de apatia calculada da anomia e da apatia calculada “O músico quer-se para tocar, mas se não tocar tanto faz. Problema dele”. Neste sentido de pertença foram identificados dois subgrupos. Um que está sempre alheado da escola e onde existe uma reocupação consigo próprio em particular conseguir uma determinada posição no emprego. Outro, que está aparentemente alheado, mas é uma atitude calculista que em qualquer momento se impõe através de múltiplas formas. Este “[Subgrupo] que existe é muito pior. É constituído por aqueles que parecem alheados”.



Na lógica do professor de música o músico e o professor não são actividades que se dissociem uma vez que ambas representam para os docentes um equilíbrio emocional relevante. “Eu escolhi a música porque quero ser músico. Mas também gosto de dar aulas, de ser professor (...) Só músico não conseguia ser. Eu gosto muito de dar aulas mas também gosto muito de fazer coisas, ter projectos”; “Não consigo separar a questão de ser professor e de ser músico. Eu acho que sou as duas coisas simultaneamente. E é isso que me faz feliz (...) Não consigo dissociar uma coisa da outra”.



Nesta lógica existe uma identificação muito forte com o grupo disciplinar /escola: Não eu às tantas tenho que pertencer aquele grupo que vem aqui para a escola. Mesmo não tendo nada que fazer vem para cá (...) porque gosta da escola e tenta fazer coisas”.



A implicação no trabalho consubstancia-se na implicação de projectos de natureza musical: “Eu devia limitar-me à parte musical. Mas não eu tenho de fazer tudo. [O que me dá ânimo] porque vejo que estou a fazer música com eles e mais do que fazer para nós é importante fazer fora da escola. Têm de se arranjar esses contactos e, infelizmente, somos nós professores, alguns professores, que os fazemos”.

 


Na lógica do músico como pessoa é-se professor pelo nível de desempenho: “Profissionalmente sou professor. Porque o meu principal ganha pão é este. [Mas] considero-me mais investigador”. Por outro lado, não se faz essa distinção pela função exercida mas pela maneira como os indivíduos se sentem mais aptos: “Não faço essa distinção. Eu acho que o músico é a capacidade de transmitir (...) através dessa forma de expressão (...) [Uns transmitem] muito melhor de uma forma artística do que de uma forma pedagógica”. A implicação no trabalho situa-se na operacionalização de ideias e de projectos que implicam um modo de estar diferentes.




No que se refere ao exercício da actividade a maioria dos professores (66,7%) exerce a actividade entre 5 a 15 anos; 25,9% entre 16 a 20 anos; 7,4% menos de 5 anos; 66,7% iniciou a actividade enquanto estudante de música. A principal razão pela qual se decidiram ser professor foi pelo prazer de ensinar e de fazer música (70,4%).



Em relação à satisfação no exercício da actividade docente e apesar dos diferentes tipos de obstáculos, 81,5% declaram-se satisfeitos com a actividade. As principais razões identificadas situam-se nos resultados obtidos e no prazer de ensinar. “Cada vez me sinto mais realizado, mais do que aquilo que estava à espera. Há uns anos atrás era uma seca para mim dar aulas, não gostava. Gostava era de tocar. Talvez por me dar agora mais aos alunos, aprendi algumas coisas. Isso também me dá algum prazer e vejo resultados”.



Por outro lado, 18,5% declaram-se insatisfeitos. A principal razão centra-se na falta de condições no exercício da actividade, uma vez que, como referiu um professor, “quando alguém se entrega àquilo que gosta de fazer e de si depende o futuro de muitos alunos, também gostaria de uma certa recompensa”.



No que se refere à formação contínua predomina o investimento em si, centrada em actividades específicas como direcção coral, composição e diferentes cursos de aperfeiçoamento no instrumento.



A actividade docente é exercida num quadro de monoactividade e de pluriactividade. Isto é, os docentes acumulam a docência em noutros estabelecimentos de ensino e/ou com outro tipo de actividades, nomeadamente, música prática; investigação e animação. De acordo com o inquérito realizado, 51,8% dos professores dizem que essas actividades são regulares/ muito regulares. 35,9% irregulares. Normalmente estas actividades, estas são exercidas por convites de instituições, iniciativa pessoal e pela rede de amigos. Os principais problemas detectados são a falta de oportunidades para tocar, o pouco apoio dos serviços públicos e a insegurança profissional.



4. Configurações identitárias: do profissional ao animador

As identidades referidas por Hameline (1985), o prático, o “expert” e o militante, cruzadas com as diferentes tipologias da evolução da profissão docente propostas por Hirschhorn (1993), o magister, o pedagogo e o animador, são “revisitadas” pelos docentes de música a partir da concepção do profissional, do orientador, do tutor e do animador.



A concepção de professor como profissional é adoptada a partir de uma identificação forte com o músico instrumentista, que suporta mal o facto dos colegas não desempenharem uma actividade musical. “É uma atitude demasiado passiva como músico” (A11)[i]. Esta concepção vê no ser-se músico o elemento estruturador da sua vida: “ser música é a razão de ser de tudo o que fiz até hoje (…) Eu nunca pensei em outra coisa a não ser música” (A05).



Se pudesse optar por ser músico ou ser professor o profissional optaria por ser músico. Contudo, a necessidade de transmitir aquilo que sabe impede-o de recusar a docência: “se eu pudesse estar só em cima de um palco, encenando uma ópera ou tocando um baixo continuo eu preferiria estar sempre num palco (…) Mas por outro lado nunca ficaria sem dar aulas. Nem que fosse só para um aluno” (A05). Neste contexto, o “professor [deve] assumir, quanto possível o papel de 'professor artista'” (R16).



Para esta configuração “um músico verdadeiro não quer a música dele fechada em quatro paredes” mas, na impossibilidade de um exercício permanente da actividade de músico, a “música é feita através dos alunos” (A05). Este sentido musical é muitas vezes herdado de uma formação anterior que se perpetua num jogo de espelhos porque o que se aprendeu quer-se “passar para os outros, senão a música acaba morrendo se não se produz outro músico” (Idem). A racionalidade pedagógica predominante centra-se sobretudo na dimensão técnica como elemento estruturador da aprendizagem “que possibilite depois as pessoas fazerem música, realçarem os aspectos musicais” (A01).



O professor como orientador não se revê completamente no papel tradicional do docente: “eu não me sinto tanto professor. Acho que nos músicos ou na música não há professores, há orientadores” (A07). Nesta concepção o ser-se músico difere da anterior pelo facto de ser “um caminho como outro qualquer” (A07), e pela procura de uma individualidade nos modoes de expressão artística e docente.



O modo de racionalidade pedagógica situa-se na relação que se estabelece, na diferenciação em que, não descorando os aspectos técnicos, a ênfase está na musicalidade uma vez que “o músico não é uma máquina” (A10). Neste sentido, necessita de um contexto organizacional que favoreça um ambiente de liberdade, em que a competição não seja um elemento preponderante.



Nesta concepção, o equilíbrio entre a actividade prática e a actividade docente é estruturante na sua projecção de futuro. Assim, não se coloca a hipótese de optar pelo exercício de uma actividade em detrimento da outra, pelo contrário,“gostaria de nivelar” (A10).



A concepção do professor como tutor procura o suporte nas relações pessoais em contraponto a alguma frieza da racionalidade técnica do profissional: “a primeira coisa é ser amigo dos alunos” (A02). O gostar e o prazer de transmitir experiências e conhecimentos resulta no reconhecimento de que “foi benéfico para alguém” (A06).



O ser músico já “não é só aquele que toca” (A02), sendo a disciplina, a sensibilidade e a interligação entre músico e professor aspectos estruturadores na forma de construção de sentidos. A flexibilização dos percursos formativos é recorrente, de forma a possibilitar a“(…) formação cultural dos cidadãos; formação de futuros profissionais; formação de crianças e despertar vocações; formação de ouvintes” (R07).



No que se refere às expectativas e projectos pessoais eles situam-se no plano da docência e do músico. A criação de uma “classe” é um recurso mobilizador da aspiração futura: “quero criar uma classe bem definida. Tentar ver se crio escola” (A02).



A mudança prudente é um factor congregador de vontades porque “a pessoa acaba por estar um bocado viciada (…) vamos transmitir aquilo que os nossos professores nos transmitiram. Só que nós também temos que nos adaptar (…)” (A04). Nesta perspectiva a “lógica de implicação” opõe-se a uma “lógica de externalidade”, no sentido de que se partilha “a ideia de que serão, deverão ser os professores destas escolas, (…) a propor e a revolucionar e encontrar soluções novas” (A06).



Por último, a concepção de professor como animador, em que os valores se centram na pessoa, no estabelecimento de ensino, na comunidade e no desenvolvimento de projectos. “O bom professor já não é aquele que se consagra por inteiro à transmissão do saber, nem aquele que se ocupa dos seus alunos, mas sim o que participa no funcionamento e no desenvolvimento de estabelecimento de ensino” (Hirschhorn, 1993:235).



Esta concepção tem como centro da racionalidade pedagógica o aluno enquanto pessoa, onde se intersectam a interpretação, a musicalidade e a técnica. Tendo consciência dos diferentes problemas que afectam este ensino, as capacidades e motivações dos alunos, procura formas alternativas de aprender e de ensinar.



A crítica ao sistema de valores predominantes é um dos pólos importantes na estratégia identitária uma vez que “os professores do conservatório tem uma certa tradição de cultivar uma certa rudeza. (…) uma tradição de conflitos (…) por questões de divergência de opinião técnica, estética, profissional” (A03).



Nesta configuração existe uma autonomia em relação a uma herança histórica e pessoalizada centrada exclusivamente nos modelos reprodutivos da aprendizagem do instrumento, a par de um campo de investimento pessoal alargado e diversificado na procura de outras formas de equilíbrio emocional e intelectual.



Em síntese, o quadro seguinte permite um olhar global sobre as identidades socioprofissionais identificadas, no que se refere ao perfil do aluno desejado, à racionalidade pedagógica, ao sentido de pertença, à autonomia individual, à autonomia colectiva, à atitude face ao trabalho, aos modos de regulação, aos valores predominantes, à ideologia e às atitudes face à mudança.

Dimensões/Concepção da profissão
O profissional
O orientador
O tutor
O animador
Perfil do aluno desejado

Instrumentista profissional
Músico interprete
Amigo músico
Pessoa músico
Racionalidade pedagógica
Técnica
Interpretação
Musicalidade
A relação
Interacção pessoa/
técnica/arte
Sentido de Pertença
Instrumentistas profissionais
Músicos interpretes
Grupo disciplinar
/escola
Marginalidade
Autonomia individual

Muito valorizada
Muito valorizada
Valorizada
Muito valorizada
Autonomia colectiva

Valorizada
Muito valorizada
Muito valorizada
Muito valorizada
Atitude face ao trabalho
Implicação instrumental
Implicação pessoal
Implicação colectiva
Implicação ideológica

Modos de regulação

O meio musical profissional
Os mestres
O grupo
O indivíduo
Valores predominantes
Herdeiros
Individualidade
A relação/a amizade e a tradição
Inovação
Ideologia
Meritocrática/
individualismo
Individualidade
Defensiva
Diferenciação/
Cidadania
Atitude face à mudança
Instrumental
Pessoal
Prudente
Ruptura

 



5. Comentário final

Como já referi, o professor de música inscreve-se numa rede complexa de interacções, influências e de constrangimentos que advêm da sua formação pessoal, da memória, de conceitos e pré-conceitos que cruzam o mundo da arte, da educação, da cultura e do trabalho (Hennion, 1988; Kingsbury, 1988; Nettl, 1995, Revilla, 1995; Small, 1980). A este quadro à que associar as condições sócio-profissionais dos músicos (UNESCO, 1997) e a situação da música, em termos políticos e do mercado dos bens simbólicos (Blaukopf, 1992; Bourdieu, 1994; Interartes, 1999; Lange, 1996; Ruten, 1996).



Os modos de ser, de olhar e de exercer a profissão, as identidades detectadas, influenciam os processos de trabalho artístico e docente, bem como, os modos como encaram o conservatório enquanto organização (Vasconcelos, 2000), numa polifonia de olhares e sentidos com diferentes tipos de ortodoxias e hetereodoxias, muitas vezes contraditórios, que importa conhecer, compreender e analisar, de forma a que, num contexto cada vez mais incerto e paradoxal (Handy, 1992, 1994; Naisbitt, 1994; Nóvoa, 1989), as exigências que se colocam, a nível educativo e artístico, lhes permitam saber gerir diferentes mundos e realidades (Boltansky & Thevenot, 1991, Demailly, 1987), informações e saberes cada vez mais heterógeneos, sem, contudo, perderem as suas características distintivas.

Neste contexto, afigura-se a necessidade de reconceptualizar a profissão dos docentes de música quer no que se refere à formação inicial e à formação contínua, quer no que diz respeito a uma carreira que articule, entre outras, as dimensões da pessoa-músico; as práticas pedagógicas e artísticas; a rede educação-cultura-trabalho artístico; práticas musicais, investigativas e criativas diferenciadas e regulares.



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 [1] Comunicação apresentada no II ENCONTRO DE HISTÓRIA DO ENSINO DA MÚSICA EM PORTUGAL, realizado em Braga na Universidade do Minho em Julho de 2001
 [i] As siglas apresentadas A11, R16 etc., significam que o material utilizado foi retirado das entrevistas aos professores e dos Relatórios de Escolas elaborados no âmbito da Revisão Participada do Currículo do Ensino Especializado de Música.




     


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