Introdução[1]
O ensino especializado
de música, é um campo compósito, complexo e reticular situado no cruzamento
entre os mundos da educação e da formação e os mundos das artes e da cultura.
Esta dupla referencialidade, abrange modalidades, territórios e finalidades
diferenciadas e fragmentadas, bem como os tipos de saberes que aborda, mais
técnicos, criativos ou investigativos. Neste campo compósito a educação e
formação não se joga apenas nos espaços e nos tempos da escola mas em
territórios multipolares em que interagem uma diversidade de atores públicos,
privados e do terceiro sector (nacionais, locais e internacionais) em redes
diferenciadas de sentidos e onde se confrontam e complementam olhares, saberes
e experiências.
Por outro lado, as
transformações operadas no campo criativo, investigativo e tecnológico, social
e cultural, assim como nos modos como os públicos se relacionam com as artes e
a cultura, interpelam as políticas públicas no ensino especializada de música
num triplo e simultâneo sentido de intervenção: curricular, organizacional e
profissional. Interpelação e intervenção em que a par do desenvolvimento das
ferramentas necessárias à apropriação, devidamente contextualizada, dos códigos
e convenções característicos de cada área, época ou tipologia musical, das
técnicas de um determinado instrumento, da criação e interpretação de uma obra
musical, com diferentes tipos de configurações (solística, de pequenos e/ou de
grandes grupos), se promovam modos organizacionais e perspectivas de desenvolvimento
de um profissionalidade de músico que articule os mundos das artes, educação e
cultura fomentando a criatividade, a experimentação e a inovação de
procedimentos educativo-artísticos e de intervenção cultural comunitária,
atendendo a que, no mercado de trabalho dos bens artísticos e culturais, dos
bens simbólicos, nem sempre existe uma relação directa entre o “sucesso
académico” e o desenvolvimento de uma carreira artística. Os caminhos para que um músico desenvolva uma
carreira musical são variados e, muitas vezes, imprevisíveis, “não existindo um
percurso claro e linear para se tornar músico” (Coulson, 2010: 259).
Este tipo de problemáticas
e características configuram um campo de “singularidades diferentemente
articuladas” (Vasconcelos, 2011) que tem subjacente um conjunto de
complexidades que percorrem transversalmente mundos e geografias diferenciadas,
os saberes e as políticas em presença, colocando ao ensino especializado de
música um conjunto de desafios para lidar com a mudança e que procurem contrariar
as tendências dominantes assentes na funcionalização e na mercadorização da
educação artístico-musical.
Neste contexto, esta
reflexão está organizada em três pontos. No primeiro irei apresentar algumas considerações
acerca dos saberes e das aprendizagens tendo presente as complexidades dos
mundos da música e do seu ensino; no segundo, centrar-me-ei em algumas problemáticas
do trabalho artístico e da formação de músicos e, no terceiro, abordarei alguns
desafios em torno de quatro cês: conhecimento, criatividade, cosmopolitismo e
complementaridade. Por último, umas breves considerações finais.
1.
Dos saberes e das aprendizagens: as complexidades dos mundos da música e do seu
ensino
Os mundos da música, parafraseando Howard Becker
(1984), são constituídos por conjuntos alargados de redes de indivíduos,
instituições, acções e sentidos cuja actividade é desenvolvida através de coordenações variadas, multi-situadas, e por vezes
conflituais, que contribuem para a criação, produção e difusão de determinado
tipo de trabalho artístico-musical.
Por outro lado, a
contemporaneidade formativa, artística e cultural é caracterizada por um conjunto
alargado de factores que passam pela individualização, diferenciação e
pluralismo; pela globalização de ideias e procedimentos; pela multiplicidade de
práticas, muitas vezes afastadas das suas tradições históricas; pela
multi-centralidade da vida cultural, artística e formativa; por uma formação policentrada
que não se exerce apenas no contexto escolar e académico, pela mercadorização
da música e do seu ensino. Conjunto este em que as ideias acerca da música têm
consequências diversas nos modos de organizar os sons, as formações e os
comportamentos que lhes estão associados: das culturas de tradição oral às culturas
de tradição escrita, das culturas urbanas e suburbanas as culturas mais
eruditas. As ideias acerca da música
determinam quais são os contextos para a música e como esta irá soar (Nettl, 2001:8).
Deste modo, as
polifonias existentes no ensino de música, nas culturas, práticas e consumos
artísticos das sociedades contemporâneas e a estratificação dos estilos
musicais (Martin, 1996), compreendem problemáticas estéticas (associadas a
diferentes estilos e tipologias artísticas), geográficas (englobando várias
partes do mundo), histórico-sociais, (englobando diferentes épocas, etnias,
contextos) e económico-políticas. Cada uma destas polifonias tem os seus
valores, hierarquias, códigos, convenções, usos, funções, modos de ver e de
fazer, contribuindo deste modo para o aumento da complexidade e dos hibridismos
político-artísticos e para os questionamentos entre a construção e a reprodução
social e formativa das hierarquias artísticas (Santos, 2010).
Os referentes que hoje temos em relação a este tipo
de ensino artístico, de escolas e dos seus profissionais são histórica e culturalmente
construídas, muitas vezes pouco sustentadas e questionadas “porque
aparentemente são muito evidentes” (Nóvoa, 2005), assentes numa determinada
representação do que é a arte, os
artistas, a formação confrontada entre paradigmas de tradição clássico-romântica,
paradigmas funcionalistas e a pressão da globalização, paradigmas mais
contemporâneos (Vasconcelos, 2002, 2004ª, 2013). As políticas neoliberais e os cânones
tradicionais não valorizam nem as escolas nem este tipo de ensino como "territórios
simbólicos e ambíguos”, atendendo a que os processos de educação e de formação artístico-musical são, pela sua natureza paradoxais
(Vasconcelos& Queirós, 2013).
Com efeito, pode-se
aprender as técnicas, a história, os reportórios, desenvolver a criatividade
mas dificilmente se formam artistas (Waterman, 1976). Alguém singular, que
dominando as técnicas, os reportórios, a história da música e a história social
e cultural, consegue construir uma visão particular sobre o mundo e as obras de
arte que interpreta, cria ou recria. Sob este ponto de vista, o ensino
especializado da música, só pode criar condições plurais que potenciem a
formação de artistas através do fomento de uma cultura humanista, do confronto
com diferentes mundos e realidades artísticas e outras, no alargamento dos
quadros de referência.
Por outro lado, as
relações complexas entre as exigências “universais” da educação e as
experiências singulares da arte, entre a regra e a transgressão, entre o centro
e a margem, contribuem para estas ambiguidades naquilo que Beaulieu (1993) designou
por “disciplinas indisciplinadas”. E nestas “disciplinas indisciplinadas”
existe um outro factor de grande ambiguidade e importância: o “the wow factor”
(Bamford,2006). Isto é, o encantamento e os resultados imprevistos que são
difíceis de medir mas que possuem um enorme impacto nos estudantes, professores
e comunidades transformando-se também numa força que une os diferentes actores
mesmo quando existem situações de grandes constrangimentos estruturais e
políticos. Esta mesma perspectiva é partilhada por Durrant (2003), quando
refere que a qualidade da experienciação musical é “poderosa” e nem sempre pode
ser planeada em termos de resultados finais ou medida em testes e exames como
acontece noutro tipo de contextos educacionais e formativos dado que a natureza
do acto criativo reside na divergência e no “encantamento inexplicável” (p.
82).
Neste contexto, conceptualizar o ensino especializado de música como
território de fronteira é também conceptualizar a pedagogia artística e musical
como uma pedagogia do imprevisível e criativa. E esta formação de fronteira
inscreve-se numa dinâmica dialéctica que pode ser caracterizada por se situar:
- Entre
subjectividades educativas e artísticas diferenciadas. As crianças, os jovens e os adultos movem-se em
espaços formais e informais, possuidores de memórias e sentidos consoante
as comunidades de pertença e onde as práticas individuais se cruzam com os
diferentes tipos de racionalidades, convenções, formas de sociabilidade e
identitárias. Por outro lado, um dos aspectos essenciais da formação
artística é o contributo para a construção das singularidades e da
autonomia que possibilitem a criação de novas racionalidades técnicas,
códigos e convenções, de novas racionalidades estéticas e interpretativas.
- Entre
diferentes saberes, técnicas, convenções e os indivíduos. As formas diferenciadas de expressão, criação e
realização artístico-musical têm subjacente um conjunto de convenções de
carácter múltiplo, numa dinâmica entre permanência e mudança, uma
dialéctica entre o “território de formação” e o “território do indivíduo”.
O modo como estas pontes se estabelecem é um dos aspectos determinantes de
como a criança, o jovem e o adulto apropria os saberes artísticos,
constroem as suas identidades e se projectam no futuro.
- Entre
a formação, a experimentação, a fruição e a produção. No âmbito das artes performativas, a
aprendizagem só adquire sentido num contexto de uma apresentação prática
de diferentes tipos de realizações artísticas, que têm subjacentes modos
diferenciados de comunicabilidade e públicos diversos onde confluem
múltiplas estratégias que influenciam decisivamente o jogo da oferta e da
procura, uma vez que diferem em termos de interesse e da ligação a uma
forma e género artístico particular,
- Entre
a tradição e a inovação. A música como construção social e humana, como cultura e forma de
conhecimento do mundo (Marti,2000) é enformada por diferentes contextos
socializadores de determinados procedimentos e técnicas de acordo com os
universos de referência. Mudando estes universos socioculturais,
alteram-se as significações e culturas artísticas. As memórias e as
convenções podem ser utilizadas também para superar o dilema entre o
conhecido e o desconhecido, entre a reprodução de modelos existentes ou a
criação de novos numa dialéctica entre herança e inovação, estabilidade e
mudança, algumas das faces caracterizadoras das complexidades, das
precariedades e das forças deste tipo de formação artístico-musical.
Desta conceptualização,
emerge um campo não só de singularidades como também num campo intersectorial o
que, do ponto de vista das políticas e dos modelos curriculares, importa
interrogar as diferentes possibilidades e características deste tipo de
formação de modo a que o estudante seja considerado também como um actor
político e não um consumidor, deixando de o encarar como “ser futuro” mas “ser
actual” (Canário, 2008; Small, 1980) para que as suas competências, adquiridas
em diferentes contextos formais e não formais, possam ser reconhecidas e
valorizadas. A qualificação decorre da apropriação e do desenvolvimento de
competências multifacetadas e não é um desígnio a priori da apropriação
de instrumentos de pensamento e de cultura.
Ora, esta perspectiva
de olhar para o ensino especializado de música inscreve-se no que Wilson (2002)
designa por “estrutura rizomática”, por oposição a uma “estrutura em árvore”.
Como refere este autor o pensamento dominante de diferentes actores (intelectuais,
burocratas, professores e investigadores) inscreve-se numa perspectiva de
segmentação da realidade em que se classificam, planificam e programam as
escolas e as instituições artísticas e culturais no sentido de atingir
determinados objectivos mensuráveis e que, conceptualizar as artes e a cultura,
assim como a formação artística, como “estruturas em árvore” quando elas são
rizomáticas e anti-estruturais, caracterizam a uma visão redutora dos fenómenos
complexos contribuindo para o desenvolvimento de políticas falhadas (p. 211).
Neste contexto,
torna-se pertinente, por um lado, pensar e reolhar para a necessidade de
encontrarem modalidades que procurem atenuar, senão mesmo neutralizar, a perca
do sentido de unidade, ou pelo menos de convergência, das diversas formas de
conhecimento e actividade humanas, contribuindo para alterar o empobrecimento
cultural daí decorrente. Por outro, rearticular interactivamente o Ensino de Música
requer não só transpor a inadequação entre os saberes fragmentados e
compartimentados entre disciplinas e áreas como atender às realidades, mundos e
problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais e
transnacionais. Como refere Morin (2000), a hiperespecialização impede de ver o
global (que ela fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela dilui).
Retalhando as disciplinas e saberes torna impossível apreender "o que e
tecido junto", isto e, o complexo, segundo o sentido original do termo.
Assim importa avançar
para um trabalho de construção de saberes e de conhecimento hesitante "não
em linha recta mas numa espécie de linha exaltada, que entusiasma, que vai atrás
de uma certa intensidade sentida; avanço que já não têm um trajecto definido
mais um trajecto pressentido, trajecto que é constantemente posto em causa;
quem avança hesita porque não quer saber o sítio para onde vai. Se soubesse já,
para que caminharia ele? Que pode ainda descobrir quem conhece já o destino?
Hesitar é um efeito da acção de descobrir; só não hesita quem já descobriu,
quem já colocou um ponto final no seu percurso de investigação" (Tavares,
2013, pp. 26-27). Conhecimento hesitante de modo a multiplicar “as analogias,
as explicações, as ligações; multiplicar as possibilidades de pensar’’ (Idem:
67)
2.
Do trabalho artístico e da formação de músicos: das multiactividades e das
múltiplas competências
O conceito de artista,
sendo um conceito social e culturalmente construído, é caracterizado por uma
ambiguidade com contornos diferenciados que decorrem das transformações
sócio-históricas, políticas, sociais e culturais relacionadas com a criação
artística (Le Coq, 2002, Nicolas-Le Strat, 1998;. Na definição social do ser-se
artista, a “ideologia carismática” do artista não reconhece “outro tipo de
tribunal que a sua consciência”, o que se acomoda mal tanto com “a
racionalidade burocrática”. A identidade profissional do artista não se deixa
enclausurar por “nenhuma definição jurídica dura”, existindo quatro grandes
critérios que permitem a definição deste grupo social: independência financeira
(viver da profissão); auto-definição (dizer-se artista); competência específica
(ser diplomado por uma escola artística); reconhecimento pelos pares (Moulin,
1997:249).
Neste enquadramento, a
conceptualização das profissões artísticas é também uma questão complexa
(Menger, 2005) em virtude da coexistência de “múltiplos critérios, muitas vezes
dificilmente compatíveis. “Os artistas conservam a sua identidade social
específica à força de compromissos pessoais, reforçados pela aprovação e
reconhecimento de outros artistas que povoam uma ou várias das múltiplas
comunidades informais e vibrantes que abrangem a totalidade do mundo da arte.
Ou seja, a arte não é nem trabalho, nem actividade lúdica. É um híbrido anormal
dos dois” (Freidson, 1994:134).
Este carácter hibrido
do trabalho artístico é feito de desafios e de invenções, mas também de apoios
em soluções já experimentadas anteriormente num contexto de multiplicidade de
estilos, numa oscilação permanente dos actores entre o princípio de rotinização
e o princípio carismático. A alteração nos modelos de produção e de organização
económica do trabalho no mundo artístico (Martinho, 2010) contribuíram para a
criação de um contexto onde se cruzam diferentes modos de ser-se artista –
modos de ser que se podem situar num eixo em que, num pólo, se encontra a
segurança institucional e a continuidade, e, noutro pólo, um contexto de
incertezas, em que os artistas procuram romper a compartimentação da vida
cultural regida por instituições, estruturas financeiras, públicos ortodoxos e
estilos convencionais (Coulangeon, 2000).
Este tipo de
características – relações efémeras, a diversificação e a intermitência dos
ambientes e dos projectos de trabalho – exigem ao artista uma “capacidade de
adaptação elevada, superior à que requer normalmente o emprego numa organização
permanente e estável, onde a definição das tarefas é melhor especificada”
(Menger, 1994: 8). Cada experiência de trabalho é diferenciada, cada obra e/ou
espectáculo é constituído por um conjunto de singularidades e as redes de
colaboração são modificáveis, o que contribui para que a avaliação das
competências dos artistas por si e pelos outros possa ser interminável,
atendendo à variabilidade do trabalho, aos modos de produção e de realização
artística, aos modos de recepção e de valoração social e cultural do trabalho.
Neste jogo de
complexidades, a reputação desempenha um papel relevante, reputação essa que
também se caracteriza por ser um fenómeno complexo que advém de um conjunto de
factores que passam pela escola de formação, pelas diferentes redes de mediação
e pelas características da obra e dos artistas, bem como pelos fenómenos
relacionados com a massificação da cultura e do marketing correspondente, o que
configura um conjunto de desafios e de riscos: risco de criatividade,
intermitência da actividade, remunerada e flutuação dos rendimentos,
importância da investigação e desenvolvimento não remunerado, produção
prototípica, acaso do sucesso.
Perante este quadro importa
interrogar e problematizar, ainda que de um modo sucinto, a formação de músicos
no século XXI.
Bennett (2008) defende
que os músicos do século XXI, no âmbito da designada música erudita ocidental,
necessitam de uma base mais alargada de formação envolvendo competências e
conhecimentos de modo a poderem desempenhar uma carreira como praticantes
culturais, defendendo que o músico não pode definir-se simplesmente como performer,
mas sim como um profissional multi-situado e com múltiplas competências que
permitam o desenvolvimento do trabalho e de uma carreira em mais do que um
campo especializado.
Existe uma necessidade
urgente dos conservatórios mudarem o seu modo tradicional centrado na função
exclusiva de formar intérpretes e desenvolverem um currículo mais realista e
flexível de modo a possibilitar uma abrangência maior das carreiras dos músicos
instrumentistas. Isto porque, como defende a autora, “para tornar as suas
carreiras mais sustentáveis, os músicos têm de conhecer e enfrentar uma
sociedade contemporânea com mudanças cada vez mais complexas e competitivas. Os
músicos não são apenas intérpretes mas alguém que trabalha no interior da
profissão de músico” e isto requer músicos que consigam quebrar barreiras a
nível das hierarquias e das atitudes. O sucesso deve basear-se na satisfação com
a carreira pessoal mais do que uma hierarquia pré-concebida de papéis” (Idem,p.
xiii).
Neste contexto, os
músicos intérpretes têm de reconciliar as diferenças entre as exigências da
“perfeição” técnica e estilística na interpretação musical e a procura de uma
voz, da sua voz, e da criatividade. Exigências que irão encontrar no âmbito do
exercício profissional. Deste modo o pensar e o formar músicos instrumentistas
para estes contextos societais paradoxais e ambíguas, para estes contextos
societais, económicos e cultuais em mudança, significa pensar e construir um
currículo e uma acção formativo-artística que promovam experiências de
aprendizagem que contribuam para a “construção de multi-competências”, de
abertura aos diferentes mundos. Como escreveu Madalena Perdigão (1979), “Exige-se ao artista de hoje, para além do
domínio das técnicas do seu campo específico, uma compreensão profunda dos
problemas inerentes à sua profissão e uma abertura de espírito relativamente
aos outros campos de conhecimento e aos restantes campos de actividade”.
Particularidades que
implicam (re)pensar politicamente a formação artístico-musical atendendo ao
trabalho potencial a desenvolver (criação, interpretação, investigação,
docência, produção, gestão das artes, agentes, tecnologias, desenvolvimento de
projectos, por exemplo) e num quadro de multiactividade, de intermutabilidade
bem como de renovação de espaços e de territórios de intervenção
educativo-artística, entre diferentes
processos através dos quais práticas diferentemente ignorantes se transformam
em práticas diferentemente sábias (Santos, 2002).
3.
Os desafios de viver em tempos de mudança: lidar com as incertezas
Tendo em consideração o
exposto anteriormente, sintetizo os desafios que se colocam ao ensino
especializado de música em torno de um conjunto de 4 cês: conhecimento,
criatividade, cosmopolitismo, complementaridade.
Conhecimento:
compreender, intervir e lidar com as complexidades
O conhecimento
afigura-se como uma das dimensões centrais na vida das sociedades
contemporâneas. Conhecimento que, como sabemos, difere de acumulação de
informação, embora sem ela não o conhecimento não exista. Pode advir de
múltiplos modos (mais formais e informais) e constituir-se em diferentes
modalidades: do conhecimento científico ao conhecimento artístico, do
conhecimento filosófico ao conhecimento experiencial.
Neste contexto, importa
chamar a atenção para o papel da investigação e da pesquisa na compreensão das
diferentes realidades, na produção artística e na produção do conhecimento. Hánnula
et al. (2005) referem que
"[A investigação artística] está relacionada com os processos e dimensões
de auto-reflexão e autocrítica de um indivíduo envolvido na construção sentidos
no âmbito da arte contemporânea, e de uma forma em que ele comunica de onde vem, onde ele está nesse
preciso momento, e para onde quer ir" (p.10). Isto pressupõe um estádio do
"ainda não saber muito bem o que fazer'' e normalmente desordenado em que
o artista-investigador "não têm uma direcção clara sobre o que faz, seja
incapaz de articular o processo de um modo claro e quando o estágio inicial
termina o pensamento e o processo pode ser recapitulado e comunicado.
Neste “estar preparado
para perceber o inesperado” o “conhecimento em arte” é uma dimensão relevante. Como
refere Efva Liljá (2012), “o conhecimento em arte ("knowledge in art'')
está relacionado com o que eu preciso para criar alguma coisa, para expressar e
comunicar as minhas ideias no mundo exterior. E através deste conhecimento que
sou capaz de apreciar a arte, e melhorar as minhas competências para comunicar
e olhar para o mundo de um outro modo, de uma outra perspectiva fora do que é o
senso comum existente nos quotidianos […]. Uma reflexão consciente e uma
visualização dos sentidos num trabalho artístico que é eminentemente subjectivo
no plano da sua recepção e interpretação".
Criatividade:
potenciar os imaginários
A criatividade pode-se
caracterizar por ser um processo complexo envolvendo o processamento de
informações e saberes diferenciados, ideias, acções, sentidos e estruturas e
modos de fazer presentes num determinado momento e espaço conceptual, social e
cultural de que podem resultar múltiplas possibilidades de articulações
significativas (Odena, 2012; Thomas & Chan, 2013). As complexidades
existentes neste processo, a mobilização e manipulação dos saberes,
enquadram-se num contexto de um trabalho oficinal (mesmo utilizando aparatos
tecnológicos também eles complexos).
O processo criativo
começa, de um modo geral, com o objectivo da resolução de um determinado
problema, exterior ou interior ao individuo ou sugerido pelo estado da arte do
domínio em que se inscreve, numa dinâmica entre a criação de algo de novo e/ou
reconfigurado, de descoberta e de bricolage
(Csikszentmihalyi,1996). Contudo, “quando falamos de imaginação estamos também
no campo da contestação […] das fixações de um aqui e de um ali, de um interior
e de um exterior” numa geometria plural e “espantosa (que espanta, que
surpreende)” (Tavares,2013:32-33) aberta ao acaso e ao desconhecido.
Neste processo importa estar-se atento e
potenciar “um quadro alargado de traços de personalidade” que incluem
“independência de julgamento, auto-confiança, atração pela complexidade,
orientação estética, tolerância para lidar com a ambiguidade, abertura para a
experimentação e para lidar com o risco” (Baer & Kaufman, 2006:18).
Consequentemente o desenvolvimento de um trabalho formativo, passa por um
conjunto alargado e interdependente de situações e de “encontros estratégicos”
que “compreendem uma colisão criativa do individual, ideias e acções” (Burnard,
2012).
Encontro
estratégico e interactivo que implica atender à perspectiva poliédrica do
processo, e que, sinteticamente, envolve: (a) “o potenciar o imaginário”,
revestindo-se de múltiplas formas e modelagens musicais e extramusicais, significa
“o motor do início de algo, o momento de aparente imobilidade onde,
interiormente, […] se constroem ideias: umas combatendo outras” (Tavares, 2013:384);
(b) a “exploração e experimentação” em que de modos diferenciados se vão
procurando e adequando às ideias, processos, objectos, técnicas. (c) o “passar
do imaginado ao fazer o imaginado”, criando “novas coisas”, novas ideias ou
ideias reconfiguradas no mundo, multiplicando “as possibilidades de verdade, as
analogias, as explicações, as ligações” (Idem:385).
Cosmopolitismo:
convivialidade entre diferentes
Como tenho vindo a
defender, a actividade artística “não é una; ela não é a actividade de um
artista. Ela é sempre plural. E por detrás dessa pluralidade se descobre a
diversidade, as disciplinas, as notoriedades, as sensibilidades, os estatutos
[…]”. Mesmo que “a actividade seja única – a unicidade de uma criação ou de um
espectáculo – isso não a impede de existir como multiplicidade, de associar
competências, de misturar os géneros, de desconstruir as suas próprias
referências, de organizar os estilos, de transgredir o seu espaço. A sua
multiplicidade […] informa-nos acerca do seu mundo de acção (o rizoma ou a
rede), do seu desempenho e da sua produtividade (a desmultiplicação)” (Nicolas-Le
Strat, 2002: 38-39).
Destas
interdependências, singularidades e proliferação de sentidos e de mundos,
muitas vezes distantes e conflituais, emerge a necessidade de encontrar
formulações que permitam a convivialidade entre referências múltiplas, entre
culturas que se interpenetram, o que tem subjacente uma perspectiva cosmopolita
de olhar para o trabalho formativo e para as carreiras artísticas. A
convivialidade entre diferentes “territórios de fronteira” e zonas de contacto,
entre diferentes tipologias e géneros artísticos, diferentes saberes técnicos,
estéticos e culturais, diferentes saberes experienciais e entre modalidades
formais e informais (Green, 2002; 2008).
Esta convivialidade
implica uma “imaginação dialógica”, de que fala Ulrich Beck (2002). Diz este
autor que a “imaginação dialógica” corresponde “à coexistência de modos de vida
rivais na experiência individual, o que torna inevitável a comparação, a
reflexão, a crítica, a compreensão e a combinação de certezas contraditórias”.
Enquanto “a perspectiva nacional é uma imaginação monológica, que exclui a
alteridade e o outro”, a perspectiva cosmopolita é “uma imaginação alternativa,
a imaginação de modos de vida e racionalidades alternativas que incluem a alteridade
do ‘outro’ (p. 18).
Ora esta visão do
cosmopolitismo é perspectivada, a partir do local, naquilo que designo por
“localismo cosmopolita” que contrarie a desterritorialização do trabalho e
contribua para a afirmação das singularidades. E nestes “localismos
cosmopolitas” as comunidades apresentam-se como um elemento determinante no
desenvolvimento dos projectos colectivos e individuais. Como salienta John
Holden, os projectos de natureza mais comunitária estão também no
fortalecimento da consciência de que se pertence à comunidade. Diz este autor
que “o que cria um grupo é a cultura e as formas de expressão partilhadas, os
lugares de encontro, os lugares onde estamos habituados a ir – tanto em teatros
e concertos, como nas ruas e bares” (Público, 15 Fevereiro 2015, p. 33).
Neste contexto, ao
invés de uma estrutura verticalizada de se pensar e organizar o ensino
especializado, o trabalho artístico-pedagógico e a dinamização artística e
cultural das intervenções, a perspectiva cosmopolita pensa-se numa organização
e estrutura mais horizontal em que as particularidades de cada mundo em
presença são tidas em consideração, em que a alteridade, ou seja, o tratamento
do outro é feito não como um adversário mas como um parceiro de uma comunidade
de interesses, de uma comunidade de aprendizagens. O que nos e estranho, o que
é “estrangeiro” não é vivido como uma ameaça mas como um enriquecimento,
ultrapassando as antigas dicotomias entre o local e o global, o nacional e o
transnacional, os profissionais e os amadores, na mobilização de um conjunto de
valores de assunção das diferenças como forma de construção de igualdades.
Complementaridade:
entre as escolas, as formações, os artistas e as instituições culturais
Existe uma abundante expertise, competências e boas práticas
musicais em diferentes tipos de contextos quer no que se refere aos artistas
individualmente considerados (intérpretes, compositores, por exemplo) quer em
diferentes tipos de organizações artísticas e em diferentes níveis de escolas,
que nem sempre é potenciada e articulada.
Ora, uma das questões
centrais para o desenvolvimento da educação artístico-musical é conceber
contextos educativos e formativos, com as correspondentes metodologias e
estratégias, que possibilitem a conexão entre a escola, a casa e a comunidade,
de modo a desenvolver atitudes positivas para as aprendizagens e para fazer
música em conjunto, bem como contribuir para a construção de pontes entre as
actividades musicais, os recursos e os saberes as comunidades.
Uma das dimensões desta
complementaridade está relacionada com os “artistas na escola”. Um dos
argumentos principais que defendem o papel dos artistas nas escolas e na
educação sugere que “os artistas são os principais defensores da autêntica
experiência de criar, fazer e experimentar. O que é necessário é uma mudança
fundamental na compreensão do que os artistas podem trazer para a educação –
bem como dos benefícios que também eles retiram desse papel. […]. Ao convidarem-se
artistas para desempenharem um papel num ambiente escolar, consegue-se realizar
os objectivos das políticas, uma vez que as parcerias entre artistas e
educadores trazem para a sala de aula especialidades diferentes mas
complementares” (Bennington College, 2002, p. 8).
Contudo, o trabalho
artístico-pedagógico que deverá a continuar a ser feito pelos professores não
deverá ser confundido com o trabalho desenvolvido pelos artistas. Como refere
Marland-Militello (2005) “convém distinguir o trabalho pedagógico do professor
do trabalho realizado pelo artista ou interveniente exterior. A perpetuação,
mas também o desenvolvimento das cooperações passam por um incremento da
duração média das intervenções, pelo desenvolvimento da disponibilização de
professores nas estruturas culturais, pelo reforço das estruturas educativas
nas instituições culturais, por um maior esclarecimento dos objectivos
atribuídos às instituições e pela sistematização do auxílio à realização de projectos
por parte dos artistas” (p. 73).
Uma outra dimensão da
complementaridade e dos processos colaborativos centra-se num trabalho de
resistência a favor de modalidades que contrariem as tendências dominantes
assentes em lógicas mercantilizadas de conceber e organizar a formação e as
artes e que reforce as possibilidades de partilha em que se retome a ideia
renascentista de trabalho em grupo. Como refere criticamente Maria João Pires
ao jornal Vanguardia de 17 fevereiro de 2015 a propósito do seu Projecto
Partitura: “É como uma pós-graduação para encarar a vida profissional. Pretendo
que enfrentem os problemas do mundo de hoje de uma maneira correcta, porque
temos muitos músicos talentosos por todo o mundo e se vêm obcecados a seguir os
mesmos canais para conseguir trabalho: concursos para ser considerado “o
melhor” e lutar pela fama de maneira muito solitária. Claro que é importante
apresentar-se ante o público, mas o mais importante é partilhar algo entre
gerações, e essa transmissão de conhecimentos há desaparecido, já não há
professores com essa capacidade de ensinar como tocar. Já não partilham, só vendem
um produto comercial. O modelo renascentista do trabalho em grupo é importante,
uma experiência partilhada, orgânica. Não só estás a aproveitar-te do presente
mas também projectando-te. Se não projectas nada sucede”
4.
Considerações finais
Num tempo em que as
trocas culturais se multiplicam em confronto e em convergência (Vasconcelos,
2004b), em que a criação artística quebra fronteiras estéticas e geográficas,
onde as práticas individuais reinventam modos diferenciados de relacionamento
com os objectos simbólicos e com os territórios do imaginário, a escola e os
diferentes actores interrogam os deveres, responsabilidades e estratégias em
matéria da educação artístico-musical. Estas reconfigurações reivindicam da
acção pública um cruzamento de desafios nacionais, tradições, patrimónios,
identidades, mas também problemáticas transversais decorrentes de um mundo
globalizado e dos processos de globalização cultural.
Ora as “singularidades
diferentemente articuladas”, que caracterizam o ensino especializado de música
e jogo de complexidades inerentes, têm subjacente um pensar político e um
conjunto de políticas também alicerçadas em redes de geometrias variáveis.
Políticas com diferentes tipos de configurações de interdependências, entre (a)
as escolas, o estado e a administração; (b) instituições formativas e
formações; (c) formações e políticas culturais e musicais; (d)
profissionalidades docentes diferenciadas; (e) o local e o transnacional; (f) o
carácter compósito e intermitente do trabalho artístico (Vasconcelos, 2011).
Políticas que dêem
corpo às práticas inovadores existentes no terreno e que contribuam para a
construção de uma outra ideia de escola, de formação de vivências artísticas
uma vez que “a escola que procura a
homogeneidade, que se rege por metas iguais para todos os alunos, que ostraciza
a diferença não é certamente o melhor começo de vida para pessoa que vão ter de
participar em sociedades conflituais e que exigem negociação; não vai ser, de
certo, a melhor escola para cultivar a criatividade e para abrir os caminhos da
cooperação. […] Sermos singulares significa que temos representações muito
diferentes do mundo, por isso nos enriquecemos com o pensamento dos outros”
(Rodrigues, 2015, Público 10 de Abril 2015, p. 45).
Ora, o ensino artístico, as artes e as escolas artísticas começam a
representar um bom sinal na construção destas singularidades.
Daí a pertinência das escolas artísticas como centros e laboratórios de cultura
e de cidadania, onde diferentes gerações aprendem a arte do encontro com os
saberes, as técnicas, as estéticas e, principalmente, a arte do encontro com os
outros na co-construção e reconfiguração dos mundos pessoais e colectivos. O
trabalho constrói-se alicerçado na história, nas memórias e em determinadas
visões do futuro mas, fundamentalmente, nas vivências do presente e, deste modo, está-se a contribuir
para uma sociedade mais culta e, por essa via, mais democrática.
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[1] Texto
resultante da conferência apresentada no II Encontro
do Ensino Artístico Especializado da Música do Vale do Sousa, sob o tema:
Olhares e Geografias Sobre o Ensino da Música, Lousada 15 de Abril de 2015.