terça-feira, 7 de março de 2017

Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória – Um contributo para o debate através de algumas notas críticas


1. O documento Perfil dos Alunos para o Século XXI, apresentado publicamente, no dia 13 de fevereiro, e colocado em discussão pública até 13 de março, foi elaborado por um Grupo de Trabalho criado pelo Ministério da Educação, através do Gabinete do Secretário de Estado da Educação, nos termos do Despacho n.º 9311/2016, de 21 de julho. Neste despacho salienta-se que por um lado, que “é necessário garantir um perfil de saída para todos os jovens no final da escolaridade obrigatória, que lhes permita continuar a aprender ao longo da vida, independentemente da diversidade de públicos escolares e de percursos formativos por que tenham optado no ensino secundário, e responder aos desafios sociais e económicos do mundo atual, alinhados com o desenvolvimento de competências do século XXI” e, por outro que “a construção de tal perfil, atenta a sua natureza e relevância, exige a uma abordagem e reflexão multidisciplinar, participada e abrangente sobre os saberes nucleares que todos os jovens devem adquirir no final da escolaridade obrigatória”. Este Grupo teve como missão “ a definição do perfil de saída dos jovens de 18 anos de idade, no final de 12 anos de escolaridade obrigatória, devendo apresentar um relatório das atividades desenvolvidas, que inclua conclusões, propostas e recomendações, até 31 de dezembro de 2016” (DR n.º 139/2016, Série II de 2016-07-21).

2. Este “Perfil” é uma reflexão pertinente sobre uma determinada visão acerca da educação em Portugal e permite ir além das rotinas e padrões tradicionais procurando que a escola dê respostas, sempre transitórias e contingentes, aos desafios que se colocam nas sociedades contemporâneas. Por outro lado, é documento importante (a) pela importância que se reveste esta problemática e que em alguns países anda a ser trabalhada desde os anos 90 do século passado; (b) pela síntese que apresenta de alguns documentos internacionais, governamentais e não governamentais, sobre esta assunto (embora só faça referência a (a) European Union’s Recommendation on Key Competences for Lifelong Learning; (b) OECD, Future of Education and Skills: Education2030; (c) UNESCO, Education 2030 Framework for Action; (d) OECD DESECO framework; (e) Partnerships 21 framework e (f) ATC21S framework) e (c) pela concisão da escrita, embora esta concisão se apresente muitas vezes vaga e generalista.

3. Neste contexto, atendendo à complexidade das ideias em presença e as suas implicações políticas, concetuais, práticas e organizacionais e na impossibilidade de fazer uma análise mais aprofundada, este contributo vai focar-se em apenas duas dimensões essenciais: a dimensão política e de políticas e a dimensão da formulação das competências.

 




Dimensão política e de políticas: envolvimento, enquadramento, estudos e a centralidade dos saberes e conhecimentos  em cruzamentos vários
 

4. Sendo um documento de natureza política e de políticas, e com um objectivo de grande alcance, “Perfil dos alunos para o século XXI”, prefigurava-se uma construção política que abrangesse um trabalho com os vários sectores e atores da sociedade portuguesa (um pouco à semelhança dos anos 90 - Revisão Participada do Currículo; Encontros do Secundário - e do qual resultaram documentos enquadradores e estruturadores do perfil de competências). Dar apenas um mês para a discussão parece-me muito curto e na prática, pela história dos processos de decisão política em Portugal, pouco de substantivo se irá alterar ao documento em discussão. Aliás nas escolas que conheço o debate é praticamente inexistente ou circunscrito aos Conselhos Pedagógicos, apesar de se afirmar que o documento é problemático. Também no que se refere ao debate público ele tem sido praticamente nulo atendendo ao que está em jogo, em termos concetuais, políticos e organizacionais. Por outo lado, e pelo que se vai lendo pela imprensa, existem outros grupos de trabalho (associações profissionais) que estão a trabalhar nas áreas disciplinares correspondentes, o que configura algum desrespeito pelo documento em análise e pelos contributos que vierem a ser apresentados. Dá a pertinência não só de se alargar o tempo de debate como também se incentivar a sua discussão. A Escola, aas novas gerações para futuros que ainda não se conhecem.

5. Do ponto de vista político-científico, digamos assim, este documento suscita pelo menos três questões que me parecem essenciais e estruturantes de toda ideologia do “Perfil”. Uma diz respeito ao entendimento, à visão do que se pretende que a seja a Escola. Com efeito, quando na nota introdutória se afirma “o perfil dos alunos no final da escolaridade obrigatória estabelece uma visão de escola e um compromisso da escola, constituindo-se para a sociedade em geral como um guia que enuncia os princípios fundamentais em que assenta uma educação que se quer inclusiva. Apresenta uma visão daquilo que se pretende que os jovens alcancem, sendo, para tal, determinante o compromisso da escola, a ação dos professores e o empenho das famílias e encarregados de educação” (p. 7) não existe nenhum parágrafo que com a clareza possível de nota sobre qual é a perspectiva, qual é essa visão e qual é o compromisso que se pretende entre os diferentes atores. A leitura do documento remete não para uma visão mas para diferentes visões do que se pretende que a Escola seja, e ficando num plano muito generalista dificilmente se conseguirá dar corpo às diversas sensibilidades existentes no seu interior e que se devem manter em torno de um bem comum. O dizer-se que “a escola tem como missão despertar e promover a curiosidade intelectual e criar cidadãos que, ao longo da sua vida, valorizam o saber” é muito curto tendo em conta as várias dimensões, valências e atores envolvidos em todo este processo. Sociedade, as Famílias e as Crianças e os Jovens teriam muito a ganhar no desenvolvimento do debate informado.





6. Por outro lado, num contexto em que cada vez mais se torna fundamental a construção de políticas públicas com base na evidência, no conhecimento, e para além do debate enunciado anteriormente, é de toda a pertinência a existência de estudos que ajudem a compreender e a enformar as possibilidades dos caminhos e dos desafios, de que falarei mais adiante, que se colocam à Escola e à sociedade portuguesa contemporânea na construção do presente e nas perspectivas de futuro. Um documento desta envergadura e que consubstancia uma mudança radical nos modos de pensar e organizar a formação das crianças e dos jovens, nos modos de pensar e de organizar a escola, quer em termos curriculares quer em termos organizacionais, sem que seja sustentado em termos de reflexões e estudos diferenciados dificilmente trará as mudanças que se impõem no contexto escolar de modo a preparar

7. Uma segunda questão está relacionada com a afirmação de que “as aprendizagens são o centro do processo educativo” e que de certo modo entra em contradição com o que vem expresso numa outra afirmação de que “a ação educativa é, pois, compreendida como uma ação formativa especializada, fundada no ensino, que implica a adoção de princípios e estratégias pedagógicas e didáticas que visam a concretização da aprendizagem” (p. 18). Percebendo de onde vem a ideia, (existem alguns documentos internacionais que falam sobre este assunto) não poderia estar mais em desacordo com a afirmação de que “as aprendizagens são o centro do processo educativo”. Não. O centro do processo educativo é os saberes e conhecimentos de diversa natureza e as suas inter-relações com as crianças e os jovens, as suas interrelações com o mundo. A aprendizagem decorre dos modos como a mobilização de diferentes tipos de estratégias, metodologias, modos de trabalho contribuem para a apropriação de saberes de natureza concetual, técnica, tecnológica, artística, humanística, saberes experienciais e saberes de natureza relacional. O problema que se tem colocado é de uma dupla natureza, por um lado os saberes escolares autonomizaram-se em relação aos diferentes saberes e conhecimentos existentes em diferentes contextos e por outro a existência da “indústria dos manuais” ainda reforça e “parcelariza” determinada áreas do conhecimento.

8. Uma terceira questão diz respeito à afirmação de que “a escola é […] um lugar privilegiado para os jovens adquirirem as aprendizagens essenciais, equacionadas em função da evolução do conhecimento e dos contextos histórico-sociais.”. O que os diferentes estudos têm demonstrado é que a situam-se (a) na sua natureza transversal, abrangendo mais do que um domínio do saber; (b) o seu caracter multidireccional, envolvendo saberes, conhecimentos, atitudes e valores e (c) a sua perspectiva aberta e polissémica. Contudo, a sua formulação apresenta alguns pontos críticos na sua dimensão conceptual uma vez que mistura diferentes tipos de conceptualizações e remetem para questões de natureza muescola não é uma ilha isolada dos contextos sociais, culturais e a apropriação dos saberes e as aprendizagens são consubstanciados numa relação estreita e poligonal entre a Escola-Sociedade-Família- Tecnologias de Informação e de Comunicação-Pares. É nesta relação complexa que as aprendizagens essenciais de desenvolvem. Apesar de se afirmar que “este referencial convoca os esforços e a convergência da sociedade –pais, encarregados de educação, famílias, professores, educadores e restante comunidade educativa – para o desenvolvimento de iniciativas e ações orientadas para assegurar o acesso a uma educação de qualidade para todas as crianças e jovens” (p. 7) não existe, contudo, nenhuma reflexão que procure enquadrar esta relação complexa onde se desenrolam as aprendizagens essenciais e em que a Escola tem uma centralidade fundamental na articulação destas complexidades.

 

Algumas dimensões críticas das competências-chave: maior precisão concetual tendo em conta nove grandes desafios

9. As características globais do desenho das competências para o século XXI apresentam dimensões interessantes e pertinentes no que se refere ao conceito de competência onde se procura e bem, ira além das competências disciplinares tradicionais”. E estas dimensões interessantes ito diversa e, nalguns caso, remete para áreas disciplinares muito específicas como por exemplo “Consciência e domínio do Corpo”.

10. A formulação concetual, apesar de se situar em áreas de competências, não é coerente uma vez que “Pensamento crítico e pensamento criativo” está num plano diferenciado do “Saber técnico e tecnologias”, do mesmo modo “Sensibilidade Estética e Artística” é diferentes de “Consciência e Domínio do Corpo” assim como “Bem-estar e saúde”. Por outro lado, se nos situarmos por exemplo na categoria, “Pensamento Crítico e do Pensamento Criativo” estamos perante uma formulação que, apesar de pontos de convergência, remete para questões de natureza muito diversa e que ganharia que se situasse apenas na categoria pensamento, por exemplo. Com efeito, se se pensar que ao falar-se de pensamento crítico se está a falar de conceitos como avaliação, categorização e classificação, interpretação, análise e descrição, enquanto no pensamento criativo falamos de “aberto à novidade”, geração de ideias, inventividade, imaginação, pensamento divergente. No cruzamento entre os dois tipos situam-se conceitos como elaboração, síntese, integração e combinação, complexidade, abstracção e simplificação, consciência do ambiente, do contexto). Ora a junção destas duas dimensões limita outras dimensões do pensamento como o pensamento filosófico ou o pensamento científico, por exemplo.
11. Por outro lado, misturam-se questões de natureza muito diversa sem que se perceba bem às lógicas internas subjacentes nem as lógicas globais. Com efeito, esta mistura envolve questões como (a) modos de pensamento (inerentes às áreas de pensamento crítico e pensamento criativo, às áreas de raciocínio e resolução de problemas, às questões de criatividade e inovação); (b) modos de trabalho (Informações comunicação, colaboração e trabalho de grupo); (c) ferramentas para o trabalho (saber técnico e tecnologias); (d) viver em sociedade (relacionamento interpessoal, autonomia e desenvolvimento pessoal, a que acrescento cidadania local e global, vida e a carreira, responsabilidade pessoal e social) e (e) consciência de si (bem estar e saúde, consciência e domínio do corpo).

12. Ora, esta mistura sem estar devidamente explicitado conduz a um conjunto de redundâncias o que implica uma re-arrumação concetual das diferentes áreas de competências de modo a que se torne mais clara a sua operacionalização. E nesta rearrumação importa a necessidade de se explicitar claramente, para além dos princípios e dos valores, as relações entre os principais desafios que se colocam às crianças e aos jovens nas sociedades contemporâneas em termos globais e aos desafios que se colocam em termos do exercício de uma actividade profissional que provavelmente ainda não existe actualmente, ou a sua reconfiguração profissional.

13.. E os principais desafios podem ser sintetizados em nove grandes campos: (1) O desafio do saber e do conhecimento; (2) o desafio do conhecimento do mundo (e isto liga-se às memórias, à história, por exemplo; (3) o desafio da imaginação e da criatividade (e não da inovação); (4) o desafio do conhecimento de si e de viver com o outro; (5) o desafio das multifunções e das multiactividade; (6) o desafio da pesquisa, da experimentação e da produção de conhecimento;  (7) o desafio da automação e das humanidades digitais; (8) o desafio da ecologia e da sustentabilidade e (9) o desafio da ética, da exigência  e da responsabilidade social.

14. Por outro lado, a proliferação das áreas de competências, 10 no total, conduz a que em alguns casos haja redundâncias na sua categorização e que terá implicações complexas na sua operacionalização. Com efeito, se me situar no plano dos governos, por exemplo na Nova Zelândia este define cinco áreas de competências chave; pensamento; utilização da linguagem, símbolos e texto; auto-gestão; relacionamento com os outros e participar e contribuir; o “Relatório Delors” de 1998 agrupa em quatro grandes domínios, o “Partnership for 21th Century Learning” de 2006, agrupa em quatro; o referencial da OCDE de 2015 em três e o de 2016 também em três; o referencial do “World Economic Forum” de 2015 também divide em três e o Relatório da Comissão Europeia de 2006, que se encontra actualmente em discussão, em oito, e o do “The Center for Curriculum Redesign” explicita quatro (criatividade, pensamento critico, colaboração, comunicação).

15. Neste contexto proponho a explicitação, a reformulação e o rearranjo das áreas de competências em torno de cinco grandes domínios de natureza diversa: (competências cognitivas, competências criativas; competências individuais; competências sociais e competências éticas). Este conjunto, partindo do documento intitulado “New Vision for Education” (2015) do World Economi Forum tem por base a interligação entre as literacias fundamentais (como é que as crianças e os jovens aplicam as competências essenciais no dia a dia); as competências (como é que as crianças e os jovens abordam os desafios complexos) e as características pessoais (como é que as crianças e os jovens abordam as mudanças societais e culturais.) No primeiro caso salienta-se a literacia, a numeracia, aliteracia científica e literacia artística, a literacia tecnológica, a literacia cultural e cívica; no segundo caso, o pensamento critico e a resolução de problemas, a criatividade, a comunicação, a colaboração, no terceiro caso, a curiosidade, a criatividade, a persistência, adaptabilidade, liderança e a consciência social e cultural.
16. Uma nota final relacionada com a área de competências “Sensibilidade estética e artística”. O documento define que “as competências na área de sensibilidade estética e artística dizem respeito à fruição das diferentes realidades culturais e ao desenvolvimento da expressividade de cada indivíduo. Integram um conjunto de capacidades relativas à formação do gosto individual e do juízo crítico, bem como ao domínio de processos técnicos e performativos envolvidos na criação artística, possibilitando o desenvolvimento de critérios estéticos para uma vivência cultural informada.”. “As competências associadas à sensibilidade estética e artística implicam que os alunos sejam capazes de: (a) apreciar criticamente as realidades artísticas e tecnológicas, pelo contacto com os diferentes universos culturais; (b) entender a importância da integração das várias formas de arte nas comunidades e na cultura; (c) compreender os processos próprios à experimentação, à improvisação e à criação nas diferentes artes, tanto em relação ao património cultural material e imaterial, como à criação contemporânea” (p. 16). Na página 23, “Descritores operativos” escreve-se que (a) “Os alunos desenvolvem o sentido estético, mobilizando os processos de reflexão, comparação, argumentação em relação às produções artísticas e tecnológicas, integradas nos contextos sociais, geográficos, históricos e políticos”; (b) “os alunos valorizam as manifestações culturais das comunidades e participam autonomamente em atividades artísticas e culturais, como público, criador ou intérprete, consciencializando-se das possibilidades criativas”; (c) “os alunos percebem o valor estético das experimentações e criações, a partir de intencionalidades artísticas e tecnológicas, mobilizando técnicas e recursos de acordo com diferentes finalidades e contextos socioculturais”. Parece que não se aprendeu nada desde 2001, em que se elaboraram as “Competências Essenciais. Com efeito, dando enfase a que “as competências na área de sensibilidade estética e artística dizem respeito à fruição das diferentes realidades culturais e ao desenvolvimento da expressividade de cada indivíduo” parece esquecer-se que as artes, com as suas múltiplas funções e múltiplos usos são formas de construção e de apropriação de diferentes mundos (reais e imaginários), são formas de construção e reconstrução de identidades (individuais e colectivas), são formas de saber e de conhecimento. Parece que não existe literatura abundante quer em termos mais ideológicos quer em termos científicos, parece que não existem experiências e práticas artísticas e criativas contemporâneas.