1. O documento Perfil dos Alunos para o Século XXI, apresentado publicamente, no
dia 13 de fevereiro, e colocado em discussão pública até 13 de março, foi elaborado
por um Grupo de Trabalho criado pelo Ministério da Educação, através do Gabinete do Secretário de Estado da Educação, nos termos do Despacho n.º 9311/2016, de 21 de julho. Neste
despacho salienta-se que por um lado, que “é necessário garantir
um perfil de saída para todos os jovens no final da escolaridade obrigatória,
que lhes permita continuar a aprender ao longo da vida, independentemente da
diversidade de públicos escolares e de percursos formativos por que tenham
optado no ensino secundário, e responder aos desafios sociais e económicos do
mundo atual, alinhados com o desenvolvimento de competências do século XXI” e,
por outro que “a construção de tal perfil, atenta a sua natureza e relevância,
exige a uma abordagem e reflexão multidisciplinar, participada e abrangente
sobre os saberes nucleares que todos os jovens devem adquirir no final da
escolaridade obrigatória”. Este Grupo teve como missão “ a definição do perfil
de saída dos jovens de 18 anos de idade, no final de 12 anos de escolaridade
obrigatória, devendo apresentar um relatório das atividades desenvolvidas, que
inclua conclusões, propostas e recomendações, até 31 de dezembro de 2016” (DR
n.º 139/2016, Série II de 2016-07-21).
2. Este
“Perfil” é uma reflexão pertinente sobre uma
determinada visão acerca da educação em Portugal e permite ir além das rotinas
e padrões tradicionais procurando que a escola dê respostas, sempre
transitórias e contingentes, aos desafios que se colocam nas sociedades
contemporâneas. Por outro lado, é documento
importante (a) pela importância que se reveste esta problemática e que em
alguns países anda a ser trabalhada desde os anos 90 do século passado; (b)
pela síntese que apresenta de alguns documentos internacionais, governamentais
e não governamentais, sobre esta assunto (embora só faça referência a (a) European Union’s Recommendation on Key Competences for Lifelong
Learning; (b) OECD, Future of Education and Skills: Education2030; (c) UNESCO,
Education 2030 Framework for Action; (d) OECD DESECO framework; (e)
Partnerships 21 framework e (f) ATC21S framework) e (c) pela concisão da
escrita, embora esta concisão se apresente muitas vezes vaga e generalista.
3. Neste contexto, atendendo à complexidade das ideias em
presença e as suas implicações políticas, concetuais, práticas e
organizacionais e na impossibilidade de fazer uma análise mais aprofundada, este
contributo vai focar-se em apenas duas dimensões essenciais: a dimensão
política e de políticas e a dimensão da formulação das competências.
Dimensão política e de políticas: envolvimento, enquadramento, estudos e a centralidade dos saberes e conhecimentos em cruzamentos vários
4.
Sendo um documento de natureza política e de políticas, e com um objectivo de
grande alcance, “Perfil dos alunos para o século XXI”, prefigurava-se uma
construção política que abrangesse um trabalho com os vários sectores e atores
da sociedade portuguesa (um pouco à semelhança dos anos 90 - Revisão
Participada do Currículo; Encontros do Secundário - e do qual resultaram
documentos enquadradores e estruturadores do perfil de competências). Dar
apenas um mês para a discussão parece-me muito curto e na prática, pela
história dos processos de decisão política em Portugal, pouco de substantivo se
irá alterar ao documento em discussão. Aliás nas escolas que conheço o debate é
praticamente inexistente ou circunscrito aos Conselhos Pedagógicos, apesar de
se afirmar que o documento é problemático. Também no que se refere ao debate
público ele tem sido praticamente nulo atendendo ao que está em jogo, em termos
concetuais, políticos e organizacionais. Por outo lado, e pelo que se vai lendo
pela imprensa, existem outros grupos de trabalho (associações profissionais)
que estão a trabalhar nas áreas disciplinares correspondentes, o que configura
algum desrespeito pelo documento em análise e pelos contributos que vierem a
ser apresentados. Dá a pertinência não só de se alargar o tempo de debate como
também se incentivar a sua discussão. A Escola, aas novas gerações para futuros que ainda não se
conhecem.
5.
Do ponto de vista político-científico, digamos assim, este documento suscita pelo
menos três questões que me parecem essenciais e estruturantes de toda ideologia
do “Perfil”. Uma diz respeito ao entendimento, à visão do que se pretende que a
seja a Escola. Com efeito, quando na nota introdutória se afirma “o perfil dos alunos no final da escolaridade obrigatória
estabelece uma visão de escola e um compromisso da escola, constituindo-se para
a sociedade em geral como um guia que enuncia os princípios fundamentais em que
assenta uma educação que se quer inclusiva. Apresenta uma visão daquilo que se
pretende que os jovens alcancem, sendo, para tal, determinante o compromisso da
escola, a ação dos professores e o empenho das famílias e encarregados de
educação” (p. 7) não existe nenhum parágrafo que com a clareza possível de nota
sobre qual é a perspectiva, qual é essa visão e qual é o compromisso que se
pretende entre os diferentes atores. A leitura do documento remete não para uma
visão mas para diferentes visões do que se pretende que a Escola seja, e
ficando num plano muito generalista dificilmente se conseguirá dar corpo às
diversas sensibilidades existentes no seu interior e que se devem manter em
torno de um bem comum. O dizer-se que “a escola tem como missão despertar e
promover a curiosidade intelectual e criar cidadãos que, ao longo da sua vida,
valorizam o saber” é muito curto tendo em conta as várias dimensões, valências
e atores envolvidos em todo este processo. Sociedade, as Famílias e as Crianças e os Jovens teriam muito a ganhar no desenvolvimento do debate informado.
6. Por outro lado, num contexto em que cada vez mais se torna fundamental a construção de políticas públicas com base na evidência, no conhecimento, e para além do debate enunciado anteriormente, é de toda a pertinência a existência de estudos que ajudem a compreender e a enformar as possibilidades dos caminhos e dos desafios, de que falarei mais adiante, que se colocam à Escola e à sociedade portuguesa contemporânea na construção do presente e nas perspectivas de futuro. Um documento desta envergadura e que consubstancia uma mudança radical nos modos de pensar e organizar a formação das crianças e dos jovens, nos modos de pensar e de organizar a escola, quer em termos curriculares quer em termos organizacionais, sem que seja sustentado em termos de reflexões e estudos diferenciados dificilmente trará as mudanças que se impõem no contexto escolar de modo a preparar
7. Uma segunda questão está relacionada com a afirmação de que “as
aprendizagens são o centro do processo educativo” e que de certo modo entra em
contradição com o que vem expresso numa outra afirmação de que “a ação
educativa é, pois, compreendida como uma ação formativa especializada, fundada
no ensino, que implica a adoção de princípios e estratégias pedagógicas e
didáticas que visam a concretização da aprendizagem” (p. 18). Percebendo de
onde vem a ideia, (existem alguns documentos internacionais que falam sobre
este assunto) não poderia estar mais em desacordo com a afirmação de que “as
aprendizagens são o centro do processo educativo”. Não. O centro do processo
educativo é os saberes e conhecimentos de diversa natureza e as suas
inter-relações com as crianças e os jovens, as suas interrelações com o mundo.
A aprendizagem decorre dos modos como a mobilização de diferentes tipos de
estratégias, metodologias, modos de trabalho contribuem para a apropriação de
saberes de natureza concetual, técnica, tecnológica, artística, humanística,
saberes experienciais e saberes de natureza relacional. O problema que se tem
colocado é de uma dupla natureza, por um lado os saberes escolares
autonomizaram-se em relação aos diferentes saberes e conhecimentos existentes
em diferentes contextos e por outro a existência da “indústria dos manuais”
ainda reforça e “parcelariza” determinada áreas do conhecimento.
8. Uma terceira questão diz respeito à afirmação de que “a escola
é […] um lugar privilegiado para os jovens adquirirem as aprendizagens
essenciais, equacionadas em função da evolução do conhecimento e dos contextos
histórico-sociais.”. O que os diferentes estudos têm demonstrado é que a situam-se (a) na
sua natureza transversal, abrangendo mais do que um domínio do saber; (b) o seu
caracter multidireccional, envolvendo saberes, conhecimentos, atitudes e
valores e (c) a sua perspectiva aberta e polissémica. Contudo, a sua formulação apresenta alguns
pontos críticos na sua dimensão conceptual uma vez que mistura diferentes tipos
de conceptualizações e remetem para questões de natureza muescola não é uma ilha isolada dos contextos sociais, culturais e a apropriação dos saberes e as aprendizagens são consubstanciados numa relação estreita e poligonal entre a Escola-Sociedade-Família- Tecnologias de Informação e de Comunicação-Pares. É nesta relação complexa que as aprendizagens essenciais de desenvolvem. Apesar de se afirmar que “este referencial convoca os esforços e a convergência da sociedade –pais, encarregados de educação, famílias, professores, educadores e restante comunidade educativa – para o desenvolvimento de iniciativas e ações orientadas para assegurar o acesso a uma educação de qualidade para todas as crianças e jovens” (p. 7) não existe, contudo, nenhuma reflexão que procure enquadrar esta relação complexa onde se desenrolam as aprendizagens essenciais e em que a Escola tem uma centralidade fundamental na articulação destas complexidades.
Algumas dimensões críticas das competências-chave: maior precisão concetual tendo em conta nove grandes desafios
9. As características globais do desenho das competências para o século XXI apresentam dimensões interessantes e pertinentes no que se refere ao conceito de competência onde se procura e bem, ira além das competências disciplinares tradicionais”. E estas dimensões interessantes ito diversa e,
nalguns caso, remete para áreas disciplinares muito específicas como por
exemplo “Consciência e domínio do Corpo”.
11.
Por outro lado, misturam-se questões de natureza muito diversa sem que se
perceba bem às lógicas internas subjacentes nem as lógicas globais. Com efeito,
esta mistura envolve questões como (a) modos de pensamento (inerentes às áreas
de pensamento crítico e pensamento criativo, às áreas de raciocínio e resolução
de problemas, às questões de criatividade e inovação); (b) modos de trabalho
(Informações comunicação, colaboração e trabalho de grupo); (c) ferramentas
para o trabalho (saber técnico e tecnologias); (d) viver em sociedade (relacionamento
interpessoal, autonomia e desenvolvimento pessoal, a que acrescento cidadania
local e global, vida e a carreira, responsabilidade pessoal e social) e (e) consciência
de si (bem estar e saúde, consciência e domínio do corpo).
12.
Ora, esta mistura sem estar devidamente explicitado conduz a um conjunto de
redundâncias o que implica uma re-arrumação concetual das diferentes áreas de
competências de modo a que se torne mais clara a sua operacionalização. E nesta
rearrumação importa a necessidade de se explicitar claramente, para além dos
princípios e dos valores, as relações entre os principais desafios que se
colocam às crianças e aos jovens nas sociedades contemporâneas em termos
globais e aos desafios que se colocam em termos do exercício de uma actividade
profissional que provavelmente ainda não existe actualmente, ou a sua
reconfiguração profissional.
13..
E os principais desafios podem ser sintetizados em nove grandes campos: (1) O
desafio do saber e do conhecimento; (2) o desafio do conhecimento do mundo (e
isto liga-se às memórias, à história, por exemplo; (3) o desafio da imaginação
e da criatividade (e não da inovação); (4) o desafio do conhecimento de si e de
viver com o outro; (5) o desafio das multifunções e das multiactividade; (6) o
desafio da pesquisa, da experimentação e da produção de conhecimento; (7) o desafio da automação e das humanidades digitais; (8) o desafio da ecologia e da sustentabilidade e (9) o
desafio da ética, da exigência e da responsabilidade social.
14. Por outro lado, a proliferação das
áreas de competências, 10 no total, conduz a que em alguns casos haja
redundâncias na sua categorização e que terá implicações complexas na sua
operacionalização. Com efeito, se me situar no plano dos governos, por exemplo
na Nova Zelândia este define cinco áreas de competências chave; pensamento; utilização da linguagem, símbolos e texto;
auto-gestão; relacionamento com os outros e participar e contribuir; o “Relatório
Delors” de 1998 agrupa em quatro grandes domínios, o “Partnership for 21th Century
Learning” de 2006, agrupa em quatro; o referencial
da OCDE de 2015 em três e o de 2016 também em três; o referencial do “World
Economic Forum” de 2015 também divide em três e o Relatório da Comissão
Europeia de 2006, que se encontra actualmente em discussão, em oito, e o do “The Center for Curriculum Redesign” explicita quatro
(criatividade, pensamento critico, colaboração, comunicação).
15. Neste contexto proponho a
explicitação, a reformulação e o rearranjo das áreas de competências em torno de
cinco grandes domínios de natureza diversa: (competências cognitivas,
competências criativas; competências individuais; competências sociais e
competências éticas). Este conjunto, partindo do documento intitulado “New
Vision for Education” (2015) do World Economi Forum tem por base a interligação
entre as literacias fundamentais (como é que as crianças e os jovens aplicam as
competências essenciais no dia a dia); as competências (como é que as crianças
e os jovens abordam os desafios complexos) e as características pessoais (como
é que as crianças e os jovens abordam as mudanças societais e culturais.) No
primeiro caso salienta-se a literacia, a numeracia, aliteracia científica e
literacia artística, a literacia tecnológica, a literacia cultural e cívica; no
segundo caso, o pensamento critico e a resolução de problemas, a criatividade,
a comunicação, a colaboração, no terceiro caso, a curiosidade, a criatividade,
a persistência, adaptabilidade, liderança e a consciência social e cultural.
16.
Uma nota final relacionada com a área de competências “Sensibilidade estética e
artística”. O documento define que “as competências na área de sensibilidade
estética e artística dizem respeito à fruição das diferentes realidades
culturais e ao desenvolvimento da expressividade de cada indivíduo. Integram um
conjunto de capacidades relativas à formação do gosto individual e do juízo
crítico, bem como ao domínio de processos técnicos e performativos envolvidos
na criação artística, possibilitando o desenvolvimento de critérios estéticos
para uma vivência cultural informada.”. “As competências associadas à sensibilidade
estética e artística implicam que os alunos sejam capazes de: (a) apreciar criticamente
as realidades artísticas e tecnológicas, pelo contacto com os diferentes
universos culturais; (b) entender a importância da integração das várias formas
de arte nas comunidades e na cultura; (c) compreender os processos próprios à
experimentação, à improvisação e à criação nas diferentes artes, tanto em
relação ao património cultural material e imaterial, como à criação
contemporânea” (p. 16). Na página 23, “Descritores operativos” escreve-se que
(a) “Os alunos desenvolvem o sentido estético, mobilizando os processos de
reflexão, comparação, argumentação em relação às produções artísticas e
tecnológicas, integradas nos contextos sociais, geográficos, históricos e
políticos”; (b) “os alunos valorizam as manifestações culturais das comunidades
e participam autonomamente em atividades artísticas e culturais, como público,
criador ou intérprete, consciencializando-se das possibilidades criativas”; (c)
“os alunos percebem o valor estético das experimentações e criações, a partir
de intencionalidades artísticas e tecnológicas, mobilizando técnicas e recursos
de acordo com diferentes finalidades e contextos socioculturais”. Parece que
não se aprendeu nada desde 2001, em que se elaboraram as “Competências Essenciais.
Com efeito, dando enfase a que “as competências na área de sensibilidade
estética e artística dizem respeito à fruição das diferentes realidades
culturais e ao desenvolvimento da expressividade de cada indivíduo” parece
esquecer-se que as artes, com as suas múltiplas funções e múltiplos usos são
formas de construção e de apropriação de diferentes mundos (reais e
imaginários), são formas de construção e reconstrução de identidades
(individuais e colectivas), são formas de saber e de conhecimento. Parece que
não existe literatura abundante quer em termos mais ideológicos quer em termos
científicos, parece que não existem experiências e práticas artísticas e
criativas contemporâneas.