Introdução
A referência à abordagem Orff Schulwerk
é um dado incontornável no âmbito da história do ensino de música no contexto
da sociedade portuguesa. Devido ao esforço e ao trabalho de um conjunto de
personalidades e de instituições que desde a década de 60 do século passado
procuram dar a conhecer as principais linhas de orientação da Orff Schulwerk de
modo a que a aprendizagem e o ensino de música, em particular numa fase
inicial, interligue duas dimensões fundamentais: a criança e os seus
imaginários e as práticas artísticas integradoras.
Contudo, e apesar destes desígnios e da
maioria das escolas portuguesas do designado ensino genérico estarem
apetrechadas em maior ou menor grau com o “instrumentário Orff” nem sempre a
filosofia e os princípios de Orff se encontram devidamente apropriados e
aplicados.
E isto resulta de um triplo fator. Por
um lado, a formação de professores de música ser tardia no sistema de ensino
superior em Portugal; por outro a existência de manuais mais preocupados em
vender do que em desenvolver um trabalho artístico sustentado, e por outro lado
ainda existir não só um ainda um reduzido trabalho de investigação relacionado
com as práticas artísticas em contexto como também um muito reduzido trabalho
de reflexão teórica. E neste último caso não deixa de ser relevante, direi
muito relevante, que 54 anos depois da Fundação Calouste Gulbenkian, através de
Maria de Lurdes Martins ter implementada e impulsionando as ideias de Carl Orff
em 1961 e 50 anos depois do compositor pedagogo ter visitado Portugal em 1965 eis
que aparece pela primeira vez, tanto quanto conheço, um trabalho que retrata de
um modo sério, informado e relevante a “História, Filosofia e Princípios
Pedagógicos da Abordagem Orff Schulwerk”.
Um livro que, divido em três capítulos,
“Orff‑Schulwerk:
História e
evolução”, “Orff‑Schulwerk:
Princípios
pedagógicos” “Orff‑Schulwerk:
Desafios para o
século XXI” e um conjunto de 10 anexos salienta os aspectos dominantes da
história, pensamento e acção da Orff‑Schulwerk,
atores principais e
a sua disseminação pelo mundo.
Como refere Graça Mota no prefácio à
obra “este trabalho proporciona-nos um contributo relevante e actual sobre a Orff-Schulwerk
e, através do seu rigor, uma abrangente sistematização e proposta de
abertura para novos caminhos, quer de investigação, quer do foro pedagógico,
merecendo ter uma ampla difusão junto de professores e investigadores.
Espera-se que venha a suscitar novos trabalhos que continuem a projectar a obra
pedagógica de Carl Orff e a demonstrar a sua capacidade de ainda hoje nos
surpreender.” (p. 10).
Neste contexto, esta minha intervenção
partindo das interpelações provocadas pela leitura do livro, e pelo desafio
lançado no prefácio, estrutura-se em torno de uma questão fundamental: de que
modos é que podemos (re)olhar para a abordagem Orff Schulwerk atendendo às
complexidades e desafios da sociedade portuguesa contemporânea? Está divida em
três momentos. No primeiro acentuo a algumas dimensões da relevância Orff
Schulwerk; o segundo apresento algumas das dimensões críticas desta abordagem e
no terceiro apresentoo alguns desafios que se colocam. Por último umas breves
considerações finais.
1. Um olhar
subjectivo: a relevância da abordagem Orff-Schulwerk
O trabalho desenvolvido por Carl Orff e
por Gunter Keetman criou ruturas em relação aos modelos existentes na primeira
metade do século XX procurando adequar o trabalho artístico aos imaginários das
crianças, procurando articular áreas de saber e dar voz às capacidades
criativas existentes nas crianças.
Com efeito, a Orff Schulwerk é uma
abordagem ao ensino de música iniciada na primeira metade do século XX e desenvolvida
na segunda metade em que, como escreveu Orff começou uma “nova maneira, um novo
caminho de ensinar música” que era mais “artística do que puramente
educacional” (Orff, 1978, p. 13). O argumento principal é o de que a imaginação
e a criatividade musical estão presentes em cada criança e pode ser desenvolvida
através do canto, da linguagem, do movimento, do tocar. Como saleinta Verena Maschat num artigo de
1999 sobre as ideias da Orff-Schulwerk “deve evidenciar-se que a mesma
pressupõe o envolvimento ativo em múltiplas vertentes artísticas que, de forma
holística, proporcionam possibilidades de ensino/aprendizagem com base na
descoberta, na experimentação, na partilha, na criação conjunta e na vivência
social e emocional, que em boa verdade são necessidades humanas que não tem
idade (Maschat, 1999).
Ora, a relevância desta abordagem bem
expressa no livro, e de um modo muito telegráfico de modo a não quebrar, a
curiosidade na leitura do livro, pelo contrário e não querendo nem sistematizar
nem esgotar o que vem lá expresso, pode ser evidenciada em torno de algumas
temáticas principais que me chamaram a atenção tendo em consideração as
complexidades da sociedade contemporânea.
As crianças como artistas: a
centralidade da criança e do processo
Numa recente intervenção pública António Nóvoa faz referência à
urgência de um novo tempo de liberdade “de uma escola que tem de abrir novos
mundos e não fechar a criança nos mundos que já conhece” sendo para isso
necessário um “pensamento diferente” e não se estar a repetir “sempre as mesmas
coisas”. Isto porque esta escola que conhecemos “já acabou”. “Esta escola que
se construiu de uma forma uniforme” e “que serviu para um tempo que já não é o
nosso”. Para Nóvoa, “o ponto central desta revolução que está em curso é
conseguir que cada criança tenha o seu próprio percurso” educativo: “Só assim
poderemos atacar o insucesso e o abandono escolar”, afirmou, frisando que este
tipo de alternativas já está a ser posta prática em “muitos lugares, mas de
forma limitada nas escolas públicas” (in Público, 22 de Março 2015, p. 22)
Daí a importância do que designo por aprendizagem contextualizada
e pós-burocrática assente no desenvolvimento de uma experiência significativa
centrada no presente, o que se pode traduzir numa subversão de todo o processo
de escolarização, revelando às crianças que as aprendizagens não são uma
preparação para a vida mas uma experiência de vida em si mesma, dando-lhe
confiança nas suas capacidades de aprendizagem para aprender o que não se conhece.
Ora, para isto, é necessário atender-se a que a apropriação de saberes,
técnicas e estéticas, que se interligam de uma maneira poliédrica, em que, de
diferentes modos, as crianças, através da centralidade dos processos e não dos
fins, vão adquirindo a informação, o vocabulário, o conhecimento estruturante.
Informação, vocabulário e conhecimento que advém das práticas
artístico-musicais ricas e diferenciadas, através das quais as crianças
apreendem as diferentes complexidades existentes nos mundos da música.
A importância e o
incentivo à criatividade
O fazer música está no centro da filosofia quer subjacente ao
desenvolvimento da criança quer no domínio concetual quer no domínio afectivo. A abordagem Orff destaca o
que é que as crianças precisam de experimentar, a
fim de serem criativos: a curiosidade, originalidade e relacionamentos prazerosos. O Schulwerk combina-os num
resultado orgânico que leva à
aprendizagem e a criatividade mais profunda.
Como se escreve no livro, “Explorar possibilidades
de diferentes materiais/recursos e, a partir deles, criar um ritmo, um texto,
um acompanhamento ou uma melodia, uma dança ou um conto, são exemplos claros de
atividades exploratórias que enriquecem a personalidade e o desenvolvimento das
capacidades estetico-artisticas e afetivas. A criatividade permite ao individuo
evoluir em relação a si mesmo, a qualidade das suas relações com os seus pares
e a construção da sua personalidade. A experimentação estão ligadas acções como
propor, descobrir, criar, refletir, as quais, por sua vez, esta inerente a
noção de que sentir, pensar, agir e comunicar implicam aspetos físicos,
sensoriais, intelectuais e sociais” (pp. 45-46)
O
olhar para o património musical: sem memória não há identidade
Na introdução a obra, A Criança e a Musica –
livro do professor, escrita em 1979 mas apenas editada em 1987, este principio
e facilmente perceptível. Como escreveu Maria de Lourdes Martins “partimos da
convicção de que é necessário devolver às nossas crianças a riqueza do nosso
património artístico, fazendo reviver e continuar uma tradição que ia
desaparecendo (Martins, 1987a:5).
Conectividade
ou a rede de interdependências entre saberes musicais e não musicais
A abordagem orff Schulwek permite uma
progressão desde o seu início articulada entre a arte e a educação interligadas
como uma unidade. E este conetivismo estabelece-se através da partilha de
ideias entre as crianças, a partilha de recursos requerem competências em
termos comunicacionais, resolução de problemas em grupo e de tomadas de
decisão.
O trabalho oficinal: as salas como laboratórios de cultura
Como se refere no livro, página 45, “A
palavra Werk corresponde, em português, a obra. Segundo a ideia orffiana,
este termo deve ser visto como ‘oficina’ na qual imergimos em processos de
trabalho pratico, de vivencias artístico-musicais plenas de estimulo a
criatividade e a improvisação.”
Por outro lado, como refere Anthony Everitt, num texto de 1999, é
na escola que os “jovens cidadãos” são induzidos na criação de uma identidade
social, cultural e relacional “onde as suas capacidades imagéticas são
estimuladas, onde aprendem acerca do mundo e da sua própria diversidade
societária, e onde adquirem competências de participação social e cívica”. “A
sala de aula é um laboratório de cultura”.
Dos contextos e da justiça social
A literatura sobre a abordagem Orff
Schulwerk refere que os professores envolvidos neste tipo de trabalho estão
preocupados com os contextos culturais e a comunicação intercultural em
conjugação com os conteúdos abordados procurando por exemplo, encontrar um
conteúdo apropriado parra uma canção africana ou asiática.
Por outro lado, como referem Beegle e
Bond (2016) “ao incluir canções e jogos infantis e música de diferentes
comunidades ao redor do mundo, os professores de música atuais têm a
oportunidade de trabalhar no quadro da justiça social” (p.42)
Uma
dimensão humanista em tempos de competitividade e da procura de sucesso
Karen Benson, na altura em que era
presidente da Sociedade Orff Americana, durante um fórum em Salzburgo salienta
que “os critérios e os resultados baseado apenas em habilidades e conhecimentos
de conteúdos escolares deixam pouco apoio para a experimentação pessoal e a
compreensão estética. Tecer experiências humanistas e estéticas no estudo do
ritmo e melodia tornam-se essenciais para formar e preparar as crianças para a
vida” (Benson, 2013, p. 6).
Em síntese. Como
salienta a Associação Orff Americana (http://aosa.org/reports-from-conference/)
a abordagem Orff Schulwerk
contribui para o desenvolvimento individual para além de competências
específicas no domínio das artes. Competências que têm um campo vasto de
aplicação e de valoração em diferentes áreas. Estas competências articulam
quatro grandes domínios: intelectual; social, emocional e estético
- Intelectual. O pensamento crítico e a resolução de problemas presentes nas actividades envolvidas na Orff Schulwerk apelam a capacidades de natureza diversa quer no plano mais compreensivo e intelectual, quer no plano mais intuitivo. A realização de ideias criativas apela não só a capacidade de organização, bem como conhecimento e competências artísticas
- Social. A perspectiva da Orff Schulwerk baseia-se no modelo de trabalho de grupo o que requer uma interacção cooperativa de todas as crianças envolvidas, incluindo o professor. É importante ir o desenvolvimento artístico ocorra no interior de um ambiente gratificante e solidário. Tolerância, entreajuda, paciência e outras atitudes cooperativas devem ser desenvolvidas de um modo consciente. As características do conjunto exigem sensibilidade para o grupo no seu conjunto bem como a consciência do papel de cada indivíduo dentro dele. A resolução de problemas, a improvisação, e o processo composicional em grupo proporciona oportunidades para o desenvolvimento de lideranças.
- Emocional. Os meios artísticos envolvidos-música e movimento-conferem às pessoas caminhos para a expressão não-verbal das emoções. As atividades exploratórias e de improvisação podem proporcionar um foco para as emoções, um meio para a libertação da tensão e frustração, e um veículo para o reforço da auto-estima.
- Estética. À medida que o conhecimento e
as competências em música e
movimento crescem, as
crianças terão a oportunidade de desenvolver
padrões do que é considerado
"bom" no âmbito de determinado estilo
que seja explorado.
2. Algumas
dimensões críticas no re-olhar para a
Orff Schulwerk
O conhecimento das práticas pedagógicas
e das abordagens é um elemento importante para os professores de música. As
diferentes abordagens no âmbito do trabalho artístico-formativo no designado
ensino regular, mas também no ensino especializado de música, quer mas mais
tradicionais quer as emergentes devem ser entendidas e examinadas criticamente
e re-imaginadas atendendo ao seu potencial quer em termos do trabalho escolar
quer em termos do trabalho comunitário.
E isto é particularmente importante num
tempo em que as paisagens sociais, culturais, formativas e educativas nas quais
os docentes de todas as áreas do saber são chamados a reexaminar, não só em
termos curriculares mas também no campo das estratégias e metodologias de modo
a que haja um efectivo impacto nas aprendizagens das crianças, jovens e adultos
e que, em simultâneo, contribuam para a construção de sentidos e de valores
para as suas vidas.
No seu trabalho intitulado “Critical Issus in Orff Schulerk”,
publicado e 2013 Carlos Abril, parte de uma questão lançada por uma professora
que o interroga como conciliar a filosofia Orff construída num determinado
contexto histórico com o ensino das crianças hoje. E neste texto autor, que
parte da análise de um conjunto de literatura crítica sobre Orff procura
provocar o pensamento e encorajar o diálogo entre os professores de música. Neste
contexto e seguindo o autor, três aspetos merecem especial atenção: a teoria, a
pedagogia e a ideologia, a que acrescento a tecnologia.
A teoria
Uma dos temas principais que emerge da literatura, segundo o
autor, está relacionado com a teoria da recapitulação que propõe que o
desenvolvimento do humano tem paralelo com a evolução humana. Na sua dimensão
cultural perspetiva-se o caminho linear do desenvolvimento da espécie humana
que percorre um caminho entre os selvagens e a civilização, repetindo o
desenvolvimento evolucionário das espécies de que fala Darwin que depois foi
mobilizada pelo psicólogo G. Stanley Hall que procurou traduzir a teoria
biogenética para o desenvolvimento da criança
Um dos exemplos desta ideia está plasmada na pedagogia diz
respeito à assunção de que um determinado conteúdo ou assunto devem ser
apresentados de um modo linear do mais simples para o mais complexo e
sofisticado. E esta ideia, expressa em Orff também está traduzida nos
diferentes tipos de materiais e pedagogias existentes no contexto do ensino em
Portugal. De acordo com este autor Carl Orff num discurso de realizado em 1963
faz referência que a Schulwerk está
centrada nas forças e formas “primárias” de música que designa como
elementares é um modo “pré-intelectual” digamos assim, forma de música que
inclui “estruturas sequenciais simples, ostinatos, e rondós, por exemplo.
Outros autores, continua Abril, demonstram a existência desta
teoria nos materiais mobilizados pela Orff Schulwerk, como por exemplo Arnold
Walter
“Nós
sabemos que ela [a música] estava intimamente associado com a fala e
intimamente relacionada ao movimento; que o ritmo era o seu elemento mais
poderoso a ser lento e gradualmente domado pela melodia; que a harmonia veio
entrar mais tarde na pintura. É muito significativo que o comportamento
instintivo de crianças pequenas segue o padrão histórico: eles movem-se na
música, combinam-na emocionalmente com a fala; eles vão improvisar
infinitamente e por sua vez, carregam nas suas mãos utensílios que podem transformá-los num instrumento de percussão. A
forma melódica aparecerá mais tarde, enquanto a harmonia tem que esperar até
ser ensinado”. (p. 22)
Com efeito os materiais da pedagogia orfiana estão sustentados na
ideia de que ao ensino de música, assim como o desenvolvimento das crianças,
deve atravessar a história de arte ocidental desde as suas formas mais
elementares até às formas mais sofisticadas e complexas. O próprio
instrumentário Orff (os xilofones e metalofones, foram modelados a partir das
“culturas musicais primitivas” e que eram vistos como um ponto de partida
natural para o trabalho com as crianças
Contudo, a teoria da recapitulação foi fortemente contestada em
vários domínios científicos. Robert Walker num texto de 2007 refere que:
Empiricamente
e logicamente, não pode haver nenhuma
justificação para a aplicação da teoria
da recapitulação no desenvolvimento do ensino de música usando a música das [designadas] sociedades primitivas, especialmente porque a
teoria postulou que as crianças
passam por uma fase musical equivalente
ao desenvolvimento dos adultos nas sociedades primitivas no seu caminho
para o estado mais sofisticada da cultura musical ocidental e a música que lhe está associada. Tal visão
invalida muita música do mundo uma vez que ela trata a música de "adulto" como sendo algo infantilizada, mais do que totalmente
desenvolvida, sofisticada, e evoluída (p. 277)
(citado por Abril, p. 15)
Num estudo sobre como é que as crianças fazem e transmitem música Marsh
questiona várias pedagogias incluindo a Orff Schulwerk ao afirmar que
“As questões
filosóficas e metodológicas
subjacentes â abordagem Orff Schulwerk e ao método
de Kodaly não foram questionadas
pelos seus utilizadores, apesar de grandes mudanças na filosofia educacional
e no pensamento etnomusicológico.
A criança como um paradigma "primitivo" foi objecto de críticas, mesmo quando as metodologias estavam em desenvolvimento .... Toda a noção de
“primitivismo musical” como o que foi aplicado a música não-ocidental foi desacreditada porque está enraizada na suposição errada de que a música ocidental tem supostamente evoluído a partir de protótipos "primitivos". (p. 11-12) (Abril, p. 15)
Pedagogia
De acordo com o autor que tenho vindo a seguir uma segunda
temática está relacionada com algumas das especificidades da pedagogia orfiana
que inclui a música, materiais, ensino e aprendizagens. Com efeito, como referi
anteriormente as ideias pedagógicas que sustentam as práticas foram pensadas e
desenvolvidas no sentido de auxiliar as crianças na realização do seu potencial
musical e criativo providenciando experenciações musicais que
têm uma forte semelhança com o
vocabulário de música, comportamentos e Jogos das crianças. Contudo, as
concepções do adulto acerca do que as crianças sabem, gostam e podem fazer têm
vindo a ser questionadas, modificadas e criticadas na literatura.
Marsh (2008)
escreve que “falar de Orff como seguindo um modelo no qual a 'Playlikness” é equiparada com estruturas simples
e repetitivas, materiais com uma paleta rítmica e tonal
restrita e uso do
movimento para desenvolver a compreensão musical, que criam suposições
falsas sobre a relativa simplicidade da peça musical infantil. O
problema é que os materiais musicais
simples tendem a ser
sobrestimados na prática da sala
de aula. (p.12) (Abril, p. 16)
Dolloff (1993) por sua vez,
refere que a Schulwerk era excessivamente simplista e algo afastada das
realidades da vida das crianças nos Estados Unidos e da sociedade do século XX.
Este autor refere que a pedagogia Orff é pensada para demorar muito tempo no
específico em formas próximas e
estilos limitados, por exemplo, a escala pentatónica, a forma rondo, embora
relembre que essa não era a intenção de Orff. Como o próprio Orff refere “é
impossível e indesejável cortar a possibilidade de a criança aceder a todas as
influências musicais (Orff 1962) Ora isto remete para a cautela a ter na
“infantilização” do trabalho artístico e criativo e a utilização simplista das
metodologias de ensino aprendizagem
Canções
Um outro aspeto critica referido por Abril, refere-se à
mobilização das canções. Diz este autor que a mobilização das canções se faz
uma vez que elas são simples, como ritmos limitados e tonalidades simples. Ora
esta simplicidade pode estar afastada do gosto musical das crianças e da sua
vida musical fora da escola.
Num trabalho de Patricia Campbell de 2010 intitulado Songs in their heads, a autora
entrevistou algumas crianças e o que resulta é, algo que não é novo, a
desconexão entre os mundos musicais fora da escola e o mundos da música na
escola, dando exemplo de que o cantar o rap através da imersão no Orff não é
mesmo rap. Ora como sabemos os mundos musicais das crianças são bem mais
sofisticados do que muitas vezes se pensa e elas são capazes de reconhecer,
falar e interpretar música da sua cultura.
As “canções pedagógicas” para ensino determinado tipo de conceito
por exemplo, tem uma função pedagógica mas falta-lhes uma autenticidade
cultural e, no caso português, são de questionável relevância e musicalidade.
Ora o que está aqui em causa é que este tipo de formulação pedagógica conduzem
a experiência que ficam não só desconectadas de sentido e têm pouca relevância
na vida das crianças, como também se afastam de uma das dimensões principais da
Orff Schulwerk quando o Orff afirma que o seu trabalho está mais próximo das
artes do que da educação.
Aprender e ensinar
A perspetiva etnocêntrica que olha para a história da música como
uma progressão linear da evolução, algumas perspetivas de ensino aprendizagem
seguem esta trajetória evolucionista o que contraria o que investigações
demonstram. As aprendizagens, como fala por exemplo Campbell, ocorrem de modos
muito diferentes e inesperados, e as aprendizagens ocorrem não só quando se
encontram sentidos para o trabalho que se realiza como também quando as
crianças se confrontam com mudanças e problemas desafiantes que requerem
criatividade e pensamento critico
Benedict num
trabalho de 2009, refere que a natureza sistemática e sequencial pode ser
problemática na medida em que a
estrutura ou ordem (processo)
e a sequência são desenvolvidas de forma automática e
toma "o lugar do pensamento
crítico […] num processo de auto-alienação dos tipos
de problemas encontrados em
situações de musicking uma vez que estes são claramente menos
delineadas por ordenação sequencial,
e quer as crianças e professores
tornam-se alienados de si mesmos
" (p 218).
Ora as assunções acerca das capacidades das crianças o seu
desenvolvimento e artisticidade têm conduzido a práticas pedagógicas que podem ser limitativas, desconectados da cultura multicultural e complexa da infância contemporânea,
tonando-se excessivamente rígidos.
Ideologia
Uma outra dimensão está relacionada com a questão da ideologia.
Neste cotexto, vale a pena relembrar as palavras de Orff em 1963 quando
descreveu a Schulwerk afirmando que:
“Aqueles
que procuram um método ou um sistema “pronto-a-fazer”
estarão bastante desconfortáveis com a Schulwerk; pessoas com temperamentos
artísticos e um talento para a improvisação são fascinados por ela ... infelizmente, a Schulwerk
tem sido mal interpretada, explorada e falsificada
ao ponto da caricatura ... um professor é estimulado pelas possibilidades inerentes de um trabalho que nunca está finalizado, em fluxo, em constante desenvolvimento” (p. 69)
Ora estas ideias, flexíveis e novas de Orff foram sendo
sucessivamente codificadas, racionalizadas e convertidas, por alguns num método
restritivo de ensino convertendo-se em alguns caso numa ideologia, como refere
Abril. Ora como muito bem demonstra o livro que hoje se apresenta a Orff
Schulwerk é suposto não ser um método, embora possa ser considerada como uma
metodologia quer do ponto de vista das práticas quer dos seus produtos. Por
exemplo, ela oferece lições estruturadas (p. ex. da palavra aos instrumentos),
desenvolvimentistas (do simples para o complexo) (conceptual (do ritmo para a
harmonia) e teórico (do pentatónico apara os modos maiores)
Perante este quadro Benedict (2010) sugere que os processos
normativos, o senso comum das práticas e os rituais inerentes ao trabalho
transformaram a Orff Schulwerk numa ideologia. Como escreve na crítica que faz
a Orff e a Kodaly:
“Não
são os conceitos destas abordagens que precisam de ser abandonados; tanto Orff
como Kodaly imaginaram
processos musicais que surgiram a partir do desejo inato de experimentar e criar como
um envolvimento social e musical. Pelo contrário, é necessário interrogar o envolvimento indiscriminado destas abordagens como uma possível forma de controle e coerção, bem como a possível apropriação de musicking como uma forma de incrementar o capital
social dos professores de música” (p.
222)
Também outros autores questionam que a comunidade dos educadores
musicais esteja ciente de "fé
cega e devoção a um método tecnicista" no que o autor designou por “metodolatria”.
Como refere este autor “na pespectiva de metodolatria o “bom ensino é,
simplesmente, uma tarefa de utilização de um “bom método”. E uma vez que o
método em si é considerado bom mesmo antes da sua mobilização, qualquer falha
na aprendizagem das crianças […] é atribuída a variáveis incontroláveis” (p.
111)
Como refere Abril, “temos de estar dispostos a mudar o que é tido
como garantido e interrogar as nossas crenças. Temos de tomar precauções em
relação à tirania do senso comum, onde as pessoas têm medo, são relutantes, ou
incapazes de modificar os seus pensamentos e ideologias”” (p. 20)
Ora isto tudo não significa que as ideias de Orff e Keetman sejam
descartadas, pelo contrário, devemos questionar e interrogar encontrando novos
sentidos num tempo complexo em mudança questionando não só o senso comum, como
também algumas dimensões que se transformaram em dogmas. Como refere Abril,
“devemos envolvermo-nos em diálogos substantivos acerca da necessidade de
repensar o currículo e o ensino no século xX1, um tempo e um contexto que é
drasticamente diferentes daquele em que a Orff Schulwerk foi desenvolvida. O
nosso futuro como educadores musicais pode requerer o nosso encontro em alguns
caminhos novos, inovadores e revolucionários. Não podemos ter receio de
interrogar o nosso senso comum no quadro das práticas, das acções do passado e
dos professores que se veneram. As pessoas interessadas no Orff e no ensino de
música devem encontrar caminhos de envolvimento das crianças numa aprendizagem
e criação musical com sentido e relevante, ajudando-as a tornarem-se mais
curiosas acerca do mundo em que vivem e desenvolvendo a sua artisticidade e
humanismo” (p. 22)
Tecnologias
A “evolução” das condições sociais e
culturais no domínio das tecnologias afiguram-se uma dos elementos centrais na
sociedade contemporânea e que de algum modo influenciou a Schulwerk no século
XX ao incluir o incremento na utilização das tecnologias quer na escola quer no
exterior à escola. No entanto, alguns professores ficam preocupados com a
utilização de certos tipos de tecnologias uma vez que podem diminuir as
interacções corporais entre as crianças, com o material musical, depreciar o
contacto humano na criação musical.
Goodkin (2009) depois de descrever as
suas ideias acerca do caso da utilização do Google, Youtube, ipad, cameras
digitais com os seus estudantes escreve: “como é que tudo isto melhorou o meu
trabalho com a abordagem Orff? Dificilmente
em tudo - exceto num tipo de caminho inesperado. Agora sinto-me mais comprometido do que anteriormente na utilização mínima destas tecnologias na minha sala de aula embora continue a trabalhar directamente com o meu corpo, a voz, materiais elementares, a imaginação não mediada e um círculo de crianças envolvidas sentadas com os pés descalços no chão” (p. 20)
em tudo - exceto num tipo de caminho inesperado. Agora sinto-me mais comprometido do que anteriormente na utilização mínima destas tecnologias na minha sala de aula embora continue a trabalhar directamente com o meu corpo, a voz, materiais elementares, a imaginação não mediada e um círculo de crianças envolvidas sentadas com os pés descalços no chão” (p. 20)
Ora isto afigura-se como uma das
dimensões relevantes que se colocam na mobilização da Orff Schuwlerk no
trabalho artístico-educativo procurando interligar de um modo equilibrado as
dimensões analógicas do trabalho digamos assim, com as dimensões de natureza
digital, como refere Evan Tobias (2016) tendo em consideração os designado
“nativos digitais” de que fala Marc Prensky em 2001 no seu artigo “Digital
Natives, Digital Immigrants”. Com efeito, as crianças são agora capazes de
utilizar os computadores e outros dispositivos eletrónicos pra explorar e
compor utilizando sons digitais com, por exemplo, os ensembles instrumentais
Orff. Gravando as suas improvisações e/ou composições os professores podem
providenciar exemplos que promovam a exploração de actividades composicionais
bem como o interagir com outras crianças de partes do mundo.
3. A
abordagem Orff Schulwerk e os desafios da contemporaneidade
Como referi no início Carl Orff
escreveu que a Schulwerk começou uma “nova maneira, um novo caminho de ensinar
música” que era mais “artística do que puramente educacional” (Orff, 1978, p.
13). Partindo desta premissa de “ensinar música artisticamente e musicalmente”,
de um olhar sobre a criatividade artística e da pedagogia artística, e da ideia
de que a abordagem Orff Schulwerk dá a enfase na sua adaptabilidade aos vários
contextos, a diferentes tipos de problemáticas e complexidades existentes nas
sociedades contemporâneas implicam um reolhar para o que é aparentemente
consensual e normal. Perante as considerações anteriores e perante o que está
expresso no livro uma pergunta impõe-se: que desafios e direções para a abordagem
Orff Schulwerk no contexto da sociedade portuguesa contemporânea? Vou procurar
responder através de três grandes desafios. O desafio da criatividade; do cosmopolitismo
e do conhecimento.
Criatividade: curiosidade,
inventividade e inquietação
A procura de um equilíbrio na tensão entre uma certa formatação da
“forma escolar”, a experienciação e as práticas artísticas mais inovadoras,
fomentaram, e têm fomentado, a procura de processos e procedimentos que
articulem o aparente paradoxo entre o rigor e a disciplina, na apropriação dos
códigos e convenções e a intuição e a criatividade, muitas vezes caótica e
imprevisível, imprescindíveis no domínio das artes. Neste contexto, o pensar-se
a criatividade no ensino de música, qualquer que seja a sua tipologia e nível
de formação, de que tanto se fala mas que tem sido difícil a sua utilização
mais consistente, tem que se atender que esta se pode caracterizar por ser um
processo complexo envolvendo o processamento de informações e saberes
diferenciados, ideias, acções, sentidos e estruturas e modos de fazer presentes
num determinado momento e espaço concetual, social e cultural de que podem
resultar múltiplas possibilidades de articulações significativas.
A “criação do que não se conhece, do que ainda não existe,”
envolve a inteligência emocional e em que a criança tem necessidade de sentir o
desafio, o desejo de (re)conciliar o desconhecido com o sistema de códigos e
convenções existentes no âmbito dos seus quadros referenciais. O processo
criativo começa, de um modo geral, com o objectivo da resolução de um
determinado problema, exterior ou interior ao individuo, numa dinâmica entre a
criação de algo de novo e/ou reconfigurado, de descoberta e de bricolage. Contudo, “quando falamos de
imaginação estamos também no campo da contestação […] das fixações de um aqui e
de um ali, de um interior e de um exterior” numa geometria plural e “espantosa
(que espanta, que surpreende)” (Gonçalo M. Tavares) aberta ao acaso e ao
desconhecido através de “racionalidade distendida”, de que fala Jiménez, assente em múltiplas opções.
Neste sentido, o processo criativo, muitas vezes com avanções e
recuos e mudanças de direcção, sinteticamente, envolve, para utilizar as
palavras de Gonçalo M. Tavares: (a) “o potenciar o imaginário”, revestindo-se
de múltiplas formas e modelagens musicais e extramusicais, significa “o motor
do início de algo, o momento de aparente imobilidade onde, interiormente, […]
se constroem ideias: umas combatendo outras”; (b) a “exploração e
experimentação” em que de modos diferenciados se vão procurando e adequando às
ideias, processos, objectos, técnicas; (c) o “passar do imaginado ao fazer o
imaginado”, criando “novas coisas”, novas ideias ou ideias reconfiguradas no
mundo, multiplicando “as possibilidades de verdade, as analogias, as
explicações, as ligações”; (d) o “passar do imaginado ao fazer o imaginado” que
se confronta com os outros numa relação complexa entre diferentes modos e
condições de percepção.
Como escrevi noutro local, a
curiosidade, a inquietação e a inventividade são algumas dimensões relevantes
quando se discute o ensino artístico-musical quer nos primeiros anos de
escolaridade, quer em qualquer outro nível de ensino. Contudo, o estimular a curiosidade, a inquietação e a criatividade implica
construir um espaço de formação e de aprendizagem poliédrico aberto para a
descoberta, a escolha, a tomada de decisões e a exploração pessoal, de modo a
potenciar a construção dos
imaginários e os modos como esses imaginários contribuem não só para apropriação
de códigos e convenções, de estéticas e de éticas, como também, e
principalmente, para o conhecimento de si e dos outros, para o conhecimento dos
mundos, potenciando um desenvolvimento das infâncias atuante, interrogativo,
equilibrado, integrado e cosmopolita.
Cosmopolitismo:
convivialidade entre diferentes mundos
A actividade formativa e em particular a actividade artística “não
é una; ela não é a actividade de um artista. Ela é sempre plural. E por detrás
dessa pluralidade se descobre a diversidade, as disciplinas, as notoriedades,
as sensibilidades, os estatutos […] A arte contemporânea, ou, de um ponto de
vista sociologicamente mais preciso, a prática contemporânea da arte, acentua
esse efeito explosivo: e ela acentua justamente porque o modo como ela é criada
é precisamente o da explosão, do derrame, da multiplicidade […]. O modo
múltiplo (romper, desviar, derivar…) tornou-se o modo de actividade habitual”
(Nicolas-Le Strat, 2002: 38). Mesmo que “a actividade seja única – a unicidade
de uma criação ou de um espectáculo – isso não a impede de existir como
multiplicidade, de associar competências, de misturar os géneros, de
desconstruir as suas próprias referências, de organizar os estilos, de
transgredir o seu espaço. A sua multiplicidade […] informa-nos acerca do seu
mundo de acção (o rizoma ou a rede), do seu desempenho e da sua produtividade
(a desmultiplicação)” (p. 39).”. (Nicolas-Le Strat, 2002: 38-39).
Por outro lado, e por exemplo, ao aprender-se a tocar
um instrumento, a compor ou a tocar em público, para além do aspecto meramente
técnico e de uma racionalidade artística, o que está em causa é que o universo
de Beethoven é diferente do universo de Chopin, o universo de Bach é diferente
de Haendel, o universo da cultura Kwella é diferente do universo da música
Suffi e assim sucessivamente, e que os públicos também se movimentam em
diferentes universos. Nesta pluralidade de diferenças (com os seus códigos e
convenções) a escola e o ensino desempenham um papel relevante nos modos como
contribuem para a apropriação das diferenças e a construção das singularidades
detectando e elucidando os pontos de divergência e os pontos de convergência
(Kartomi e Blum, 1994), como tem demostrando, por exemplo, o violoncelista Yo
Yo Ma entre o universo das suites de Bach e a obra do italiano Piranezi do sec
XVIII.
Ora, destas interdependências, singularidades e proliferação de
sentidos e de mundos, muitas vezes distantes e conflituais, emerge a
necessidade de encontrar formulações que permitam a convivialidade entre
referências múltiplas, entre culturas que se interpenetram. A convivialidade
entre diferentes “territórios de fronteira” e zonas de contacto, entre
diferentes tipologias e géneros artísticos, diferentes saberes técnicos,
estéticos e culturais, diferentes saberes experienciais e entre modalidades
formais e informais (Green, 2002; 2008). E esta convivialidade implica uma
“imaginação dialógica”, de que fala Ulrich Beck (2002).
Conhecimento:
multiplicar as possibilidades de pensar
O conhecimento afigura-se como uma das dimensões centrais na vida
das sociedades contemporâneas. Conhecimento que, como sabemos, difere de
acumulação de informação, embora sem ela não o conhecimento não exista, e pode
advir de múltiplos modos (mais formais e informais) e pode pensar-se em
diferentes modalidades de conhecimento: do conhecimento científico ao
conhecimento artístico, do conhecimento filosófico ao conhecimento empírico.
Por outro lado, a minha perspectiva de olhar para o ensino de
música, qualquer que seja a sua tipologia e finalidade, alicerça-se no que
Wilson (2002) designa por “estrutura rizomática”, por oposição a uma “estrutura
em árvore”. Contudo, o pensamento dominante de diferentes actores
(intelectuais, burocratas, professores e investigadores) inscreve-se numa
perspectiva de segmentação da realidade em que se classificam, planificam e
programam as escolas e as instituições artísticas e culturais, o trabalho com
as crianças e jovens no sentido de atingir determinados objectivos
predominantemente mensuráveis e fragmentadas.
Daí a pertinência, de se pensar para a necessidade de se
encontrarem modalidades que procurem atenuar, senão mesmo neutralizar, a perca
do sentido de unidade, ou pelo menos de convergência, das diversas formas de
conhecimento e actividade humanas, contribuindo para alterar o empobrecimento
cultural daí decorrente. Como refere Morin (2000), a hiperespecialização impede
de ver o global (que ela fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela
dilui). Retalhando as disciplinas e saberes torna impossível apreender "o
que e tecido junto", isto e, o complexo, segundo o sentido original do
termo.
Assim importa avançar para um trabalho de construção de saberes e
de conhecimento hesitante para utilizar as palavras de Gonçalo M. Tavares, de
modo a multiplicar “as analogias, as explicações, as ligações; multiplicar as
possibilidades de pensar’’ (Idem: 67).
E neste contexto,
o papel da teoria, nas suas múltiplas vertentes, afigura-se como um aspecto
estruturante no confronto entre os pressupostos políticos e
artístico-educacionais dominantes e a criação de outras formas de pensamento.
Teoria que pretende desfamiliarizar as práticas políticas e
artístico-pedagógicas e as categorias habituais de pensar e organizar
politicamente este tipo de educação, torná-las menos auto-evidentes e
necessárias, abrindo espaços de invenção de novas formas de experiências e
enquadramentos.
E este abrir
espaços de invenção de novas formas de experiências e de enquadramento, a
investigação e a produção de conhecimento poderão contribuir para um outro tipo
de um outro tipo de desafio é o que designo por “desburocratizar o pensamento e
a acção e incrementar a imaginação. Utilizando as palavras de Tavares (2013),
"compreender não é repetir" e "ter compreendido é conseguir
dizer de uma outra maneira", "as possibilidades da imaginação são
infinitamente maiores do que as possibilidades da observação das coisas e
acontecimentos exteriores" (pp. 526-527). Dai a importância de questionar
as narrativas dominantes e de criar novas formas de experienciar os mundos, criar novos mundos ao mundo
e, por deste modo, inventar e operacionalizar projectos investigativos que
ajudem a compreender as complexidades das práticas artísticas em contexto e a
tradução das complexidades do real em materiais que contribuam para uma
intervenção mais sábia, sólida e consistente.
4. Considerações
finais
David Rodrigues, num artigo publicado no Público 26 de fevereiro 2016
intitulado “A educação do futuro”,
escreve que “a educação está certamente num dos períodos mais dramáticos
da sua história, num tempo em que a desadequação do modelo de escola criado no
século XIX se mostra eloquentemente desajustado para educar jovens criados em
ambientes de tecnologias digitais que implicam todo um conceito de
conhecimento, de trabalho, de atenção completamente distinto do anterior. [..] As
previsões do futuro deram quase sempre para o disparate. […] Por isso “talvez
mesmo o mais seguro seja assegurar a educação de melhor qualidade que pudermos
e soubermos neste presente. A educação do futuro é hoje.”
E sendo o futuro hoje, como relembra Patricia
Campbell (2010), o nosso trabalho pedagógico deve reconhecer e construir-se a
partir de novos entendimentos dizendo a autora que “as escolas [ou os programas
de música que se divorciam dos desafios do mundo real, do dia a dias das
crianças, que voltam atrás e simplificam que estão para além o reconhecimento
do significado de uma determinado assunto e que dão uma oportunidade limitada
para que as crianças apliquem o que elas já dominam nem novos contextos não
podem almejar objectivos nobres”
Por outro lado, como escreveu António
Pinho Vargas na sua página do facebbok de 25 de Fevereiro, a propósito de modas
intelectuais que “devo ter sido dotado precocemente para desconfiar sempre:
desconfiar de tudo aquilo que aspira, pretende, proclama constituir-se como
saber absoluto para tudo ou como método infalívelalgumas das modas, se assim
posso dizer, intelectuais das quais devo ter sido dotado precocemente para
desconfiar sempre: desconfiar de tudo aquilo que aspira, pretende, proclama
constituir-se como saber absoluto para tudo ou como método infalível”. Ora como
salientam Beegle, Amy
& Bond, Judith (2016) “Orff
Schulwerk: Realising and Developing the Musical imagination” “Carl Orff
imaginou a Orff Schulwerk como um organismo em crescimento, como uma flor selvagem,
como o húmus na natureza. Neste sentido a Schulwerk não é uma “metodologia”
estática ou rígida mas mantem-se aberta, criativa envolvendo uma maneira de
ensinar e aprender música e movimento. Os professores que optem no
desenvolvimento do seu trabalho pela Schulwerk estão muitas vezes comprometidos
com a aprendizagem ao longo da vida e uma continua exploração desta abordagem
no trabalho educativo uma vez que ela oferece possibilidade ilimitadas para a
criatividade e desenvolvimento pessoal” (p. 44).
Por outro lado ainda, a relação entre música, sistema educativo,
políticas e democracia passa pela construção de uma dupla ecologia: a ecologia
dos mundos sonoros e a ecologia de saberes. Dupla ecologia em diálogo com as
diferentes visões dos mundos das artes, da cultura, da música, da investigação
e que assente nas interdependências colaborativas que de modos diferenciados
poderão contribuir para uma democracia mais culta e plural na edificação de
comunidades mais cosmopolitas e em tornar mais sábias as nossas ignorâncias.
Neste contexto, como
muito bem demonstra o livro o pensamento subjacente à abordagem Orff Schulwerk,
ao não se afirmar como uma verdade absoluta como um método abre múltiplos
caminhos de pensamento e de acção. E como afirmou Carl Orff num dos seus
últimos discursos, “fiz o meu trabalho agora
compete-vos fazerem o vosso.” Este livro
representa no contexto português e do ensino de música em Portugal um bom ponto
de partido para fazermos a nossa parte.
Referências
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Beegle, Amy & Bond, Judith (2016). “Orff Schulwerk:
Realising and Developing the Musical imagination” in Brent M. Gault, e Carlos R. Abril (ed.) Teaching General
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Campbell, P. (2010). Songs in their heads:
Music and its meanings in children’s lives. New Yourk: Ox ford University
Press. 2.º edição
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disponível em http://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-educacao-do-futuro-1724388
Tobias Evan (2016)
Learning with Digital Media and Technology in Hybrid Music Classrooms “Orff Schulwerk: Realising and Developing
the Musical imagination” in Brent M. Gault, e Carlos R. Abril (ed.) Teaching General
Music: Approaches, Issues, and Viewpoints, New York: Oxford
University press.
Walker, R. (2007). Music education: Cultural values, social change
and innovation. Springfield, Ill: Charles C. Thomas.
NOTA. Versão em trabalho da minha intervenção
na apresentação do livro “Abordagem Orff Schulwerk – História Filosofia e Princípios
Pedagógicos”, de João Cunha, Sara Carvalho e Verena Maschat no 1.º Encontro Orff-Schulwerk da Universidade
de Aveiro, 5 de março de 2016.